6.5.07

O positivismo e a teoria da falsificabilidade

O Positivismo

O positivismo ou filosofia positiva (por contraposição a metafísica) foi fundado por Auguste Comte (1798-1857), sobretudo a partir do início dos Cursos de filosofia positiva (1830). No fundamental, o que caracteriza todo o positivismo é a exigência da redução do conhecimento aos factos e às leis (ou factos gerais) que deles se inferem. O sistema de Comte funda-se numa filosofia da história que supõe que toda a história humana evoluiu de um estádio religioso para um metafísico, evoluindo, progressivamente, na modernidade, para o estádio final positivo. A partir desta fundamentação, pretende Comte fundamentar e classificar as próprias ciências (e também limitá-las e orientá-las). Finalmente, funda uma sociologia que conclui o edifício das ciências (reduzidas a cinco: astronomia, física, química, biologia e sociologia) e também a evolução definitiva para o estádio positivo, relegando a metafísica para o passado. Além disso, a fundação da sociologia permitia a reforma prática, dando origem ao Estado positivo, e a reforma religiosa, dando origem à religião da Humanidade. Muitos dos positivistas posteriores rejeitaram este último aspecto da filosofia de Comte.
Do ponto de vista epistemológico, são especialmente óbvios dois aspectos: a recusa de toda a hipótese não originada na observação, e a pretensão de descobrir as leis da própria realidade a partir da experimentação. Tal pretensão funda-se numa concepção rigorosamente determinista dos fenómenos naturais. A reiteração de um resultado experimental serve de legitimação definitiva de uma lei (estabelecimento das leis por indução). É, aliás, a lei que mais importa a Comte, permitindo mesmo que não mais sejam feitas observações no âmbito a que a lei se refere. De facto, Comte parece temer que elas sejam feitas: “as leis naturais, verdadeiro objecto das nossas investigações, não poderiam permanecer rigorosamente compatíveis, em nenhum caso, com uma investigação demasiado minuciosa”; pelo que reduz a exactidão requerida às nossas necessidades práticas. É o que se poderia chamar uma certeza à força.
O positivismo lógico ou empirismo lógico (círculo de Viena, sobretudo nos anos 20 – Carnap, Neurath, Hahn) é, em muitos aspectos, completamente diferente do positivismo de Comte – porém, os traços fundamentais da epistemologia positivista do sec. XIX mantêm-se: recusa de toda a metafísica ou especulação; redução aos enunciados de observações; comprovação das hipóteses pela experimentação. Porém, seguindo assumidamente David Hume, o positivismo lógico admite que as leis sejam apenas prováveis – o que não impede que sejam consideradas comprovadas ou verificadas, pois tal probabilidade é suficiente para o trabalho científico (o que é, afinal, uma nova versão do dogmatismo comtiano antes ilustrado).

Crítica popperiana ao positivismo

Três aspectos se destacam na crítica de Karl Popper (1902-1994) ao positivismo.
Primeiro, Popper sublinha a irrelevância da questão da origem da hipótese para a ciência. Para que uma hipótese seja considerada como científica, deve-se sujeitar à experimentação. Mesmo que uma hipótese tenha uma origem considerada pouco respeitável, por exemplo, a teoria das marés de origem astrológica, não deve, por isso, ser rejeitada pela ciência. Tal rejeição sem experimentação só pode ser prejudicial à própria ciência, nem lhe permitindo encontrar eventuais respostas correctas, nem lhe permitindo evoluir pela demonstração do erro. Para além de promover a mentira, a exigência positivista não só é preconceituosa, como limita a imaginação e a criatividade dos cientistas, impedindo-os de descobrir novas respostas.
Segundo, Popper mostra que a pretensão positivista de verificar a hipótese através do teste é ilógica. O teste experimental não pode comprovar um enunciado universal. A única coisa que pode comprovar é a refutação do enunciado universal. Trata-se de uma mera aplicação da lei das subalternas do quadrado aristotélico da oposição: da verdade de uma particular nada se pode concluir quanto à universal; mas da falsidade da particular, pode-se concluir a falsidade da universal.
Terceiro, Popper defende que o confirmacionismo positivista é dogmático. Se se procura apenas aquilo que comprova a teoria, tende-se a não procurar o que a pode refutar: age-se como advogado de defesa da sua hipótese. Além disso, não se fornece com tal confirmacionismo, ao contrário do pretendido pelo positivismo, um verdadeiro critério de demarcação entre a ciência e a pseudo-ciência. Qualquer pseudo-ciência é capaz de reunir comprovações empíricas das suas previsões. De facto, qualquer teoria de senso comum consegue fazer isso. O que provavelmente não conseguem, em muitos casos, é dizer claramente em que casos seriam as suas teorias refutadas.
Dos dois últimos aspectos resulta que não faz sentido para Popper falar de provas ou de leis na ciência empírica. Tal vocabulário advém dos dogmatismos positivistas e congéneres. Pode-se considerar uma hipótese atestada, visto ter passado por verdadeiros testes, nunca como comprovada, visto mesmo inúmeros testes particulares nunca poderem comprovar uma hipótese universal.

O critério popperiano de demarcação – A teoria da falsificabilidade

Segundo Popper, uma teoria, para que se possa considerar uma teoria da ciência empírica, deverá ser capaz de enunciar os casos em que, se fossem verificados, seria refutada. Se o objectivo da ciência é a busca da verdade, deverá, em vez de impor (como se fosse uma religião) aquilo que diz como verdade definitiva, testar rigorosamente as suas teorias em busca de falhas, tentando aproximar-se cada vez mais da correspondência exacta à realidade, nunca, porém, se podendo ter a certeza de a ter atingido.
Exemplificando o modelo proposto por Popper, para que a proposição “Todos os cisnes são brancos” possa ser aceite na ciência empírica, deve ser capaz de formular os enunciados básicos potencialmente falsificadores, ou seja, os possíveis factos que, caso se verificassem, refutariam a proposição, enunciados semelhantes a esta forma: “Foi visto um cisne da cor x (laranja, azul, verde, rosa, preto, etc.) no lugar y e no tempo z.” Caso se verifique um só caso bem atestado que corresponda à forma acima exposta, a proposição é refutada. Por exemplo, eu tive a oportunidade de ver várias vezes, há uns anos, dois cisnes pretos no centro do Barreiro. Logo, a proposição está refutada. Se fizermos uma nova proposição, “Todos os cisnes são brancos ou pretos”, ela deve-se sujeitar, de novo, à falsificabilidade, mantendo-se sempre provisoriamente aceite enquanto não se registe nenhum caso falsificador. Mesmo que víssemos todos os cisnes do mundo, nunca se poderia considerar a proposição confirmada, pois no futuro poderia sempre surgir um cisne de outra cor.

Exemplo de teoria pseudo-científica ou ideológica

Popper entende por ideologia uma crença dogmática que rejeita, à partida, qualquer possibilidade de refutação empírica. Se tal ideologia pretende ser uma ciência empírica, trata-se de uma pseudo-ciência. Em contraposição ao exemplo do cumprimento do critério de falsificabilidade (a não ser que se defenda que os cisnes são brancos por definição), pode-se dar o seguinte exemplo adaptado de Popper. Tomemos a seguinte proposição, mais ou menos afirmada em muitas correntes das ciências sociais e humanas, assim como da filosofia especulativa (onde pode ser afirmada à vontade porque a metafísica não pretende ser empírica): “Todos os actos humanos são egoístas”.
Quem afirme tal proposição, afirma-a, com certeza, com a consciência de que há pessoas que dedicam a sua vida a ajudar os outros. O que está implícito em tal proposição é que qualquer acto altruísta é feito por uma intenção egoísta (ir para o paraíso, auto-satisfação, fama, etc.). Porém, é fácil ver que se poderia dizer o mesmo de qualquer acto imaginável por mais incrível que fosse – o que quer dizer que, com tal argumentação, não existe à partida qualquer possibilidade de refutação empírica da proposição. Não existe verdadeira possibilidade de testar a proposição, pelo que a proposição não se pode considerar científica empírica. A mesma linha argumentativa segue Popper para rejeitar, por exemplo, a psicanálise como ciência empírica. A mesma crítica é dirigida ao marxismo, embora com uma argumentação diferente, assente mais na sua tendência confirmacionista.

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