20.4.19

O sindicalismo solidário de Daniel Oliveira


            Discordo, totalmente, da tendência de muitos escritores, entre os quais alguns que particularmente muito aprecio como Marcuse, a considerar como escravatura o trabalho assalariado. Julgando estar a sublinhar o caráter opressivo dessa relação produtiva, anulam na verdade a sua compreensão específica até naquilo que tem de mais desumano. Poderá ser bom para a expressividade poética, mas é péssimo para a compreensão da realidade. Considerada de forma abstrata, pode-se dizer que, na escravatura, é do interesse do dono preservar a sua propriedade. Causar-lhe dano, deixá-lo esfomeado, permitir que ele adoeça com uma doença evitável ou que não seja tratado, deixá-lo, sem vestuário ou habitação, exposto aos elementos, tudo isso é algo que não é do interesse do dono que aconteça ao escravo porque são formas de destruir ou desvalorizar a sua propriedade, para lá de diminuir a sua capacidade de produção. Pelo contrário, o trabalhador assalariado vende um serviço, o seu trabalho, e o patrão não precisa de se preocupar com a sua saúde, a sua alimentação, o seu vestuário ou a sua habitação. Especialmente em situações de miséria das classes baixas, desde a revolução industrial, há sempre uma explosão demográfica que permite encontrar sempre nova mão-de-obra. Assim, como em qualquer mercado, o patrão tenta, como qualquer cliente, pagar o menos possível pela mercadoria, neste caso, o serviço que é o trabalho. Para não ter quaisquer responsabilidades, de preferência até paga à jorna. Ou seja, ao contrário da imagem burguesa de Hollywood, a pior situação laboral não é a do escravo, também não é a do servo da gleba, mas sim a do trabalhador assalariado quando não é objeto de qualquer proteção.
            Tudo isto vem a propósito do papel dos sindicatos e do direito à greve. De facto, se se percorre a primeira metade do séc. XIX e, em certas paragens, até bem mais tarde, percebe-se que, enquanto o movimento sindical não teve suficiente força, os trabalhadores industriais estiveram sujeitos à pior das explorações da história: horário de trabalho indeterminado, só limitado pelas condições ambientais ou orgânicas, trabalho infantil, castigos físicos especialmente, mas não só, aplicados às crianças, falta de condições de higiene e de segurança, as doenças e deficiências causadas pelo trabalho que apenas levavam ao despedimento, total ausência de folgas ou férias que não fossem o desemprego, etc. Aliás, os embriões de sindicalismo começaram por associações de previdência, tentando os próprios trabalhadores socorrer quem se via incapacitado de alguma forma. A primeira legislação laboral só surge em Inglaterra em 1830 (já a Inglaterra tinha entrado na revolução industrial há mais de 60 anos) para limitar o trabalho infantil quer na idade (9 anos) quer no horário de trabalho (12 horas), isto apenas no setor algodoeiro e, mesmo assim, pouco foi aplicada. As instituições estatais, governos, forças de segurança, tribunais eram defensoras, em primeiro lugar, do direito de propriedade dos meios de produção através do qual se poderia exercer livremente a exploração visto os trabalhadores aceitarem (que remédio...) a relação assalariada. O caminho para o reconhecimento legal dos sindicatos, para um muito lento e gradual reconhecimento de direitos dos trabalhadores até ao reconhecimento do direito à greve, foi um caminho muito árduo, muito amargo, muito tortuoso, cheio de cadáveres e de estropiados, cheio de miséria e de opressão, para que possa ser ignorado pelos jovens turcos dos setores mais liberais. Aliás, o facto de se ter desviado em boa parte para movimentos revolucionários resultou da frustração de não ver os mais elementares direitos reconhecidos e de justas reivindicações serem respondidas com duras repressões. Mesmo depois de cerca de metade do mundo ter passado por movimentos revolucionários socialistas ou progressistas (para utilizar a linguagem já clássica) e só não ter atingido a outra metade porque o medo da revolução levou o capitalismo a abrir os cordões da bolsa, permitindo a criação de fortes classes médias, haver ainda quem considere que as questões laborais são questões políticas de menor importância é algo que entraria no domínio do anedótico, não fosse a seriedade que está a atingir.
            Não é por acaso que um dos primeiros objetivos da mentalidade técnica que tem orientado as sucessivas reformas na educação é o de diminuir ou até, se possível, eliminar a formação histórica. E não estou apenas a falar da disciplina de História ou do desejado fim das disciplinas. Em Filosofia, por exemplo, passou a ser proibido ensinar qualquer pensamento político que não o de alguns autores norte-americanos da 2ª metade do séc. XX. Todas as reformas a que assisti, desde a reforma de Roberto Carneiro, tiveram sempre este desígnio. Com a eliminação da consciência histórica, cada ideologia pode impor as suas perspetivas como se fossem naturais, qualquer coisa eternamente óbvia, aceitável por si como aceitamos as palavras da nossa língua. Assim, os jovens poderão não perceber que quando os empregam como colaboradores lhes estão a sonegar a dignidade conquistada historicamente para o trabalho e o trabalhador. Qualquer empresário que use a palavra “colaborador” coloca-se imediatamente num campo ideológico extremamente reacionário onde perpassa o desejo de regressar às condições da relação produtiva do início do séc. XIX. Assim, sem argumentos, transmite-se imediatamente a ideia de que a produção das empresas é dos proprietários, resultado da ação dos gestores e que os trabalhadores apenas estão ali a colaborar, vendendo a sua prestação de serviços. A mesma vontade de eliminar a consciência histórica se nota do lado da esquerda quando tenta passar o atual discurso dos géneros (e não sexos) e das identidades como se fosse algo concebido desde todo o sempre e uma antiga luta dos direitos humanos. Com esse objetivo, se banem livros para que as novas crianças não tenham possibilidade de contactar com o passado da sua própria cultura e, se não houver oposição, a proibição de livros e de exibições virá a ser bem mais extensa. Para tornar clara a minha posição, devo dizer que sempre considerei muitos dos contos infantis repugnantes e absurdos, apenas com interesse psicanalítico, mas isso nunca me levaria a exigir que fossem banidos. Além disso, muitos dos mais absurdos como o Pinóquio não terão sido banidos das bibliotecas por não envolverem questões de género. Assim, da esquerda e da direita, há um esforço, na minha opinião só possível na mentalidade técnica, para banir a consciência histórica e introduzir as suas definições ideológicas como se fossem intemporais e indiscutíveis, sempre com objetivos autocráticos dissimulados.
            A greve tornou-se um direito consagrado na nossa constituição por ter sido historicamente o instrumento pelo qual se conseguiu equilibrar as relações produtivas e assegurar uma maior justiça laboral. Sem este fundamento histórico, a greve é, na maioria dos casos, uma quebra contratual que justificaria legitimamente o despedimento. Só não digo “em todos os casos” visto existirem casos que são causados por quebras contratuais anteriores dos patrões. A alternativa à greve regulada que temos, quando a exploração se torna insustentável, é a revolução. Aliás, no tempo em que o direito à greve não estava consagrado, não só as greves eram associadas a violência e a morte, mas levavam, muitas vezes, ao extremar dos movimentos dos trabalhadores até os tornar, se já não o eram, revolucionários. Todas estas considerações vêm a propósito de declarações recentes de Daniel Oliveira, aliás meros lugares comuns da esquerda, da distinção entre o sindicalismo solidário tradicional e este pós-sindicalismo corporativista evidenciado na greve dos camionistas de matérias perigosas. Daniel Oliveira contrapunha ao sindicalismo solidário de classe o sindicalismo de maquinistas, de pilotos de aviação e destes camionistas. Mas a solidariedade do restante sindicalismo há muito que se tornou um mito e só existe nas cabeças dos ideólogos da esquerda.
            Penso que passados 30 anos poderei relatar alguns pormenores de uma experiência minha, comum a muita gente em muitos setores. Fui, há mais de 30 anos, bagageiro no aeroporto de Lisboa. Era subcontratado por uma empresa de que nem me lembro o nome e com a qual só contactei umas duas ou três vezes. Na verdade, usava fardas da TAP, estava integrado no trabalho da TAP, tinha superiores da TAP e era em tudo um trabalhador da TAP, exceto nos vencimentos e regalias. Ora, existiam também bagageiros da própria TAP. Passavam os dias encostados à parede, sem fazer literalmente nada enquanto não viesse um deficiente ou outro incapacitado para tirar dos aviões, com o objetivo de receber as gorjetas, ou enquanto não surgisse um passageiro que precisasse de passar bagagem a mais pelo check in. Repentinamente, lá apareciam eles atrás das balanças e à frente do tapete rolante para logo desaparecerem em seguida. Não sei quanto ganhariam a mais que os subcontratados, três, quatro, cinco vezes mais, isto sem contar com inúmeras regalias, entre as quais viagens grátis que tive a oportunidade de testemunhar. Mesmo assim, não perdiam uma oportunidade para trabalhar o menos possível e sacar o mais possível. Portavam-se como um gangue mafioso que não admitia concorrência. Quando dois dos colegas subcontratados resolveram imitar os contratados a passar bagagem excessiva, um deles porventura o mais trabalhador do nosso grupo, foram imediatamente denunciados pelos “camaradas” contratados e imediatamente despedidos. Para nós, não existia sindicato. O sindicato defendia os seus trabalhadores, os contratados da TAP. Presumo que nos viam senão como infra-humanos, pelo menos como infra-trabalhadores. Para a empresa, desconfio que os contratados eram vistos como prejuízos fixos com os quais tinham de arcar e que eram compensados pelos bem mais baixos salários pagos à empresa subcontratada, dos quais receberíamos cerca de metade, se tanto. Talvez não com uma atitude tão acintosa, vi o mesmo menosprezo, durante muito tempo, nos sindicatos dos professores pelos trabalhadores precários. A atitude pareceu mudar mais recentemente, mas os meus colegas contratados negam o que acabei de dizer.
            O mesmo desprezo pela população trabalhadora vejo nas sucessivas paralisações que não provocam qualquer dano à entidade patronal, mas sim exatamente à população trabalhadora. Há a expetativa que os cidadãos, se a luta tiver de durar, acabem por pressionar os políticos a pressionar os conselhos de administração ou que os conselhos de administração cedam antes disso, muito embora estejam a ser financeiramente beneficiados com a greve. A população trabalhadora, porém, vê-se muito prejudicada, até chegar a perder o seu emprego precário, olhando para aqueles que considera privilegiados como o verdadeiro inimigo, em vez dos patrões ou do Estado. Ora, Daniel Oliveira considera este dano um dano necessário para benefício do bom sindicalismo. Não parece ver que é isto que leva a que se vá avolumando, ao longo das décadas, a oposição ao sindicalismo. Mas não só. Passando para o caso dos professores, quando um trabalhador sindicalizado é objeto de um procedimento ilegal, a não ser que tenha grandes cunhas, escusa de ter esperanças que o sindicato o defenda. Não só eu mas muitos colegas o relatam. O procedimento é sempre ou o de procedimentos dilatórios até à desistência, mesmo que os professores assumam as custas judiciais, ou o da pura ausência de resposta. Por isso, ao fim de quase 30 anos de sindicalização, desfiliei-me há cerca de dois meses. Para que servem então os sindicatos se não servem para defender os associados? Os pagamentos dos associados vão para onde? Os dirigentes não precisam deles porque continuam a ser pagos pelo Estado. Os escassos funcionários pouco custam. Ações judiciais só para alguns eleitos. Procedimentos administrativos não têm grandes custos.
É um segredo de Polichinelo. Vejam-se os recursos usados em sucessivas manifestações e outras atividades sindicais, autocarros, instalações sonoras ao longo de avenidas inteiras, etc, etc. E qual é a vantagem das mesmas para os trabalhadores? Nenhuma. Greves e manifestações seguem o ritmo da conveniência do calendário partidário. São ações para aparecerem nos telejornais. Quando já não convêm, assinam-se memorandos que são verdadeiras capitulações, mas que mais tarde os sindicatos dizem que foram desrespeitados sem que ninguém intelectualmente honesto veja onde. Antes, mesmo havendo razões para a luta durante anos, nada se faz, mas, assim que se aproximam as eleições, os partidos utilizam dissimuladamente a sua tropa fandanga para prejudicar o partido do governo. Se os trabalhadores não respeitam os condicionamentos sindicais e desatam a agir inorganicamente como aconteceu durante o ministério de Maria de Lurdes Rodrigues, os sindicatos vão a correr tentar controlar os movimentos informais e, logo a seguir, depois de controlados, assinam um memorando em que os traem. Recentemente, algo semelhante aconteceu com o STOP, mas aí, parece-me, sob controlo de outro partido. Assim, o alegado sindicalismo solidário de Daniel Oliveira resume-se a isto, a atuação a mando dissimulado de estratégias partidárias. De resto, estão-se positivamente a borrifar para a solidariedade dos trabalhadores, por exemplo, com os trabalhadores precários, apenas disfarçando o facto com declarações genéricas edificantes de dirigentes sindicais e partidários. E uma grande parte dos trabalhadores sente isso e afasta-se cada vez mais do sindicalismo. Por exemplo, costuma-se dizer que os sindicatos dos professores são muito fortes. Já nem falando dos micro-sindicatos que beneficiam de todas as regalias apesar de quase só representarem os dirigentes, qual é a percentagem de professores associada das duas grandes federações sindicais? Faz-se questão de ocultar estes números, provavelmente para não terem de os aldrabar como acontece noutros casos, mas ficaria muito surpreendido se ultrapassasse os 20% dos professores. Logo, quando o governo ouve os sindicatos, tem a certeza de estar a ouvir os representantes dos trabalhadores? Ou é mais um caso da vanguarda de classe?
Regressando à precariedade, reconheço que este governo ou o conjunto da gerigonça foram os únicos que fizeram alguma coisa, parece-me, para diminuir a precariedade laboral de há muitas décadas para cá. O facto de estar a criticar os sindicatos por realizarem política partidária encapotada, não significa que considere tudo o que sai dos partidos mau, muito embora considere que o grau de predomínio desses partidos na vida política e social é intrinsecamente negativo, asfixiando a participação dos cidadãos e atraindo para os partidos os interessados em carreiras fáceis ou outras cunhas e privilégios. Daniel Oliveira contrapunha o sindicalismo de nichos profissionais, corporativo, ao sindicalismo de classe solidário. É isso que estou a contestar. Esse sindicalismo (não sei bem de que classe) só é solidário dos interesses partidários e, por vezes, até só de fações dentro dos partidos. Em vez de defender os seus associados, esse sindicalismo concentra os seus recursos em ações de luta que, muitas vezes, não trazem qualquer vantagem aos trabalhadores, mas servem apenas interesses da política partidária. Quando trazem vantagens aos trabalhadores, não deixam de estar articulados partidariamente e só não são indiferentes aos danos que causam a um grande número de trabalhadores porque utilizam esse dano como forma de pressão junto do governo, muitas vezes, embora nem sempre, em prol de carreiras já largamente privilegiadas. E as pessoas têm noção de tudo isto e afastam-se cada vez mais de tal sindicalismo, não apenas pela atuação malévola (segundo Oliveira) de um sindicalismo de nicho, mas por não se reconhecerem minimamente representadas no sindicalismo tradicional. Ora, este enfraquecimento do sindicalismo tem, por toda a parte, não em especial neste país, permitido uma situação cada vez mais frágil do trabalhador na relação laboral, enquanto meia dúzia de classes profissionais muito ligadas ao Estado se enquistam nos direitos adquiridos e permitem que ao seu lado se desenvolvam novas relações laborais sem direito a nada. Não é o sindicalismo de nicho que leva a isto, é o sindicalismo alegadamente solidário de Daniel Oliveira. De qualquer forma, mais tarde ou mais cedo, os abusos de ambos irão levar a que se ponha em causa o direito à greve e talvez aí se descubra que o séc. XIX não está assim tão longe.