16.10.18

O choque macartista de Isabel Moreira

A deputada Isabel Moreira ficou chocada, no recente programa Prós e Contras com a comparação da historiadora Raquel Varela entre o #metoo e o macartismo. Do meu ponto de vista, o que é interessante é analisar a razão de tal choque. O que o macartismo, liderado pelo  senador Joseph McCarthy, pretendia era perseguir os alegados inimigos da América por alegadas atividades comunistas, consideradas pró-soviéticas em pleno início da Guerra Fria. Acabou por se tornar uma campanha de depuração ideológica dos Estados Unidos que, para lá de centenas de detenções, teve como principal consequência para milhares de pessoas a perda dos seus empregos e a destruição das suas carreiras. Isto foi feito não apenas pelas audições e investigações do Senado e da Câmara dos Representantes, mas por duvidosos procedimentos judiciais e privados, entre os quais figura a célebre lista negra de Hollywood (entre muitas que foram redigidas na altura em diferentes ramos). O ambiente vivido nessa época, até meados dos anos 50, era um ambiente de “caça às bruxas” (referência, aliás, também a um episódio norte-americano, em Salem) em que a simples denúncia bastava para destruir a vida do visado, sem necessidade de qualquer processo judicial ou qualquer prova, o que também foi notório até nos muito duvidosos processos judiciais que também ocorreram. Para lá dos comunistas visados, todos os que mostrassem preocupações sociais e até muitos que nada tinham a ver com as preocupações progressistas, por exemplo por serem homossexuais, foram banidos do seu emprego e/ou da sua carreira. Mesmo após a queda em desgraça da campanha, muitos foram aqueles que continuaram banidos dos seus ramos.
Ora, o movimento #metoo, sobretudo a partir da sua expansão em Holywood, mostra características muito similares, sobretudo no que se refere à pretensão de simples denúncias, sem procedimentos judiciais, provocarem o despedimento e o banimento dos acusados. Argumenta-se com a dificuldade da prova, essa chatice, da mesma forma que o macartismo julgava que os comunistas estavam infiltrados e dissimulados pelo Estado e por toda o tecido económico, sendo necessário aproveitar todo e qualquer indício para os desmascarar. Se não se chegou a mais audições no Congresso, como as recentes relacionadas com a escolha do juiz para o Supremo, deve-se apenas ao facto de os republicanos terem a maioria, tal como acontecia no macartismo, mas com um sentido inverso – onde o macartismo foi impulsionado pela maioria, as alegações sem provas e de há longo tempo foram agora reprimidas pela mesma maioria. É perfeitamente evidente que o movimento #metoo tem grandes esperanças nas próximas eleições exatamente por isso. Ver-se-á se o ativismo feminista associado, apesar de um presidente caricatural que tinha tudo para beneficiar os democratas, conseguirá beneficiar o partido que apoia ou se, pelo contrário, o prejudicará. Da mesma forma, também o banimento dos acusados pretendido pelo movimento tem sido mais limitado que o desejado, como, aliás, se verificou nas declarações de alguns intervenientes do programa Prós e Contras, ao identificarem casos de acusados que tinham perdido o emprego e que, entretanto, já se encontravam de novo a trabalhar. Para lá destas limitações resultantes da limitação do seu poder, há outras características similares ao macartismo, não só por os gestos mais irrelevantes do passado, mesmo contra a opinião de alegadas vítimas, poderem ser transformados em indícios acusatórios, mas por se constituir como um exército em que a mínima crítica ao seu sector é respondida com protestos ensurdecedores e a mínima acusação dá origem a um coro de apoio. Por exemplo, é concedido exatamente o mesmo estatuto de vítimas a atrizes que disseram não aos abusos e viram as suas carreiras destruídas ou muito limitadas, e aquelas que os sofreram, se calaram, deixando que acontecessem com outras, e beneficiaram, na sua carreira, desses abusos. Ora, seria muito mais improvável que aquelas tivessem as suas carreiras destruídas, se as outras dissessem não ou, caso fossem violadas, se queixassem do crime. Isso significa que parece, no mínimo, injusto serem postas no mesmo saco. Claro que se pode argumentar com o medo, mas nunca se especifica que medo é esse, pois isso levaria à mesma conclusão. Visto não haver qualquer relato de homicídios ou outras violências físicas, para lá das violações, associado a estes meios, pelo menos nas últimas décadas, o medo em causa parece ser o de ver a sua carreira destruída. Mas foi isso que aconteceu às que resistiram, preferindo tal prejuízo à contemporização com o abuso.
A deputada Isabel Moreira ficou chocada com o paralelo por uma simples razão: porque o macartismo é um movimento de direita e o #metoo é de esquerda, partilhando, aliás, com ela o ideário. Para Isabel Moreira, um movimento que atropela os procedimentos judiciais é bom se for para atacar alegados predadores sexuais, é mau se for para atacar alegados comunistas. Se o #metoo conseguisse tanto poder como o macartismo e estendesse a sua ação ao congresso e às empresas, conseguindo mesmo julgamentos sem provas que não as denúncias, parece óbvio que aplaudiria a vitória do movimento. Daí o seu argumento da empatia, um argumento que procura arrastar as pessoas pela adesão emocional, o que desde a Antiguidade é considerado um procedimento sofístico e demagógico, destinado a conseguir que as pessoas pensem o menos possível, analisem o menos possível e reflitam o menos possível. Aliás, essa é a linguagem de Hollywood que sempre manipulou ideologicamente através dos seus filmes, nomeadamente arrastando as pessoas emocionalmente, como, aliás, bem tem consciência o movimento feminista e LGBT e, por isso, tem feito inúmeras exigências para mudanças nos argumentos e nos elencos. Resumindo, a Dr.ª Isabel Moreira ficou chocada com o paralelo porque nem lhe passa pela cabeça que o objeto da crítica seja o tipo de procedimentos, autocrático e a tender para totalitário, e não tanto o conteúdo ideológico desses procedimentos. Da mesma forma, um filme manipulador que transmitisse uma mensagem conservadora da família e da mulher seria repudiado, ao passo que um filme manipulador que transmitisse uma valorização da ideologia da identidade de género já seria bom. O caráter manipulador de ambos seria indiferente ou só não seria na medida em que servisse de argumento contra a ideologia a que se opõe. Há algum tempo, acusou Ricardo Araújo Pereira de ser de direita (ou ter pensamento de direita) por defender o primado da liberdade de expressão, alegando que a esquerda subordinava tal liberdade às bandeiras da ideologia que defende. É difícil perceber que parte da direita macartista aqui referida seria favorável à liberdade de expressão. E é difícil porque quer de direita, quer de esquerda, quem subordina a liberdade de expressão ao seu roteiro ideológico é o extremismo. O problema é que o Ricardo não é extremista e o Mexia também não, embora seja um de esquerda e o outro de direita, ao passo que o macartismo e Isabel Moreira são. A cisão está aqui entre democráticos e moderados, de um lado, e extremistas e autocráticos do outro.
Que Isabel Moreira não veja qualquer problema nos procedimentos do #metoo ou minimize os seus erros não é de admirar, porque ela é afinal talvez a maior representante desses procedimentos aqui mesmo em Portugal. Por delitos de opinião, Isabel Moreira já exigiu que as ordens profissionais banissem profissionais, incluindo decanos prestigiadíssimos, por muito conservadoras que sejam as suas opiniões, como Gentil Martins. Não se limitou a criticar como estaria em todo o seu direito e até no seu dever, tentou, como noutros casos, obter uma resposta punitiva. Também esteve na linha da frente na luta contra a campanha antitabágica da princesa ou no caso dos cadernos de exercícios, com o respaldo do poder através da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, sempre exigindo proibições, mesmo que isso representasse o desejo de proibir manifestações de ternura da maioria dos portugueses (com as quais, aliás, eu nem me identifico). Isto, aliás, mostra bem como o PS se tornou refém da linguagem e atitudes do ativismo feminista não só de Isabel Moreira, como de amplos sectores do Bloco, que, em muitos aspetos que poderei descrever noutra altura, é contrário a muito do feminismo tradicional. No programa Prós e Contras, foi referida a microfísica do poder estudada por Foucault. Mas se essa microfísica é condenável pela sua normatividade, não a deixa de ser se for feminista ou LGBT, desde que seja igualmente autocrática no limiar dos hábitos que nem são objeto de crítica. Ora, o que pessoas como Isabel Moreira claramente procuram é instituir uma normatividade alternativa mesmo que contrária à vontade da maioria dos portugueses. Daí que não seja de admirar a forma como encerrou o debate, a criticar o resultado da consulta pública por já saber que o resultado lhe não seria favorável. Contra o alegado sexismo português, ergueu a sua condenação moral de iluminada, como sempre aconteceu com todos os fanáticos, incapazes de aceitar a diversidade e julgando-se justificados pela superioridade da sua doutrina, a verdade. E se há coisa que é óbvia em todas as intervenções de Isabel Moreira é a sua inflexibilidade tão fanática, quanto obtusa, incapaz de qualquer compreensão subtil da realidade, ancorada sempre em verdades absolutas. Já não é a primeira vez, a partir do meu canto insignificante, que lanço o aviso para o PS que sempre foi um partido moderado e defensor da liberdade de expressão: está a deixar-se colonizar por uma linguagem que é reflexo de um ideário extremista e autocrático, hipotecando a sua tradição.
Finalmente, há mais um aspeto em que o #metoo e o ativismo feminista recente, e o macartismo se aproximam, desta vez no âmbito do próprio conteúdo: o conservadorismo sexual, o puritanismo. Naturalmente, os seus ataques não incidem exatamente nas mesmas práticas, mas a mesma intenção puritana está lá, tendo como alvo as práticas de sedução, tantas vezes transgressoras até por parte de tantas mulheres (como posso pessoalmente testemunhar abundantemente, apesar de serem casos há muito passados como vários do #metoo). E não é de admirar que por cá, depois de décadas a lutar contra a direita a favor da educação sexual, seja o PS que tenha acabado de banir o seu caráter obrigatório. Também não é de admirar que o género e não o sexo, mesmo no que toca à igualdade, seja o que figura entre as temáticas obrigatórias. Só quem não estudou estes assuntos é que não percebe a importância destas mudanças terminológicas. A instituição da nova microfísica do poder emanada dos setores feministas ativistas e seus aliados ainda está no início e só um sector tem-se mostrado, lá fora, suficientemente forte para se contrapor a este avanço: a extrema-direita. Porque se era evidente há muito a ascensão da extrema-direita, devido à desindustrialização do Ocidente permitida pelo comércio livre, o aumento da dívida, a concorrência desleal da globalização, etc., só faltava mesmo este projeto autocrático à esquerda para dar uma ajuda à captação de fiéis para as fileiras da extrema-direita, visto as forças democráticas não terem capacidade de uma oposição eficaz ao discurso dito politicamente correto. O Brasil não está assim tão longe e não me admirava que um dia destes um Ventura, depois de ser menosprezado por toda a opinião bem-falante, se tornasse o nosso Bolsonaro ou o nosso Orban ou o nosso Trump. E, no final, é isto o mais triste: como é que o feminismo que garantiu uma extensa igualdade sexual jurídica, incluindo inúmeras disposições legitimamente diferenciadoras do estatuto da mulher, iniciou esta deriva intolerante que tenta impor um projeto normativo que se tornou intolerável? como é que os ativistas LGBT se não contentaram com a tolerância sexual legalmente consagrada que muito os protegia e desataram, em vários países, a impor normas de género contrárias às convicções da maioria da população e às próprias necessidades da convivência social? e como não viram que, se conseguissem sequestrar com estes projetos o poder moderado, como conseguiram em tantos países, estavam a empurrar vastos sectores da população para a extrema-direita? Naturalmente, não serão o único fator, mas, pelo que tenho ouvido da boca de tantos alunos ao longo dos anos, são um fator decisivo. Embora Bolsonaro ande a calar muitas das suas opiniões mais extremistas enquanto não tem os votos garantidos, fez questão de sublinhar a intenção de banir das escolas a ideologia do género. Fê-lo porque isso dá votos. Um outro indício ocorreu há algum tempo quando Judith Butler foi impedida de proferir uma conferência numa universidade brasileira não por velhos mas por jovens, tal como aconteceu tanta vez em sentido contrário nas universidades norte-americanas. Não é só a crise, o crime e a corrupção que impulsionaram Bolsonaro. Existe uma saturação das verdades absolutas da esquerda que tem impulsionado, por toda a parte, a extrema-direita. E o que é triste é que esta esquerda, convencida não só da sua verdade mas também do seu poder, tem alienado, arrogantemente, inúmeras pessoas de esquerda como eu ou a Raquel Varela que já não se podem rever neste ideário. Pelo menos, quando se verificar a ascensão da extrema-direita, estarei, enfim, a lutar e talvez a morrer do mesmo lado dessa esquerda. Mas não me esquecerei das suas responsabilidades...