4.8.19

A dita ideologia de género


            Tinha jurado não tratar mais esta questão agora que foi apropriada, mesmo em Portugal, pela extrema-direita e por alguma Igreja Católica. Sinto, porém, necessidade de definir a minha posição, espero que pela última vez. Primeiro, nada há de inconstitucional no artigo 12º e, pelo contrário, há muito de inconstitucional nas iniciativas e artigos adversos, visto estarem a opor-se à proteção de potenciais ou efetivas vítimas. Segundo, a ideologia de género era expressa pelos conservadores quando utilizavam a palavra género como eufemismo de sexo, associando toda uma série de papéis, estatutos e atitudes a cada género que não passava de uma construção cultural normativa. Terceiro, se é inconstitucional defender uma ideologia, é inconstitucional defender a constituição que é um documento ideológico, o que é absurdo tratando-se da lei fundamental do país. Quarto, também é ideológico defender a democracia, o empreendedorismo, uma conceção técnica do saber, a família como estrutura fundamental da sociedade, etc. Quinto, pertenço ao Agrupamento onde ocorreu a sessão que escandalizou, há alguns meses, alguns dirigentes do PSD e considerei a sua reação como típica (no mínimo) do Diácono Remédios. Sexto, considero a liberdade sexual uma conquista civilizacional tão ou mais importante que a liberdade de expressão ou de associação.
             Mas, ao ouvir certas figuras de esquerda, como o Daniel Oliveira, pergunto-me se se trata simplesmente de alguém ignorante, o que me parece muito improvável, ou se o seu sectarismo o impede de não ser falacioso. Como é que a conceção conservadora de género é ideológica e a conceção das múltiplas identidades de género não o é? Diz o Daniel que não há nenhum ideólogo a defender essas identidades. Das duas uma, ou o Daniel na sua novilíngua não considera os teóricos ativistas como ideólogos mas como cientistas (o que não seria novo na tradição marxista), não admitindo, contra o próprio pensamento de esquerda, por exemplo, da escola de Frankfurt, que a própria ciência possa ser ideológica, ou o Daniel é de uma ignorância boçal, o que eu não acredito tendo em conta a sua experiência política. Por exemplo, se Judith Butler não é uma ideóloga neste domínio, é o quê?
            Passando agora ao conteúdo ideológico em questão, se a defesa da identidade de género se cingir à defesa da liberdade da sua construção performativa, até como cultura alternativa à cultura tradicional, não vejo razões senão para apoiá-la com unhas e dentes. Porém, se essas identidades forem impostas de forma normativa, que é o que alguma esquerda (a dita, pela direita, cultural) internacional e nacionalmente tem feito, não só tomando-as como referências legais, criminais e desportivas, mas sancionando, por exemplo, quem se recusar a usar, de acordo com as suas convicções, os novos pronomes criados, conta com a minha oposição, nuns casos por adulterarem a verdade objetiva (isso é o menos, podendo ser superado), noutros por significarem uma imposição ditatorial contra direitos individuais fundamentais. Da mesma forma, parece-me absurdo que se proteja todas as manifestações das novas identidades de género e se proíba ou se tente proibir as manifestações das identidades de género tradicionais, o que já aconteceu no nosso país e está a acontecer, de forma muito mais radical, noutras partes. Aliás, isto faz-me lembrar a atitude de muitas feministas que, nas suas abordagens, por vezes camufladas pela forma abstrata como tratam os assuntos, por vezes de forma declarada, parecem ter como alvo preferencial dos seus ataques as escolhas de muitas mulheres. Se o valor primário aqui envolvido é o da liberdade, não há géneros de primeira e géneros de segunda, assim como não há mulheres de primeira e mulheres de segunda, e trabalhadores de primeira (os dos partidos dos trabalhadores) e trabalhadores de segunda (a maioria que vota noutros partidos). Mas se o que se pretende é uma engenharia social feita à medida dos ativistas de esquerda, não vejo porque me devo opor menos a ela que à engenharia social que era defendida pelos conservadores.
            Uma última referência: não é o único caso, longe disso, em que estas novas correntes me parecem ter características conservadoras até contrárias à liberdade sexual. Porém, quando percorro as dezenas de rótulos fabricados in USA relativos às identidades de género ou às orientações sexuais, não posso deixar de me questionar algo para lá desta necessidade de rótulos. Como é que estes rótulos se opõem tanto aos géneros tradicionais e acabam por tanto os reproduzir? Por exemplo, porque é que implica ser masculino gostar de figuras violentas e ser feminina implica gostar de bonecas? Ora, em muitos destes rótulos, afirma-se um género ou a fluidez entre eles apenas porque a sua performatividade se desloca para um determinado género segundo as conceções tradicionais. Os conservadores chamavam maria-rapaz às raparigas que tinham gostos e desempenhos que esses conservadores achavam masculinos. Ora, muitas das formulações das novas identidades fazem exatamente o mesmo tomando como referência rigorosamente os mesmo padrões.
            Pronunciei-me de novo porque o assunto (como outros) está a ser monopolizado pelos extremistas de ambos os lados. Há muitas pessoas que não querem abordar o assunto para não serem confundidas com um dos extremos. Mas isto faz com que o domínio público só conheça, cada vez mais, os discursos extremistas, sendo manipulado por uma gigantesca falácia do falso dilema. Foi por isso que, falhando a um anterior compromisso, resolvi pronunciar-me.