4.8.19

A dita ideologia de género


            Tinha jurado não tratar mais esta questão agora que foi apropriada, mesmo em Portugal, pela extrema-direita e por alguma Igreja Católica. Sinto, porém, necessidade de definir a minha posição, espero que pela última vez. Primeiro, nada há de inconstitucional no artigo 12º e, pelo contrário, há muito de inconstitucional nas iniciativas e artigos adversos, visto estarem a opor-se à proteção de potenciais ou efetivas vítimas. Segundo, a ideologia de género era expressa pelos conservadores quando utilizavam a palavra género como eufemismo de sexo, associando toda uma série de papéis, estatutos e atitudes a cada género que não passava de uma construção cultural normativa. Terceiro, se é inconstitucional defender uma ideologia, é inconstitucional defender a constituição que é um documento ideológico, o que é absurdo tratando-se da lei fundamental do país. Quarto, também é ideológico defender a democracia, o empreendedorismo, uma conceção técnica do saber, a família como estrutura fundamental da sociedade, etc. Quinto, pertenço ao Agrupamento onde ocorreu a sessão que escandalizou, há alguns meses, alguns dirigentes do PSD e considerei a sua reação como típica (no mínimo) do Diácono Remédios. Sexto, considero a liberdade sexual uma conquista civilizacional tão ou mais importante que a liberdade de expressão ou de associação.
             Mas, ao ouvir certas figuras de esquerda, como o Daniel Oliveira, pergunto-me se se trata simplesmente de alguém ignorante, o que me parece muito improvável, ou se o seu sectarismo o impede de não ser falacioso. Como é que a conceção conservadora de género é ideológica e a conceção das múltiplas identidades de género não o é? Diz o Daniel que não há nenhum ideólogo a defender essas identidades. Das duas uma, ou o Daniel na sua novilíngua não considera os teóricos ativistas como ideólogos mas como cientistas (o que não seria novo na tradição marxista), não admitindo, contra o próprio pensamento de esquerda, por exemplo, da escola de Frankfurt, que a própria ciência possa ser ideológica, ou o Daniel é de uma ignorância boçal, o que eu não acredito tendo em conta a sua experiência política. Por exemplo, se Judith Butler não é uma ideóloga neste domínio, é o quê?
            Passando agora ao conteúdo ideológico em questão, se a defesa da identidade de género se cingir à defesa da liberdade da sua construção performativa, até como cultura alternativa à cultura tradicional, não vejo razões senão para apoiá-la com unhas e dentes. Porém, se essas identidades forem impostas de forma normativa, que é o que alguma esquerda (a dita, pela direita, cultural) internacional e nacionalmente tem feito, não só tomando-as como referências legais, criminais e desportivas, mas sancionando, por exemplo, quem se recusar a usar, de acordo com as suas convicções, os novos pronomes criados, conta com a minha oposição, nuns casos por adulterarem a verdade objetiva (isso é o menos, podendo ser superado), noutros por significarem uma imposição ditatorial contra direitos individuais fundamentais. Da mesma forma, parece-me absurdo que se proteja todas as manifestações das novas identidades de género e se proíba ou se tente proibir as manifestações das identidades de género tradicionais, o que já aconteceu no nosso país e está a acontecer, de forma muito mais radical, noutras partes. Aliás, isto faz-me lembrar a atitude de muitas feministas que, nas suas abordagens, por vezes camufladas pela forma abstrata como tratam os assuntos, por vezes de forma declarada, parecem ter como alvo preferencial dos seus ataques as escolhas de muitas mulheres. Se o valor primário aqui envolvido é o da liberdade, não há géneros de primeira e géneros de segunda, assim como não há mulheres de primeira e mulheres de segunda, e trabalhadores de primeira (os dos partidos dos trabalhadores) e trabalhadores de segunda (a maioria que vota noutros partidos). Mas se o que se pretende é uma engenharia social feita à medida dos ativistas de esquerda, não vejo porque me devo opor menos a ela que à engenharia social que era defendida pelos conservadores.
            Uma última referência: não é o único caso, longe disso, em que estas novas correntes me parecem ter características conservadoras até contrárias à liberdade sexual. Porém, quando percorro as dezenas de rótulos fabricados in USA relativos às identidades de género ou às orientações sexuais, não posso deixar de me questionar algo para lá desta necessidade de rótulos. Como é que estes rótulos se opõem tanto aos géneros tradicionais e acabam por tanto os reproduzir? Por exemplo, porque é que implica ser masculino gostar de figuras violentas e ser feminina implica gostar de bonecas? Ora, em muitos destes rótulos, afirma-se um género ou a fluidez entre eles apenas porque a sua performatividade se desloca para um determinado género segundo as conceções tradicionais. Os conservadores chamavam maria-rapaz às raparigas que tinham gostos e desempenhos que esses conservadores achavam masculinos. Ora, muitas das formulações das novas identidades fazem exatamente o mesmo tomando como referência rigorosamente os mesmo padrões.
            Pronunciei-me de novo porque o assunto (como outros) está a ser monopolizado pelos extremistas de ambos os lados. Há muitas pessoas que não querem abordar o assunto para não serem confundidas com um dos extremos. Mas isto faz com que o domínio público só conheça, cada vez mais, os discursos extremistas, sendo manipulado por uma gigantesca falácia do falso dilema. Foi por isso que, falhando a um anterior compromisso, resolvi pronunciar-me.

13.7.19

As quotas políticas e a democracia


            Em vez de reduzir ao absurdo, em certos casos, a cada vez mais perseguida bandeira da esquerda das quotas políticas contra qualquer forma de discriminação, o que poderia sempre ser objetado com a necessidade de corrigir injustiças natural ou socialmente existentes, gostaria de abordar a questão sob o ângulo do próprio regime. Toda esta questão só se coloca porque o nosso regime não é uma democracia. E eu próprio que não sou grande democrata, visto considerar que os critérios democráticos devem ser limitados por outros, sobretudo os critérios de saber, muito embora considere, como republicano, que só os critérios democráticos se fundamentam numa soberania legítima, não posso deixar, neste caso, de criticar a falta de democracia. Como grande parte das pessoas recebe e usa estes conceitos sem neles pensar, está tão habituada a encher a boca com a palavra democracia que até lhe pode parecer uma alarvidade o que estou a dizer. Na verdade, há muito de não democrático no nosso regime. Por exemplo, o poder judicial, um dos poderes políticos básicos do regime (e não um poder oposto ao poder político como os nossos políticos costumam dizer), não tem qualquer legitimação democrática ­– e podia tê-la, não há nada que impeça, em absoluto, a existência de eleições, limitadas ou não, neste poder. Mas, no próprio poder legislativo, os cidadãos não podem escolher livremente os seus representantes que, exatamente por isso, não são considerados, na nossa Constituição, representantes dos seus eleitores, mas do país, uma abstração que oculta a representação, de facto, do aparelho do Partido.
A questão das quotas só existe porque as listas para deputado são uma construção burocrática da direção e do aparelho do Partido. Os cidadãos não se podem candidatar e serem representantes de outros cidadãos a não ser que pertençam a uma fação, onde consigam a aprovação daquele nicho de pessoas para pertencer a uma lista em bloco de centenas de nomes (incluindo os suplentes). Dizem por aí que os partidos são necessários à democracia. Não, não são. Não existiam na democracia original e os partidos, por exemplo, do séc. XIX estavam muito longe destes aparelhos atuais de dominação quer para tutelar os seus, quer para dominarem o próprio aparelho de Estado, verdadeiros Estados dentro do Estado. A história que levou a estes Partidos não é, aliás, uma história muito democrática. Hoje, todos seguem essa construção do aparelho, mas não é por acaso que nos partidos de esquerda o líder é já tradicionalmente o Secretário-Geral, ou seja, o chefe do aparelho burocrático.
Só com uma estrutura tão deformada de democracia é que poderia surgir o problema das quotas. De facto, se os Partidos decidem a constituição das listas, essa própria constituição das listas pode ser vista como uma forma de formatar o regime e, consequentemente, a sociedade, ou seja, como um projeto executivo. Ora, isso é um cerceamento nada democrático do poder legislativo do povo. Como em várias disposições da nossa constituição, o nosso regime adota uma atitude paternalista em relação ao povo, procurando protegê-lo das suas escolhas. Se o regime fosse democrático, toda a sua legitimidade deveria provir das escolhas do povo, ou seja, de cada um dos cidadãos. E talvez seja necessário este último esclarecimento (que o povo é os cidadãos) devido a possíveis estranhas noções de povo... Ora, neste caso, se os cidadãos decidissem escolher só mulheres ou só ciganos ou só gordos, isso resultaria do legítimo e soberano direito do povo. Os cidadãos não deveriam ser sistematicamente cerceados nas suas escolhas como se uma elite tivesse o direito de fazer escolhas prévias pelos cidadãos, garantindo o respeito de princípios que os cidadãos poderiam não querer respeitar. Numa democracia, se o povo não quisesse respeitar esses princípios, tinha esse direito, até porque a própria Constituição (onde deverão estar os tais princípios) deveria depender desses mesmos cidadãos. Se se é verdadeiramente democrata, não se deveria ter medo do povo – ter medo do povo e querer cercear os seus direitos cívicos é próprio de autocracia e não de democracia. Ora, os nossos “democratas” têm a estranha noção de um ponto de vista democrático que o povo precisa de ser educado, orientado e não pode ser deixado a decidir tudo e mais alguma coisa. Com que direito democrático o julgam? Nenhum, pois se trata claramente de um juízo aristocrático que julga uns quantos com direito de decidir em vez do povo e com direito de limitar a decisão do povo. Porém, nunca mencionam qualquer outro critério que não o democrático.
As listas de deputados são listas de funcionários que até aceitam se submeter à indignidade da disciplina de voto. Depois, fazem declarações de voto que julgam salvar-lhes a face. De facto, essas declarações só aumentam a indignidade. Se se julga dever votar num sentido por consciência ou por representação dos eleitores e não se vota por se estar a representar o Partido, instância que não é nem um órgão do Estado, nem a fonte da soberania (que está nos cidadãos), permite-se a subordinação dos membros de um órgão de soberania a uma organização privada. Se estivéssemos numa verdadeira democracia, a disciplina de voto partidária deveria ser legalmente proibida visto cercear a liberdade e o poder dos deputados como representantes dos cidadãos. Quanto aos argumentos relativos à sustentação dos executivos, isso é tomar o que foi decidido para criar a dependência dos partidos como a causa dessa dependência. Os executivos deveriam ter uma legitimidade própria que garantisse a separação de poderes. Utiliza-se a sustentação parlamentar do poder executivo para limitar a soberania dos deputados, até porque o principal objetivo é cercear a soberania do povo, limitando as suas opções pela pressão do chamado voto útil. Entretanto, utiliza-se a legitimidade popular do Presidente para apenas fazer de rei através de um abstrato poder moderador que não cumpre nenhuma função na arquitetura do Estado, a não ser a de ser mais um recurso para limitar as decisões democráticas.
Enchem a boca os nossos políticos com queixumes acerca do afastamento dos cidadãos da política. Se não quisessem esse afastamento, procurariam tornar o nosso regime cada vez mais democrático. Pelo contrário, cada vez o tornam menos democrático e mais paternalista. E isto ocorre porque os nossos políticos desejam mais que as suas políticas vençam do que seja o povo a decidir quem ou o quê vença.É verdade que se poderá dizer que se decidem tais limitações da decisão do povo através da decisão do povo. Mas, exatamente, essa era a distinção tradicional entre democratas e autocratas como os fascistas, a defesa de que as decisões políticas devem estar constantemente dependentes da soberania do povo e não devem ser submetidas a uma elite.  Os autocratas também podem concorrer às eleições democráticas. A sua vitória, mesmo que por meios democráticos, limita ou elimina, porém, a própria democracia. Só que, afinal. talvez não sejam só os fascistas a limitar a democracia, sendo assim antidemocráticos... 

16.6.19

A hipersensibilidade e o totalitarismo


            Muitos se lembrarão da polémica com o cartoon de António. Foi publicado em Portugal sem que ninguém lhe desse atenção, até por expressar algo que há muito muitos pensam, que, no que toca ao Médio Oriente, Israel parece sistematicamente a superpotência e os Estados Unidos um aliado submisso. A única exceção que se costuma admitir é a do consulado de Obama. De alguma forma, o cartoon foi parar ao New York Times e aí quer o lobby judeu, quer o lobby israelita (que são coisas diferentes que muitos gostam de confundir) se insurgiram contra um alegado caráter antissemita do desenho. A prova seria a estrela de David como se esta não estivesse na bandeira de Israel e como se o caricaturado não fosse o primeiro-ministro desse país. Na verdade, não é a primeira vez, nem será a última que os sectores pró-israelitas reagem a toda e qualquer crítica com a cartada do antissemitismo. Ora, isso pode permitir que Israel possa fazer tudo o que lhe der na gana que qualquer acusação poderá ser sempre alcunhada de antissemita. Mas, se isto não é novo, já são novas as reações do Times: primeiro, pedindo desculpa e, depois, sobretudo, decidindo deixar de ter no jornal quaisquer cartoons.
            Sempre existiram pessoas hipersensíveis que reagiam a qualquer piada, crítica ou tese rasgando vestes e apresentando todo o tipo de protestos. Sempre houve alguns sectores cujo poder permitia, aliás, conseguir censurar este ou aquele autor, fosse humorista ou não. Porém, até há algum tempo, existia uma paulatina progressão da liberdade de expressão no mundo ocidental. Isso alterou-se recentemente, com a agravante de nem se tratar de um simples regresso às censuras anteriores. O que tem acontecido nos últimos tempos é de uma outra ordem. De facto, os mais diversos sectores extremistas conseguiram arregimentar vastas franjas da população, sobretudo da juventude, umas mais conscientes do que estão a fazer do que outras, que procuram proibir toda e qualquer expressão que, por qualquer motivo, alguns verdadeiramente caricatos, julguem ofensiva, suscetível de ser vista como crítica (justa ou não, isso pouco importa) ou até simplesmente adversa à sua posição, como se estivesse proibida a possibilidade de ter posições diversas. Sobretudo, certos jovens, como noutros tempos sempre entusiásticos para levar a cabo uma revoluçãozita cultural, procuram calar toda e qualquer expressão de ideias que não sejam aquelas que, do seu ponto de vista, sempre muito pouco crítico e muito pouco refletido, serão as que correspondem à conceção correta da realidade. Não se trata de discordar, até por raramente apresentarem argumentos ou serem bem pobres os poucos que apresentam, trata-se de tentar calar, de tentar banir, de tentar proibir, nem menos nem mais do que isso. O pior, porém, é que os nossos políticos, jornalistas e diretores de editoras e mass media têm cedido sistematicamente a esta tendência, visto serem profissionais da lisonja e estarem sempre preocupados a seguirem a direção para onde sopra o vento. Além disso, existem aqueles que, entre eles, são os verdadeiros promotores desses extremismos que os jovens simplesmente seguem de forma acéfala. Afinal, é importante recordar que Mao não era um jovem.
            A vigilância sectária desses extremistas é de tal ordem que inferniza as próprias relações sociais quotiodianas, constantemente procurando detetar a mínima expressão ou declaração que possa ser censurada pelo seu código. Isto alia-se, aliás, com a hipersensibilidade já típica da adolescência mas que, tradicionalmente, tinha de se confrontar quer com a realidade em geral, quer com a realidade da diversidade de perspetivas. O que acontecia, através desse confronto, é que as pessoas amadureciam. Agora, são proibidas de amadurecer porque é extremamente reforçado o direito à hipersensibilidade como se fora um direito humano universal e inalienável. O resultado é que qualquer capricho, qualquer tese inconsequente, qualquer atitude incoerente se mantêm sem poder ser objeto de qualquer crítica porque surgem os nossos novos guardas vermelhos, jovens turcos ou cavaleiros andantes a proteger a frágil donzela de todo o perigo. O mesmo se diga não apenas do confronto de teses, mas, por exemplo, das conversas onde hoje há que ter muito cuidado com qualquer piada, com qualquer declaração para picar, com qualquer diferença interpretativa, tudo estes zelotas vigiam para sancionar do alto da sua superioridade moral que, muitas vezes, é bem difícil ver onde foi adquirida. Desenvolve-se uma conceção assética das relações humanas em que as pessoas têm de ter muitíssimo cuidado com tudo o que dizem a não ser que seja para censurar as pessoas a que esses extremismos se opõem. Aí, como é costume, tudo pode ser dito até ao maior exagero possível. A este nível dos micropoderes desenvolve-se um verdadeiro totalitarismo cerceador da mais elementar liberdade, a liberdade referida no 1984 como a liberdade de dizer que 2+2=4. E a verdade é que a maioria das pessoas cede e, mesmo sem se recorrer à tortura, acaba por ver 5 ou 3 ou todos de uma vez.
            Ora, os macropoderes parecem incapazes de deter este totalitarismo e assumem-no cada vez mais, dando, aliás, argumentos às outras ideologias totalitárias mais tradicionais que vão ganhando notoriamente força. Neste ambiente de cada vez maior censura, sempre justificado por razões moralistas simplórias, como as que podem ser apresentadas por qualquer pessoa com não muita inteligência, tendo em conta a diversidade de níveis intelectuais que constitui um bando de extremistas, para que qualquer dos membros as possa reproduzir, toda a liberdade cívica e política está ameaçada. Não se trata apenas da liberdade de dizer 2+2=4, mas também a liberdade de errar, a liberdade de pensar teses diversas, a liberdade de se ver confrontado com essa diversidade e até crescer intelectualmente com ela. É preciso resistir. É preciso denunciar os censuradores. É preciso que NY Times tenha vergonha não da liberdade de expressão, mas de a censurar. Toda a sociedade pluralista está em perigo. É preciso não contemporizar e continuar a falar por muito que tentem todo o diverso calar. É preciso dizer o que cada qual julga e não se deixar intimidar. É preciso argumentar, é preciso declarar, é preciso fazer frente.   

20.4.19

O sindicalismo solidário de Daniel Oliveira


            Discordo, totalmente, da tendência de muitos escritores, entre os quais alguns que particularmente muito aprecio como Marcuse, a considerar como escravatura o trabalho assalariado. Julgando estar a sublinhar o caráter opressivo dessa relação produtiva, anulam na verdade a sua compreensão específica até naquilo que tem de mais desumano. Poderá ser bom para a expressividade poética, mas é péssimo para a compreensão da realidade. Considerada de forma abstrata, pode-se dizer que, na escravatura, é do interesse do dono preservar a sua propriedade. Causar-lhe dano, deixá-lo esfomeado, permitir que ele adoeça com uma doença evitável ou que não seja tratado, deixá-lo, sem vestuário ou habitação, exposto aos elementos, tudo isso é algo que não é do interesse do dono que aconteça ao escravo porque são formas de destruir ou desvalorizar a sua propriedade, para lá de diminuir a sua capacidade de produção. Pelo contrário, o trabalhador assalariado vende um serviço, o seu trabalho, e o patrão não precisa de se preocupar com a sua saúde, a sua alimentação, o seu vestuário ou a sua habitação. Especialmente em situações de miséria das classes baixas, desde a revolução industrial, há sempre uma explosão demográfica que permite encontrar sempre nova mão-de-obra. Assim, como em qualquer mercado, o patrão tenta, como qualquer cliente, pagar o menos possível pela mercadoria, neste caso, o serviço que é o trabalho. Para não ter quaisquer responsabilidades, de preferência até paga à jorna. Ou seja, ao contrário da imagem burguesa de Hollywood, a pior situação laboral não é a do escravo, também não é a do servo da gleba, mas sim a do trabalhador assalariado quando não é objeto de qualquer proteção.
            Tudo isto vem a propósito do papel dos sindicatos e do direito à greve. De facto, se se percorre a primeira metade do séc. XIX e, em certas paragens, até bem mais tarde, percebe-se que, enquanto o movimento sindical não teve suficiente força, os trabalhadores industriais estiveram sujeitos à pior das explorações da história: horário de trabalho indeterminado, só limitado pelas condições ambientais ou orgânicas, trabalho infantil, castigos físicos especialmente, mas não só, aplicados às crianças, falta de condições de higiene e de segurança, as doenças e deficiências causadas pelo trabalho que apenas levavam ao despedimento, total ausência de folgas ou férias que não fossem o desemprego, etc. Aliás, os embriões de sindicalismo começaram por associações de previdência, tentando os próprios trabalhadores socorrer quem se via incapacitado de alguma forma. A primeira legislação laboral só surge em Inglaterra em 1830 (já a Inglaterra tinha entrado na revolução industrial há mais de 60 anos) para limitar o trabalho infantil quer na idade (9 anos) quer no horário de trabalho (12 horas), isto apenas no setor algodoeiro e, mesmo assim, pouco foi aplicada. As instituições estatais, governos, forças de segurança, tribunais eram defensoras, em primeiro lugar, do direito de propriedade dos meios de produção através do qual se poderia exercer livremente a exploração visto os trabalhadores aceitarem (que remédio...) a relação assalariada. O caminho para o reconhecimento legal dos sindicatos, para um muito lento e gradual reconhecimento de direitos dos trabalhadores até ao reconhecimento do direito à greve, foi um caminho muito árduo, muito amargo, muito tortuoso, cheio de cadáveres e de estropiados, cheio de miséria e de opressão, para que possa ser ignorado pelos jovens turcos dos setores mais liberais. Aliás, o facto de se ter desviado em boa parte para movimentos revolucionários resultou da frustração de não ver os mais elementares direitos reconhecidos e de justas reivindicações serem respondidas com duras repressões. Mesmo depois de cerca de metade do mundo ter passado por movimentos revolucionários socialistas ou progressistas (para utilizar a linguagem já clássica) e só não ter atingido a outra metade porque o medo da revolução levou o capitalismo a abrir os cordões da bolsa, permitindo a criação de fortes classes médias, haver ainda quem considere que as questões laborais são questões políticas de menor importância é algo que entraria no domínio do anedótico, não fosse a seriedade que está a atingir.
            Não é por acaso que um dos primeiros objetivos da mentalidade técnica que tem orientado as sucessivas reformas na educação é o de diminuir ou até, se possível, eliminar a formação histórica. E não estou apenas a falar da disciplina de História ou do desejado fim das disciplinas. Em Filosofia, por exemplo, passou a ser proibido ensinar qualquer pensamento político que não o de alguns autores norte-americanos da 2ª metade do séc. XX. Todas as reformas a que assisti, desde a reforma de Roberto Carneiro, tiveram sempre este desígnio. Com a eliminação da consciência histórica, cada ideologia pode impor as suas perspetivas como se fossem naturais, qualquer coisa eternamente óbvia, aceitável por si como aceitamos as palavras da nossa língua. Assim, os jovens poderão não perceber que quando os empregam como colaboradores lhes estão a sonegar a dignidade conquistada historicamente para o trabalho e o trabalhador. Qualquer empresário que use a palavra “colaborador” coloca-se imediatamente num campo ideológico extremamente reacionário onde perpassa o desejo de regressar às condições da relação produtiva do início do séc. XIX. Assim, sem argumentos, transmite-se imediatamente a ideia de que a produção das empresas é dos proprietários, resultado da ação dos gestores e que os trabalhadores apenas estão ali a colaborar, vendendo a sua prestação de serviços. A mesma vontade de eliminar a consciência histórica se nota do lado da esquerda quando tenta passar o atual discurso dos géneros (e não sexos) e das identidades como se fosse algo concebido desde todo o sempre e uma antiga luta dos direitos humanos. Com esse objetivo, se banem livros para que as novas crianças não tenham possibilidade de contactar com o passado da sua própria cultura e, se não houver oposição, a proibição de livros e de exibições virá a ser bem mais extensa. Para tornar clara a minha posição, devo dizer que sempre considerei muitos dos contos infantis repugnantes e absurdos, apenas com interesse psicanalítico, mas isso nunca me levaria a exigir que fossem banidos. Além disso, muitos dos mais absurdos como o Pinóquio não terão sido banidos das bibliotecas por não envolverem questões de género. Assim, da esquerda e da direita, há um esforço, na minha opinião só possível na mentalidade técnica, para banir a consciência histórica e introduzir as suas definições ideológicas como se fossem intemporais e indiscutíveis, sempre com objetivos autocráticos dissimulados.
            A greve tornou-se um direito consagrado na nossa constituição por ter sido historicamente o instrumento pelo qual se conseguiu equilibrar as relações produtivas e assegurar uma maior justiça laboral. Sem este fundamento histórico, a greve é, na maioria dos casos, uma quebra contratual que justificaria legitimamente o despedimento. Só não digo “em todos os casos” visto existirem casos que são causados por quebras contratuais anteriores dos patrões. A alternativa à greve regulada que temos, quando a exploração se torna insustentável, é a revolução. Aliás, no tempo em que o direito à greve não estava consagrado, não só as greves eram associadas a violência e a morte, mas levavam, muitas vezes, ao extremar dos movimentos dos trabalhadores até os tornar, se já não o eram, revolucionários. Todas estas considerações vêm a propósito de declarações recentes de Daniel Oliveira, aliás meros lugares comuns da esquerda, da distinção entre o sindicalismo solidário tradicional e este pós-sindicalismo corporativista evidenciado na greve dos camionistas de matérias perigosas. Daniel Oliveira contrapunha ao sindicalismo solidário de classe o sindicalismo de maquinistas, de pilotos de aviação e destes camionistas. Mas a solidariedade do restante sindicalismo há muito que se tornou um mito e só existe nas cabeças dos ideólogos da esquerda.
            Penso que passados 30 anos poderei relatar alguns pormenores de uma experiência minha, comum a muita gente em muitos setores. Fui, há mais de 30 anos, bagageiro no aeroporto de Lisboa. Era subcontratado por uma empresa de que nem me lembro o nome e com a qual só contactei umas duas ou três vezes. Na verdade, usava fardas da TAP, estava integrado no trabalho da TAP, tinha superiores da TAP e era em tudo um trabalhador da TAP, exceto nos vencimentos e regalias. Ora, existiam também bagageiros da própria TAP. Passavam os dias encostados à parede, sem fazer literalmente nada enquanto não viesse um deficiente ou outro incapacitado para tirar dos aviões, com o objetivo de receber as gorjetas, ou enquanto não surgisse um passageiro que precisasse de passar bagagem a mais pelo check in. Repentinamente, lá apareciam eles atrás das balanças e à frente do tapete rolante para logo desaparecerem em seguida. Não sei quanto ganhariam a mais que os subcontratados, três, quatro, cinco vezes mais, isto sem contar com inúmeras regalias, entre as quais viagens grátis que tive a oportunidade de testemunhar. Mesmo assim, não perdiam uma oportunidade para trabalhar o menos possível e sacar o mais possível. Portavam-se como um gangue mafioso que não admitia concorrência. Quando dois dos colegas subcontratados resolveram imitar os contratados a passar bagagem excessiva, um deles porventura o mais trabalhador do nosso grupo, foram imediatamente denunciados pelos “camaradas” contratados e imediatamente despedidos. Para nós, não existia sindicato. O sindicato defendia os seus trabalhadores, os contratados da TAP. Presumo que nos viam senão como infra-humanos, pelo menos como infra-trabalhadores. Para a empresa, desconfio que os contratados eram vistos como prejuízos fixos com os quais tinham de arcar e que eram compensados pelos bem mais baixos salários pagos à empresa subcontratada, dos quais receberíamos cerca de metade, se tanto. Talvez não com uma atitude tão acintosa, vi o mesmo menosprezo, durante muito tempo, nos sindicatos dos professores pelos trabalhadores precários. A atitude pareceu mudar mais recentemente, mas os meus colegas contratados negam o que acabei de dizer.
            O mesmo desprezo pela população trabalhadora vejo nas sucessivas paralisações que não provocam qualquer dano à entidade patronal, mas sim exatamente à população trabalhadora. Há a expetativa que os cidadãos, se a luta tiver de durar, acabem por pressionar os políticos a pressionar os conselhos de administração ou que os conselhos de administração cedam antes disso, muito embora estejam a ser financeiramente beneficiados com a greve. A população trabalhadora, porém, vê-se muito prejudicada, até chegar a perder o seu emprego precário, olhando para aqueles que considera privilegiados como o verdadeiro inimigo, em vez dos patrões ou do Estado. Ora, Daniel Oliveira considera este dano um dano necessário para benefício do bom sindicalismo. Não parece ver que é isto que leva a que se vá avolumando, ao longo das décadas, a oposição ao sindicalismo. Mas não só. Passando para o caso dos professores, quando um trabalhador sindicalizado é objeto de um procedimento ilegal, a não ser que tenha grandes cunhas, escusa de ter esperanças que o sindicato o defenda. Não só eu mas muitos colegas o relatam. O procedimento é sempre ou o de procedimentos dilatórios até à desistência, mesmo que os professores assumam as custas judiciais, ou o da pura ausência de resposta. Por isso, ao fim de quase 30 anos de sindicalização, desfiliei-me há cerca de dois meses. Para que servem então os sindicatos se não servem para defender os associados? Os pagamentos dos associados vão para onde? Os dirigentes não precisam deles porque continuam a ser pagos pelo Estado. Os escassos funcionários pouco custam. Ações judiciais só para alguns eleitos. Procedimentos administrativos não têm grandes custos.
É um segredo de Polichinelo. Vejam-se os recursos usados em sucessivas manifestações e outras atividades sindicais, autocarros, instalações sonoras ao longo de avenidas inteiras, etc, etc. E qual é a vantagem das mesmas para os trabalhadores? Nenhuma. Greves e manifestações seguem o ritmo da conveniência do calendário partidário. São ações para aparecerem nos telejornais. Quando já não convêm, assinam-se memorandos que são verdadeiras capitulações, mas que mais tarde os sindicatos dizem que foram desrespeitados sem que ninguém intelectualmente honesto veja onde. Antes, mesmo havendo razões para a luta durante anos, nada se faz, mas, assim que se aproximam as eleições, os partidos utilizam dissimuladamente a sua tropa fandanga para prejudicar o partido do governo. Se os trabalhadores não respeitam os condicionamentos sindicais e desatam a agir inorganicamente como aconteceu durante o ministério de Maria de Lurdes Rodrigues, os sindicatos vão a correr tentar controlar os movimentos informais e, logo a seguir, depois de controlados, assinam um memorando em que os traem. Recentemente, algo semelhante aconteceu com o STOP, mas aí, parece-me, sob controlo de outro partido. Assim, o alegado sindicalismo solidário de Daniel Oliveira resume-se a isto, a atuação a mando dissimulado de estratégias partidárias. De resto, estão-se positivamente a borrifar para a solidariedade dos trabalhadores, por exemplo, com os trabalhadores precários, apenas disfarçando o facto com declarações genéricas edificantes de dirigentes sindicais e partidários. E uma grande parte dos trabalhadores sente isso e afasta-se cada vez mais do sindicalismo. Por exemplo, costuma-se dizer que os sindicatos dos professores são muito fortes. Já nem falando dos micro-sindicatos que beneficiam de todas as regalias apesar de quase só representarem os dirigentes, qual é a percentagem de professores associada das duas grandes federações sindicais? Faz-se questão de ocultar estes números, provavelmente para não terem de os aldrabar como acontece noutros casos, mas ficaria muito surpreendido se ultrapassasse os 20% dos professores. Logo, quando o governo ouve os sindicatos, tem a certeza de estar a ouvir os representantes dos trabalhadores? Ou é mais um caso da vanguarda de classe?
Regressando à precariedade, reconheço que este governo ou o conjunto da gerigonça foram os únicos que fizeram alguma coisa, parece-me, para diminuir a precariedade laboral de há muitas décadas para cá. O facto de estar a criticar os sindicatos por realizarem política partidária encapotada, não significa que considere tudo o que sai dos partidos mau, muito embora considere que o grau de predomínio desses partidos na vida política e social é intrinsecamente negativo, asfixiando a participação dos cidadãos e atraindo para os partidos os interessados em carreiras fáceis ou outras cunhas e privilégios. Daniel Oliveira contrapunha o sindicalismo de nichos profissionais, corporativo, ao sindicalismo de classe solidário. É isso que estou a contestar. Esse sindicalismo (não sei bem de que classe) só é solidário dos interesses partidários e, por vezes, até só de fações dentro dos partidos. Em vez de defender os seus associados, esse sindicalismo concentra os seus recursos em ações de luta que, muitas vezes, não trazem qualquer vantagem aos trabalhadores, mas servem apenas interesses da política partidária. Quando trazem vantagens aos trabalhadores, não deixam de estar articulados partidariamente e só não são indiferentes aos danos que causam a um grande número de trabalhadores porque utilizam esse dano como forma de pressão junto do governo, muitas vezes, embora nem sempre, em prol de carreiras já largamente privilegiadas. E as pessoas têm noção de tudo isto e afastam-se cada vez mais de tal sindicalismo, não apenas pela atuação malévola (segundo Oliveira) de um sindicalismo de nicho, mas por não se reconhecerem minimamente representadas no sindicalismo tradicional. Ora, este enfraquecimento do sindicalismo tem, por toda a parte, não em especial neste país, permitido uma situação cada vez mais frágil do trabalhador na relação laboral, enquanto meia dúzia de classes profissionais muito ligadas ao Estado se enquistam nos direitos adquiridos e permitem que ao seu lado se desenvolvam novas relações laborais sem direito a nada. Não é o sindicalismo de nicho que leva a isto, é o sindicalismo alegadamente solidário de Daniel Oliveira. De qualquer forma, mais tarde ou mais cedo, os abusos de ambos irão levar a que se ponha em causa o direito à greve e talvez aí se descubra que o séc. XIX não está assim tão longe.