13.7.19

As quotas políticas e a democracia


            Em vez de reduzir ao absurdo, em certos casos, a cada vez mais perseguida bandeira da esquerda das quotas políticas contra qualquer forma de discriminação, o que poderia sempre ser objetado com a necessidade de corrigir injustiças natural ou socialmente existentes, gostaria de abordar a questão sob o ângulo do próprio regime. Toda esta questão só se coloca porque o nosso regime não é uma democracia. E eu próprio que não sou grande democrata, visto considerar que os critérios democráticos devem ser limitados por outros, sobretudo os critérios de saber, muito embora considere, como republicano, que só os critérios democráticos se fundamentam numa soberania legítima, não posso deixar, neste caso, de criticar a falta de democracia. Como grande parte das pessoas recebe e usa estes conceitos sem neles pensar, está tão habituada a encher a boca com a palavra democracia que até lhe pode parecer uma alarvidade o que estou a dizer. Na verdade, há muito de não democrático no nosso regime. Por exemplo, o poder judicial, um dos poderes políticos básicos do regime (e não um poder oposto ao poder político como os nossos políticos costumam dizer), não tem qualquer legitimação democrática ­– e podia tê-la, não há nada que impeça, em absoluto, a existência de eleições, limitadas ou não, neste poder. Mas, no próprio poder legislativo, os cidadãos não podem escolher livremente os seus representantes que, exatamente por isso, não são considerados, na nossa Constituição, representantes dos seus eleitores, mas do país, uma abstração que oculta a representação, de facto, do aparelho do Partido.
A questão das quotas só existe porque as listas para deputado são uma construção burocrática da direção e do aparelho do Partido. Os cidadãos não se podem candidatar e serem representantes de outros cidadãos a não ser que pertençam a uma fação, onde consigam a aprovação daquele nicho de pessoas para pertencer a uma lista em bloco de centenas de nomes (incluindo os suplentes). Dizem por aí que os partidos são necessários à democracia. Não, não são. Não existiam na democracia original e os partidos, por exemplo, do séc. XIX estavam muito longe destes aparelhos atuais de dominação quer para tutelar os seus, quer para dominarem o próprio aparelho de Estado, verdadeiros Estados dentro do Estado. A história que levou a estes Partidos não é, aliás, uma história muito democrática. Hoje, todos seguem essa construção do aparelho, mas não é por acaso que nos partidos de esquerda o líder é já tradicionalmente o Secretário-Geral, ou seja, o chefe do aparelho burocrático.
Só com uma estrutura tão deformada de democracia é que poderia surgir o problema das quotas. De facto, se os Partidos decidem a constituição das listas, essa própria constituição das listas pode ser vista como uma forma de formatar o regime e, consequentemente, a sociedade, ou seja, como um projeto executivo. Ora, isso é um cerceamento nada democrático do poder legislativo do povo. Como em várias disposições da nossa constituição, o nosso regime adota uma atitude paternalista em relação ao povo, procurando protegê-lo das suas escolhas. Se o regime fosse democrático, toda a sua legitimidade deveria provir das escolhas do povo, ou seja, de cada um dos cidadãos. E talvez seja necessário este último esclarecimento (que o povo é os cidadãos) devido a possíveis estranhas noções de povo... Ora, neste caso, se os cidadãos decidissem escolher só mulheres ou só ciganos ou só gordos, isso resultaria do legítimo e soberano direito do povo. Os cidadãos não deveriam ser sistematicamente cerceados nas suas escolhas como se uma elite tivesse o direito de fazer escolhas prévias pelos cidadãos, garantindo o respeito de princípios que os cidadãos poderiam não querer respeitar. Numa democracia, se o povo não quisesse respeitar esses princípios, tinha esse direito, até porque a própria Constituição (onde deverão estar os tais princípios) deveria depender desses mesmos cidadãos. Se se é verdadeiramente democrata, não se deveria ter medo do povo – ter medo do povo e querer cercear os seus direitos cívicos é próprio de autocracia e não de democracia. Ora, os nossos “democratas” têm a estranha noção de um ponto de vista democrático que o povo precisa de ser educado, orientado e não pode ser deixado a decidir tudo e mais alguma coisa. Com que direito democrático o julgam? Nenhum, pois se trata claramente de um juízo aristocrático que julga uns quantos com direito de decidir em vez do povo e com direito de limitar a decisão do povo. Porém, nunca mencionam qualquer outro critério que não o democrático.
As listas de deputados são listas de funcionários que até aceitam se submeter à indignidade da disciplina de voto. Depois, fazem declarações de voto que julgam salvar-lhes a face. De facto, essas declarações só aumentam a indignidade. Se se julga dever votar num sentido por consciência ou por representação dos eleitores e não se vota por se estar a representar o Partido, instância que não é nem um órgão do Estado, nem a fonte da soberania (que está nos cidadãos), permite-se a subordinação dos membros de um órgão de soberania a uma organização privada. Se estivéssemos numa verdadeira democracia, a disciplina de voto partidária deveria ser legalmente proibida visto cercear a liberdade e o poder dos deputados como representantes dos cidadãos. Quanto aos argumentos relativos à sustentação dos executivos, isso é tomar o que foi decidido para criar a dependência dos partidos como a causa dessa dependência. Os executivos deveriam ter uma legitimidade própria que garantisse a separação de poderes. Utiliza-se a sustentação parlamentar do poder executivo para limitar a soberania dos deputados, até porque o principal objetivo é cercear a soberania do povo, limitando as suas opções pela pressão do chamado voto útil. Entretanto, utiliza-se a legitimidade popular do Presidente para apenas fazer de rei através de um abstrato poder moderador que não cumpre nenhuma função na arquitetura do Estado, a não ser a de ser mais um recurso para limitar as decisões democráticas.
Enchem a boca os nossos políticos com queixumes acerca do afastamento dos cidadãos da política. Se não quisessem esse afastamento, procurariam tornar o nosso regime cada vez mais democrático. Pelo contrário, cada vez o tornam menos democrático e mais paternalista. E isto ocorre porque os nossos políticos desejam mais que as suas políticas vençam do que seja o povo a decidir quem ou o quê vença.É verdade que se poderá dizer que se decidem tais limitações da decisão do povo através da decisão do povo. Mas, exatamente, essa era a distinção tradicional entre democratas e autocratas como os fascistas, a defesa de que as decisões políticas devem estar constantemente dependentes da soberania do povo e não devem ser submetidas a uma elite.  Os autocratas também podem concorrer às eleições democráticas. A sua vitória, mesmo que por meios democráticos, limita ou elimina, porém, a própria democracia. Só que, afinal. talvez não sejam só os fascistas a limitar a democracia, sendo assim antidemocráticos... 

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