As quotas políticas e a democracia
Em vez de reduzir ao absurdo, em certos casos, a cada vez
mais perseguida bandeira da esquerda das quotas políticas contra qualquer forma
de discriminação, o que poderia sempre ser objetado com a necessidade de
corrigir injustiças natural ou socialmente existentes, gostaria de abordar a
questão sob o ângulo do próprio regime. Toda esta questão só se coloca porque o
nosso regime não é uma democracia. E eu próprio que não sou grande democrata,
visto considerar que os critérios democráticos devem ser limitados por outros,
sobretudo os critérios de saber, muito embora considere, como republicano, que
só os critérios democráticos se fundamentam numa soberania legítima, não posso
deixar, neste caso, de criticar a falta de democracia. Como grande parte das pessoas recebe e
usa estes conceitos sem neles pensar, está tão habituada a encher a boca com
a palavra democracia que até lhe pode parecer uma alarvidade o que estou a
dizer. Na verdade, há muito de não democrático no nosso regime. Por exemplo, o
poder judicial, um dos poderes políticos básicos do regime (e não um poder
oposto ao poder político como os nossos políticos costumam dizer), não tem
qualquer legitimação democrática – e podia tê-la, não há nada que impeça, em
absoluto, a existência de eleições, limitadas ou não, neste poder. Mas, no
próprio poder legislativo, os cidadãos não podem escolher livremente os seus
representantes que, exatamente por isso, não são considerados, na nossa Constituição,
representantes dos seus eleitores, mas do país, uma abstração que oculta a
representação, de facto, do aparelho do Partido.
A
questão das quotas só existe porque as listas para deputado são uma construção
burocrática da direção e do aparelho do Partido. Os cidadãos não se podem
candidatar e serem representantes de outros cidadãos a não ser que pertençam a
uma fação, onde consigam a aprovação daquele nicho de pessoas para pertencer a
uma lista em bloco de centenas de nomes (incluindo os suplentes). Dizem por aí
que os partidos são necessários à democracia. Não, não são. Não existiam na
democracia original e os partidos, por exemplo, do séc. XIX estavam muito longe
destes aparelhos atuais de dominação quer para tutelar os seus, quer para dominarem
o próprio aparelho de Estado, verdadeiros Estados dentro do Estado. A história
que levou a estes Partidos não é, aliás, uma história muito democrática. Hoje,
todos seguem essa construção do aparelho, mas não é por acaso que nos partidos
de esquerda o líder é já tradicionalmente o Secretário-Geral, ou seja, o chefe
do aparelho burocrático.
Só
com uma estrutura tão deformada de democracia é que poderia surgir o problema
das quotas. De facto, se os Partidos decidem a constituição das listas, essa
própria constituição das listas pode ser vista como uma forma de formatar o
regime e, consequentemente, a sociedade, ou seja, como um projeto executivo.
Ora, isso é um cerceamento nada democrático do poder legislativo do povo. Como
em várias disposições da nossa constituição, o nosso regime adota uma atitude
paternalista em relação ao povo, procurando protegê-lo das suas escolhas. Se o
regime fosse democrático, toda a sua legitimidade deveria provir das escolhas
do povo, ou seja, de cada um dos cidadãos. E talvez seja necessário este último
esclarecimento (que o povo é os cidadãos) devido a possíveis estranhas noções
de povo... Ora, neste caso, se os cidadãos decidissem escolher só mulheres ou
só ciganos ou só gordos, isso resultaria do legítimo e soberano direito do
povo. Os cidadãos não deveriam ser sistematicamente cerceados nas suas escolhas
como se uma elite tivesse o direito de fazer escolhas prévias pelos cidadãos,
garantindo o respeito de princípios que os cidadãos poderiam não querer respeitar.
Numa democracia, se o povo não quisesse respeitar esses princípios, tinha esse
direito, até porque a própria Constituição (onde deverão estar os tais
princípios) deveria depender desses mesmos cidadãos. Se se é verdadeiramente democrata,
não se deveria ter medo do povo – ter medo do povo e querer cercear os seus
direitos cívicos é próprio de autocracia e não de democracia. Ora, os nossos “democratas”
têm a estranha noção de um ponto de vista democrático que o povo precisa de ser
educado, orientado e não pode ser deixado a decidir tudo e mais alguma coisa.
Com que direito democrático o julgam? Nenhum, pois se trata claramente de um
juízo aristocrático que julga uns quantos com direito de decidir em vez do povo
e com direito de limitar a decisão do povo. Porém, nunca mencionam qualquer
outro critério que não o democrático.
As
listas de deputados são listas de funcionários que até aceitam se submeter à
indignidade da disciplina de voto. Depois, fazem declarações de voto que julgam
salvar-lhes a face. De facto, essas declarações só aumentam a indignidade. Se
se julga dever votar num sentido por consciência ou por representação dos
eleitores e não se vota por se estar a representar o Partido, instância que não
é nem um órgão do Estado, nem a fonte da soberania (que está nos cidadãos),
permite-se a subordinação dos membros de um órgão de soberania a uma
organização privada. Se estivéssemos numa verdadeira democracia, a disciplina
de voto partidária deveria ser legalmente proibida visto cercear a liberdade e
o poder dos deputados como representantes dos cidadãos. Quanto aos argumentos
relativos à sustentação dos executivos, isso é tomar o que foi decidido para
criar a dependência dos partidos como a causa dessa dependência. Os executivos
deveriam ter uma legitimidade própria que garantisse a separação de poderes.
Utiliza-se a sustentação parlamentar do poder executivo para limitar a
soberania dos deputados, até porque o principal objetivo é cercear a soberania
do povo, limitando as suas opções pela pressão do chamado voto útil.
Entretanto, utiliza-se a legitimidade popular do Presidente para apenas fazer
de rei através de um abstrato poder moderador que não cumpre nenhuma função na
arquitetura do Estado, a não ser a de ser mais um recurso para limitar as
decisões democráticas.
Enchem
a boca os nossos políticos com queixumes acerca do afastamento dos cidadãos da
política. Se não quisessem esse afastamento, procurariam tornar o nosso regime
cada vez mais democrático. Pelo contrário, cada vez o tornam menos democrático
e mais paternalista. E isto ocorre porque os nossos políticos desejam mais que
as suas políticas vençam do que seja o povo a decidir quem ou o quê vença. É
verdade que se poderá dizer que se decidem tais limitações da decisão do povo através
da decisão do povo. Mas, exatamente, essa era a distinção tradicional entre
democratas e autocratas como os fascistas, a defesa de que as decisões políticas devem
estar constantemente dependentes da soberania do povo e não devem ser
submetidas a uma elite. Os autocratas também podem
concorrer às eleições democráticas. A sua vitória, mesmo que por meios democráticos, limita ou elimina, porém, a
própria democracia. Só que, afinal. talvez não sejam só os fascistas a limitar a
democracia, sendo assim antidemocráticos...
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