27.1.18

Objetivo central do Clube de Debate

O Clube de Debate é um pequeno contributo para uma tarefa titânica, porventura impossível: promover pessoas e combater a gente. Nenhum outro objetivo é mais importante. Trata-se de combater a tendência das pessoas desaparecerem sob a forma de gente. A gente é o coletivo indiferenciado, é “o que se diz”. “É o que toda a gente diz”, “é o que toda a gente faz”, “toda a gente sabe isto” – esta é a forma de cada qual desaparecer no meio de uma autoridade indiscutível que não é nada, nem ninguém, a que não se pode pedir contas até por não ser alguém que se possa responsabilizar. Se, de facto, fosse toda a gente nem seria necessário utilizar tal recurso argumentativo, mas a verdade é que a gente não se preocupa muito com a racionalidade. Tem a força do coletivo e essa força é especialmente eficaz não a expor razões, mas a anular qualquer razão que se pudesse apresentar.
Que tal atitude todos possa infetar não é surpreendente. Desde a minha juventude, tenho visto pessoas inteligentes e interessantes que, assim que enfileiram uma organização política, passam a ser soldados de um exército ideológico e não hesitam em ser incongruentes, falaciosos, desonestos, recorrer a todas as táticas primárias de intimidação e ridicularização, só para trazerem dividendos para o seu regimento. Tornam-se gente e aquilo que define a pessoa, a racionalidade, deixa de ser importante ou até passa a ser algo a combater. Vê-se isso nestas redes sociais, como indivíduos com qualidades se anulam dizendo a tudo que sim se vier dos seus chefes e apaniguados, por mais absurdo que seja, de forma acéfala, sem o mínimo espírito crítico, e repudiam veementemente tudo que lhes cheira vir de ou convir a adversários por mais razões que sejam apresentadas – e isso abrange gente de rigorosamente todos os partidos parlamentares. Por outro lado, é impressionante ver como homens que se dedicaram à política partidária voltam a ser pessoas quando abandonam essa vida política e acabam por mostrar quanto da sua individualidade reflexiva tinham castrado para servir as suas hostes. Enquanto membros de um coletivo e em prol do coletivo, havia que arregimentar, ganhar força, contar espingardas, não só (mas também) para fazer frente a outros coletivos, mas sobretudo para eficazmente esmagar pessoas. É a lógica dos grupos de bullies. Se temos força, se temos número, podemos humilhar, ridicularizar, violentar até – não precisamos de ter coragem, não precisamos de nos esforçar, não precisamos de argumentar pois temos o regimento para nos apoiar por mais disparatado que seja o que dissermos, o que fizermos ou o que impormos. Claro que isso é útil para confrontar grupos de rufias inimigos, mas primariamente o seu alvo são as pessoas, visto na sua fragilidade individual residir, por um lado, uma ameaça de pensamento livre que tais grupos abominam, mas, por outro, caso consigam quebrar a sua individualidade, também a possibilidade de reforço do exército com mais soldados. Não é, aliás, por acaso que as praxes, que ou tinham desaparecido, ou nunca tinham existido (conforme os locais e estabelecimentos) ainda há poucas décadas, tenham regressado com tanta força ou sido criadas do nada. Ali faz-se gente – é o que significa a alegada integração. Onde é que o espírito crítico que deveria ser apanágio do espírito académico se encontra nesses supostos detentores da vida académica é que é impossível dizer.
O Clube de Debate deveria ser a antítese dessa atitude, deveria ser um fórum da afirmação da individualidade crítica e reflexiva que se expressasse através da argumentação e não um confronto de seitas como os que vemos nos debates televisivos partidários ou futebolísticos, em que é raro o argumento decente que se apresenta, a razão do adversário que é considerada seriamente ou qualquer dialética que permita que algum desenvolvimento argumentativo nasça do confronto de ideias. Alguém que mantenha alguma integridade intelectual, ao estudar um pensamento adversário, tenta em primeiro lugar compreendê-lo, identificar as suas razões, examinar a consistência e valor dos seus argumentos e ponderar se as suas conclusões não poderão ter, afinal, algum sentido. Em tempos, estudei com alguma atenção o livro de Hitler, não para gozar com os seus argumentos ou teses, mas para tentar compreender as suas razões e o seu sentido, muito embora abomine as suas teses. Um partizan nunca faz semelhante coisa a não ser em relação aos autores canonizados na sua seita. Mas mesmo entre os partidos encontra-se sempre pessoas que resistem a este enfileiramento acéfalo. Lembro-me de dois excelentes historiadores, um conservador e outro esquerdista que nem, por isso, deixaram de mostrar, o primeiro, como a monarquia caiu de podre, não acreditando em si mesma, ao contrário do discurso habitual de certos setores conservadores, e o segundo, como o Estado Novo correspondeu-se ao desejo de uma solução autoritária comum à generalidade dos atores políticos, incluindo os próprios políticos da primeira República. Mas quão raras são estas figuras dado o ambiente tóxico dessas estruturas intelectualmente burocráticas a que chamam partidos.
Quem mantém alguma integridade intelectual não pode fazer aquilo que vemos ser feito pelos nossos políticos no Parlamento. É preciso que se diga: isso não é nenhum debate. Cada político reproduz um discurso estereotipado que todos os membros do seu partido proferem e está aparentemente impedido de considerar qualquer razão de um adversário (razões identicamente estereotipadas, é certo) a não ser com apartes, ridicularização, grunhidos diversos e gargalhadas alarves em conjunto com os parceiros que parecem um bando de ébrios arruaceiros já incapaz de um grau maior de argumentação. Quando vão à televisão, onde já não têm o seu bando a fazer coro, os políticos recorrem a todas as falácias clássicas e modernas, abusando da falta de educação lógica do público para conseguir dividendos com os argumentos mais grosseiramente defeituosos. Nunca consideram a argumentação adversária senão com variações diversas da falácia do espantalho, em que distorcem ou caricaturam a posição adversária até se tornar irreconhecível, para depois pretender refutá-la. Nunca tentam verdadeiramente compreender o outro, nunca há verdadeiro diálogo, trata-se de uma transmissão unilateral da propaganda própria que tem como única vantagem em relação à de uma ditadura, o facto de se consentir que vários divulguem a sua propaganda, isto claro se pertencerem a uma das seitas reconhecidas. Ora, nada disto é, ao contrário do que se busca fazer crer, um verdadeiro debate, uma luta argumentativa em que os argumentos adversários são considerados, ponderados no seu valor e validade, e respondidos não por argumentos que ignorem os argumentos contrários, mas por argumentos que incorporem os contrários, que os considerem no que se julga dever ser considerado, que rejeitem o que se julga dever ser rejeitado por argumentos melhores, que permitam ir além do que antes se foi e assim sucessivamente em cada ronda argumentativa. Só por isso o debate vale a pena. O debate permite efetivamente a evolução da nossa reflexão e o confronto com outras perspetivas faz-nos crescer argumentativamente. Embora possam existir fases de solidão, nenhum pensamento verdadeiramente rico e penetrante se constituiu sem ser em diálogo e em debate com os outros. Que não se confunda o verdadeiro debate com essa pantomina que vemos ser encenada nos media a fingir debates que não existem, com uma falta de integridade e de honestidade que tem vindo a afastar cada vez mais as pessoas de boa vontade desses meios pouco recomendáveis. Que antes se debata para melhor se pensar e não que se finja o debate, papagueando o discurso da fação, para nunca se correr o risco de pensar. Que se debata para se crescer como pessoa e não que se faça coro para definhar como gente. Que assim seja no nosso Clube ou ele não terá qualquer sentido.