16.6.19

A hipersensibilidade e o totalitarismo


            Muitos se lembrarão da polémica com o cartoon de António. Foi publicado em Portugal sem que ninguém lhe desse atenção, até por expressar algo que há muito muitos pensam, que, no que toca ao Médio Oriente, Israel parece sistematicamente a superpotência e os Estados Unidos um aliado submisso. A única exceção que se costuma admitir é a do consulado de Obama. De alguma forma, o cartoon foi parar ao New York Times e aí quer o lobby judeu, quer o lobby israelita (que são coisas diferentes que muitos gostam de confundir) se insurgiram contra um alegado caráter antissemita do desenho. A prova seria a estrela de David como se esta não estivesse na bandeira de Israel e como se o caricaturado não fosse o primeiro-ministro desse país. Na verdade, não é a primeira vez, nem será a última que os sectores pró-israelitas reagem a toda e qualquer crítica com a cartada do antissemitismo. Ora, isso pode permitir que Israel possa fazer tudo o que lhe der na gana que qualquer acusação poderá ser sempre alcunhada de antissemita. Mas, se isto não é novo, já são novas as reações do Times: primeiro, pedindo desculpa e, depois, sobretudo, decidindo deixar de ter no jornal quaisquer cartoons.
            Sempre existiram pessoas hipersensíveis que reagiam a qualquer piada, crítica ou tese rasgando vestes e apresentando todo o tipo de protestos. Sempre houve alguns sectores cujo poder permitia, aliás, conseguir censurar este ou aquele autor, fosse humorista ou não. Porém, até há algum tempo, existia uma paulatina progressão da liberdade de expressão no mundo ocidental. Isso alterou-se recentemente, com a agravante de nem se tratar de um simples regresso às censuras anteriores. O que tem acontecido nos últimos tempos é de uma outra ordem. De facto, os mais diversos sectores extremistas conseguiram arregimentar vastas franjas da população, sobretudo da juventude, umas mais conscientes do que estão a fazer do que outras, que procuram proibir toda e qualquer expressão que, por qualquer motivo, alguns verdadeiramente caricatos, julguem ofensiva, suscetível de ser vista como crítica (justa ou não, isso pouco importa) ou até simplesmente adversa à sua posição, como se estivesse proibida a possibilidade de ter posições diversas. Sobretudo, certos jovens, como noutros tempos sempre entusiásticos para levar a cabo uma revoluçãozita cultural, procuram calar toda e qualquer expressão de ideias que não sejam aquelas que, do seu ponto de vista, sempre muito pouco crítico e muito pouco refletido, serão as que correspondem à conceção correta da realidade. Não se trata de discordar, até por raramente apresentarem argumentos ou serem bem pobres os poucos que apresentam, trata-se de tentar calar, de tentar banir, de tentar proibir, nem menos nem mais do que isso. O pior, porém, é que os nossos políticos, jornalistas e diretores de editoras e mass media têm cedido sistematicamente a esta tendência, visto serem profissionais da lisonja e estarem sempre preocupados a seguirem a direção para onde sopra o vento. Além disso, existem aqueles que, entre eles, são os verdadeiros promotores desses extremismos que os jovens simplesmente seguem de forma acéfala. Afinal, é importante recordar que Mao não era um jovem.
            A vigilância sectária desses extremistas é de tal ordem que inferniza as próprias relações sociais quotiodianas, constantemente procurando detetar a mínima expressão ou declaração que possa ser censurada pelo seu código. Isto alia-se, aliás, com a hipersensibilidade já típica da adolescência mas que, tradicionalmente, tinha de se confrontar quer com a realidade em geral, quer com a realidade da diversidade de perspetivas. O que acontecia, através desse confronto, é que as pessoas amadureciam. Agora, são proibidas de amadurecer porque é extremamente reforçado o direito à hipersensibilidade como se fora um direito humano universal e inalienável. O resultado é que qualquer capricho, qualquer tese inconsequente, qualquer atitude incoerente se mantêm sem poder ser objeto de qualquer crítica porque surgem os nossos novos guardas vermelhos, jovens turcos ou cavaleiros andantes a proteger a frágil donzela de todo o perigo. O mesmo se diga não apenas do confronto de teses, mas, por exemplo, das conversas onde hoje há que ter muito cuidado com qualquer piada, com qualquer declaração para picar, com qualquer diferença interpretativa, tudo estes zelotas vigiam para sancionar do alto da sua superioridade moral que, muitas vezes, é bem difícil ver onde foi adquirida. Desenvolve-se uma conceção assética das relações humanas em que as pessoas têm de ter muitíssimo cuidado com tudo o que dizem a não ser que seja para censurar as pessoas a que esses extremismos se opõem. Aí, como é costume, tudo pode ser dito até ao maior exagero possível. A este nível dos micropoderes desenvolve-se um verdadeiro totalitarismo cerceador da mais elementar liberdade, a liberdade referida no 1984 como a liberdade de dizer que 2+2=4. E a verdade é que a maioria das pessoas cede e, mesmo sem se recorrer à tortura, acaba por ver 5 ou 3 ou todos de uma vez.
            Ora, os macropoderes parecem incapazes de deter este totalitarismo e assumem-no cada vez mais, dando, aliás, argumentos às outras ideologias totalitárias mais tradicionais que vão ganhando notoriamente força. Neste ambiente de cada vez maior censura, sempre justificado por razões moralistas simplórias, como as que podem ser apresentadas por qualquer pessoa com não muita inteligência, tendo em conta a diversidade de níveis intelectuais que constitui um bando de extremistas, para que qualquer dos membros as possa reproduzir, toda a liberdade cívica e política está ameaçada. Não se trata apenas da liberdade de dizer 2+2=4, mas também a liberdade de errar, a liberdade de pensar teses diversas, a liberdade de se ver confrontado com essa diversidade e até crescer intelectualmente com ela. É preciso resistir. É preciso denunciar os censuradores. É preciso que NY Times tenha vergonha não da liberdade de expressão, mas de a censurar. Toda a sociedade pluralista está em perigo. É preciso não contemporizar e continuar a falar por muito que tentem todo o diverso calar. É preciso dizer o que cada qual julga e não se deixar intimidar. É preciso argumentar, é preciso declarar, é preciso fazer frente.