1.9.23

Sob o signo da morte de Deus - I


           No ano letivo passado, mesmo no cair do pano, tive uma experiência insólita, mas, neste período, expectável. Preciso, porém, fazer um percurso algo demorado para a explicar. As DAE de Filosofia, seguindo uma verdadeira escola de ignorância que se faz passar por escola de rigor e cujos prejuízos filosóficos nefastos espero exemplificar noutro artigo, eliminaram toda a reflexão que era suscitada pelo tema do anterior programa relativo à dessacralização do real na nossa era. Na verdade, reduziram toda a abordagem da chamada (por norte-americanos e seus seguidores noutras partes) filosofia da religião (na verdade, mera teologia natural ou filosófica ou racional) à questão da existência de Deus, mesmo se é evidente a existência de religiões não monoteístas e até ateias. Além disso, seguindo a abordagem dita filosófica de certos teólogos dogmáticos, reduzem tudo a uma justificação argumentativa do teísmo, abordado, aliás, segundo uma ótica cristã não referida, mas constantemente presente. Fingem considerar outras perspetivas ao abordar a repugnante aposta de Pascal (refiro-me só à aposta e não ao muito interessante pensador que é, na verdade, totalmente ignorado nestas abordagens), como se constituísse o fideísmo, e as elaborações posteriores do chamado dilema de Epicuro, como se constituíssem o ateísmo. Diga-se, aliás, que ambas as abordagens são, hoje e há muito, facilmente refutáveis (mesmo que certos professores não tenham consciência disso, exatamente por não perceberem o enquadramento dos argumentos, como é típico da abordagem atómica da filosofia analítica), o que só serve para reforçar o teísmo. Outras abordagens como a do paradoxo da pedra nem sequer atingem as conceções ortodoxas teístas há muito consolidadas, apenas podendo refutar teorias como a de Descartes, cuja lógica deixa muito a desejar (por exemplo, admitindo a possibilidade do impossível). Toda a abordagem do anterior programa do agnosticismo (mesmo se aqui é fácil recorrer a muitos autores analíticos) e do ateísmo, incluindo a referência aos chamados, por Ricoeur, mestres da suspeita, Marx, Nietzsche e Freud, foi banida. Mas, na minha opinião, o aspeto mais pernicioso destas mudanças reside não tanto na eliminação da crítica ateia ou agnóstica mais sustentada, mas da possibilidade de tratar a crítica religiosa à perda de sentido do sagrado na suposta religiosidade contemporânea.

            Ora, embora em diversas turmas não tivesse tido tempo para uma abordagem decente sequer do agnosticismo e do ateísmo, sempre que ainda sobram uns minutos, procuro ter um tratamento breve deste último tema antes permitido, a crítica religiosa à religião ainda existente. Esta poderia ser feita com recurso a inúmeros autores, mas prefiro, habitualmente, recorrer a Kant, Kierkegaard e Ricoeur. Por vezes, recorro à morte de Deus nietzscheniana que, ao contrário do referido pela net, não é nenhuma declaração de ateísmo (para isso, diria “Deus não existe”), mas uma forma de expressar a dessacralização do real própria da cultura niilista europeia e, por extensão, de todas as suas ramificações. A própria declaração resulta de uma gradual evolução a partir de declarações cristãs, cada vez mais interpretadas, ao longo do séc. XIX, no sentido da dessacralização do mundo. A religiosidade de massas subsistente na nossa época tem uma consciência imediata disso, muito embora se recuse desesperadamente a tomar consciência reflexiva do facto. O maior vórtice de fé que existe no meu país revela bem isso. Em primeiro lugar, existe uma redução à religião popular supersticiosa e milagreira. O culto de Nossa Senhora, bem insustentável em termos teológicos, constitui uma crença popular à parte, havendo inúmeros crentes de Fátima que nem suportam tudo o resto que a Igreja oferece, incluindo os simples típicos discursos dos seus padres. Na verdade, a essência desse culto é pagã e, por muito que a Igreja declare o inverso, dizendo não se tratar de uma deusa, a sua adoração demonstra o contrário e é característica do simples politeísmo. O mesmo se poderia dizer dos cultos dos Santos. Aliás, há religiões politeístas que também declaram as várias divindades como meras emanações ou avatares de uma divindade única. Como os protestantes muito bem sublinham, é a idolatria das imagens que melhor evidencia esta natureza. Mas o mesmo se poderia dizer (e diz-se) da Trindade que a maioria dos protestantes também subscreve.

Por outro lado, em Fátima, nenhum teor moral ou místico é dado à fé. Aquilo em que se acredita é em poderes mais ou menos mágicos que, é certo, provêm de uma dimensão transcendente de forma mais ou menos arbitrária, mas apenas para satisfazer desejos imanentes. Vi vários vídeos e reportagens acerca dos peregrinos que sublinhavam, sem cessar, o poder da fé para a realização de tais sacrifícios. Ora, no percurso, os peregrinos encontravam postos de apoio onde voluntários não remunerados tratavam as feridas dos peregrinos e aliviavam as suas dores com massagens. Apesar de reconhecerem o mérito do seu trabalho, nem por um momento ouvi ser referida a fé a esses voluntários. Pelo contrário, quando se entrevistavam os peregrinos ou os crentes autoflagelados, para lá dos que não declaravam motivos precisos, não havia um único que não mencionasse motivos egoístas ou relativos ao círculo familiar mais próximo, nomeadamente através da insólita e pagã figura do pagamento de promessas que concebe a relação com o divino como um negócio, ainda por cima desconfiado, como se se tratasse de uma empreitada, só aceitando pagar após o serviço feito. E, contudo, talvez ainda digam que são cristãos e contem ser salvos por o serem. Mas o que é ser salvo neste culto? Ser eleito no Juízo Final? Nada disso. Ser salvo é ser curado de uma doença, resolver as dificuldades financeiras, conseguir realizar-se profissional ou afetivamente. E é isso a que se chama fé nos media, a fé de que se será salvo, através de poderes sobrenaturais, das dificuldades mundanas para poder gozar melhor a sua vida nesse mesmo mundo. A única exigência requerida para ativar tais poderes sobrenaturais é a fé intensa, sem haver qualquer tipo de exigência de melhoramento moral. Daí, no exemplo acima referido, não serem exemplo da fé os voluntários, mas os peregrinos, mesmo que apenas movidos por interesses egoístas. Quem tivesse a menor atenção ao mandamento cristão fundamental, o mandamento do amor, consideraria que quem estaria a melhor mostrar a fé cristã seriam os voluntários e não quem só se mostrava movido por interesses próprios ou particulares – mas não para esta conceção de fé implicitamente declarada e corroborada pelos media. Aliás, nem se percebe em que é que a autoflagelação pela autoflagelação que ocorre com certos crentes agradaria mais ao Deus do amor do que, por exemplo, auxiliar em obras humanitárias como o banco alimentar, a Caritas, as organizações não governamentais de ajuda internacional, etc. De facto, o amor ao próximo é, nesta fé, substituído pelo amor-próprio, incluindo essa extensão do amor-próprio que é o amor aos familiares, amantes e amigos. Até já ouvi católicos a fazer a reinterpretação que este amor particularmente interessado é que seria o único amor ao próximo, por muito que tal estranha exegese distorça totalmente o espírito do cristianismo. Por outro lado, se a conceção moral da divindade é ignorada neste culto, a conceção escatológica do cristianismo não o é menos.

De facto, se há algo que é fundamental no cristianismo, mais do que o cumprimento do mandamento do amor, mais do que o sacrifício em prol do próximo, mais do que o esmagamento do desejo e da vontade subjetivas frente à transcendência absoluta do ser infinito, é a promessa de salvação da morte, a morte inerente a este mundo carnal do pecado. Ora, estes crentes referem-se imenso a serem salvos, reproduzindo a simples linguagem médica e assistencial, ela própria já equívoca, e não a linguagem teológica e escatológica, mas apenas para continuarem a entregar-se a este mundo ou até, visto quererem ser libertados de uma qualquer condição limitadora, poderem mais completamente chafurdar no mais imundo pecado, poderem gozar mais plenamente a sua carne. Na recente pandemia, ninguém vi mais obcecado pelas medidas preventivas mais extremas do que alguns crentes. Talvez exista uma boa razão para isso. O tipo de crenças mais comum a todas as religiões não é o relativo a divindades, mas sim o relativo a alguma forma de vida para lá da morte. Essa vida para lá da morte até pode ser vista depois como negativa, como no samsara hindú, mas o facto de ter sido imaginada mostra uma motivação fundamental da religião no medo. Mas se essa vida para lá da morte é apenas um alívio da ansiedade pela imaginação, uma história infantil destinada a acalmar o sono, a manutenção da crença pode apenas mostrar a preservação de uma estruturação mental pueril assente no medo. Nesse caso, o que a motiva é um medo descontrolado da morte que mantém a crença supostamente ingénua como último recurso se não conseguir fugir da morte, uma derradeira consolação, mas cujo primeiro objetivo é evitar a morte a qualquer custo. É claro que isso coloca um problema relativo à sinceridade da crença quando essa crença afirma esta vida como teste para decidir o destino na verdadeira vida e quando a eleição depende, em grande medida, da libertação dos laços carnais. Tais crenças, se sinceras, implicariam um desapego em relação a esta vida transitória, centrando-se, ao invés, a preocupação no cultivo do merecimento da eleição. Reduzir as preocupações à preservação gulosa e obcecada desta vida só pode ser visto como uma degradação total e uma distorção completa da doutrina cristã. É muito provável que, no passado, a fé escatológica fosse tão forte que muitos procurassem o desprendimento da carne e aceitassem com alegria a libertação desta vida de pecado para poderem aspirar à eleição para a verdadeira vida. Mas vivemos sob o signo da morte de Deus. Ninguém acredita sinceramente em nada que não os ganhos obtidos aqui e agora, e procura salvar-se não no além, mas no mais mesquinho e grosseiro aquém. “Nossa Senhora salvou-me” – de quê? Da condenação eterna no inferno? Não. De um cancro que provocava sofrimento e impossibilitava que eu levasse uma vida normal. E o que é a vida normal? Uma vida de consumo, de concupiscência, de vaidade, de corrupção, de pecado. Estranhamente, o salvamento da Senhora parece ter os mesmos resultados que os tratos com o demo, a possibilidade de gozar esta vida até a morte levar o crente. Mefistófeles oferece o mesmo que Fátima. Em nenhum destes crentes, se mostra qualquer preocupação com o que possa ocorrer na outra vida, a que, para o cristianismo, era, supostamente, a verdadeira, ou com o que possa contribuir para merecer a eleição final, a única pela qual valeria a pena viver.

Toda esta conceção mundana da religião é agravada pela redução de todos os domínios à mesma uniformização técnica da produtividade e do mercado. O mundo do mercado e da tecnociência lida com grandes massas e estas reduzem a sua consciência à reação imediata que o ambiente social solicita. As massas dirigem-se para as mesmas praias, os mesmos hipermercados, as mesmas discotecas, os mesmos centros históricos, os mesmos festivais, os mesmos santuários – e executam sempre os mesmos gestos ritualizados, o mais depressa possível para não prejudicar a produtividade e garantir a possibilidade de consumo igual para os restantes. Em toda a parte, funcionários zelosos asseguram que tudo se processa com a maior eficácia e que o consumo anterior não prejudique o posterior, de forma a garantir a fluidez do lucro. A azáfama é igual em funerais, casamentos, restaurantes, monumentos, eventos ditos espirituais, centros comerciais, competições desportivas, etc. Tudo se destina a garantir a prossecução das cadeias de fabricação e consumo, como se por todo o lado se reproduzissem as linhas de produção e comercialização em série, seja de bonecos, seja de alimentação, seja de competição, seja de iluminação, seja de morte. E as gentes gostam disto, um caos regulado unicamente pelas suas necessidades de consumo, que não lhes exige qualquer superação, mas que coloca todas as coisas ao mesmo nível, o nível que consegue compreender e em que consegue viver. As gentes não querem complicações doutrinárias, não querem práticas muito elaboradas, não querem exigências muito complexas e rigorosas. Querem alcançar a graça divina ou o milagre da Senhora com a mesma facilidade com que alcançam o produto na prateleira do supermercado. Têm mais que fazer e com que se preocupar. Quanto mais depressa despacharem a promessa, as velas ou as rezas, tanto melhor – e uma multidão espera para ser agraciada de seguida. Na verdade, não há, no essencial, diferença entre os diversos tipos de turismo (religioso, educativo, cultural, recreativo, etc.). Em todo o lado, se reproduz a mesma natureza pelicular que se verte, em seguida, nas redes sociais, evocando supostas experiências que não existiram, um aprofundamento da compreensão que se reduz à sua declaração, um cultivo da imagem própria que chega a substituir a vida própria na selphie que prova ter-se estado num dado lugar onde só se esteve o tempo suficiente para tirar a dita selphie. Em lado algum, a gente existe, para existir é preciso a complexidade autenticamente estruturada da pessoa e não o condicionamento elementar e ambiental da massa.

Voltando um pouco atrás, uma das críticas de Kant à religião popular incidia no facto de procurar sempre se furtar quer à justiça divina, quer à exigência de aperfeiçoamento presente na meta da santidade, refugiando-se na suposta arbitrariedade da graça: “É árduo ser um bom servidor (pois então ouve-se sempre falar de deveres); por isso, o homem preferiria ser um favorito a que muita coisa se desculpa ou, se infringiu grosseiramente o dever, tudo se resolve graças à mediação de alguém favorecido no mais alto grau, enquanto ele continua a ser o servo solto que era. (…) Para alcançar a graça, aplica-se o homem a todas as formalidades imagináveis, pelas quais se deve mostrar quanto ele venera os mandamentos divinos, para não ter a necessidade de os observar; e para que os seus desejos inativos possam servir igualmente para compensar a transgressão dos mandamentos, grita: «Senhor! Senhor!» a fim de não ter a necessidade de «fazer a vontade do Pai celeste» e, por isso, faz das solenidades (...) o conceito como de meios da graça em si mesmos; faz até passar a crença de que são tal por um elemento essencial da religião (o homem comum fá-la inclusive passar pelo todo da religião) e deixa à Providência, toda bondosa, fazer dele um homem melhor, enquanto se aplica à piedade (entendida como uma veneração passiva da lei divina), em vez de se entregar à virtude (ao emprego das próprias forças na observância do dever por ele venerado)”[1]. Se esta conceção popular da graça era já absurda, o que dizer de uma graça destinada apenas a satisfazer as preocupações mundanas, uma graça que não perdoa o comportamento dissoluto, mas assegura antes a sua continuação ou até agravamento? Kierkegaard espantava-se com a mistificação imensa daquilo a que se chamava Cristandade: “Toda a pessoa dotada de um pouco de discernimento que considera seriamente o que se chama cristandade ou o estado de um país dito cristão, deve, certamente, cair na maior perplexidade. Que significa que tantos milhões de pessoas se digam cristãs sem quaisquer dificuldades?!”[2] Há já muitos anos, lembro-me de ter perguntado a uma aluna católica se tentaria, ao menos, amar o seu inimigo. Respondeu-me que mais depressa lhe arrancaria “os fígados”. O mandamento cristão é para a maioria dos cristãos, mesmo os que mantêm alguma prática, letra morta ou até tão-só vazia. A maioria dos cristãos “nunca compreendeu que pode ter na sua vida uma obrigação para com Deus”[3], nem sequer vai à igreja, muda de canal se na tv surge um padre a falar (a não ser que esteja envolvido em algum escândalo), não conhece nada da doutrina da sua confissão e “faz de uma certa integridade física o máximo do seu ideal” – daí, a religiosidade milagreira tantas vezes restringida à restauração da saúde. Mais caricata ainda é a figura do católico não praticante. Costumo dizer, nas alturas em que declaram isso, que eu também sou suicida não praticante. Se se perguntar, em seguida, porque é então católico, a resposta quase invariável é a de que acredita em Deus. Questionado acerca da razão porque não é protestante ou ortodoxo ou judeu ou islâmico ou ainda muitas outras confissões que acreditam em Deus, não consegue dizer nada. Quer praticantes, quer não praticantes, ao menos entre os simples crentes, nada sabem da sua doutrina, não sabem o que é a Trindade, nunca ouviram falar da transubstanciação, nem da ressurreição dos corpos, nem de coisíssima nenhuma que seja próprio da crença católica. Mas, sobretudo, mesmo entre os praticantes, não há nenhuma preocupação escatológica, a paixão de Cristo é ignorada ou transformada num espetáculo, o único desejo é ser feliz aqui e agora (como declaravam os jovens nas recentes jornadas) e o que tem significado é a celebração dos gozos desta vida. Quanto ao bem maior número de não praticantes, serão católicos ou cristãos em quê?

Kierkegaard sublinha o facto de que ser cristão não é uma coisa fácil, mas, ao contrário, muitíssimo difícil. O mandamento do amor ao próximo que tem como corolário o amor ao inimigo é um mandamento de aplicação extremamente árdua. O mandamento não diz: “respeita o teu inimigo”; nem diz: “não faças dano ao teu inimigo”; nem mesmo: “trata bem o teu inimigo”; diz: “ama o teu inimigo”. Como o amor-próprio me aconselharia a detestar o inimigo, o teor do mandamento exige que eu o ame mais que a mim próprio. Como se pode, pois, aceitar que alguém seja cristão se nem sequer tenta amar o próximo? Só porque o diz? Se um banqueiro, toda a vida dedicada à acumulação de capital, declarasse que era comunista ou anticapitalista, ser-lhe-ia dado crédito? Ser cristão é um ideal que só se pode perseguir através da ação dedicada, do esforço, do empenho, mesmo que sejam inevitáveis as falhas que acompanham o estatuto de pecador. É preciso que ao menos se tente cumprir o mandamento. Não é cristão quem o diz, é cristão quem merece, pelos seus atos, ser considerado como tal. Caso contrário, a declaração de que se é cristão ou católico tem apenas um significado social, a identificação da pertença vaga a um coletivo, sem o mais ínfimo significado sagrado, sem qualquer sustentação doutrinária, muitas vezes sem sequer as formalidades rituais. Tal declaração poderá ser relevante para a sociologia, não para a religião. Do ponto de vista religioso, é uma blasfémia, uma profanação, uma profunda falta de respeito para com o ideal cristão.

Ora, a Igreja Católica tem total consciência de tudo isto, mas não lhe importa qualquer verdadeira fé, importa-lhe alimentar essa ilusão de uma imensa cristandade, porventura por tão-pouco acreditar nas suas próprias doutrinas e lhe importar bem mais o seu poder neste mundo. Contabiliza como seus crentes os tais católicos não praticantes, contabiliza até os batizados que nem se declaram católicos, estimula a religião milagreira para objetivos imanentes, contemporiza com toda a crendice blasfema ou herética que mistura as suas práticas com as ditas “espiritualidades”, até promove eventos em que se congregam curandeiros e videntes, bruxas e médiuns, todo o tipo de esoterismos tradicionalmente condenados pela Igreja. Tudo lhe serve para tentar recuperar o poder mundano. E preocupa-se em manter as suas exigências a um nível tão light que podem ser facilmente consumidas por toda a gente. O próprio atual papa, alegadamente tão progressivo, justificava a reação às caricaturas de Maomé, exatamente depois do massacre dos humoristas ocorrido em França, através da legitimidade de esmurrar quem nos ofenda. É natural: perdoar a quem nos tem ofendido, dar a outra face, são exigências extremistas que o povo dificilmente tentaria cumprir – e a Igreja recebe todos, todos, mesmo aqueles cujas práticas estejam nos antípodas dos ideais cristãos, mesmo que os receba como pecadores e contraponha estes pecadores aos justos que é difícil discernir quem são. Talvez os justos sejam os sucessivos banqueiros (Jardim Gonçalves, Ulrich, Salgado, Macedo, etc.) que se declararam diversas vezes, como poucos já o fazem na sociedade civil, defensores da fé cristã e da necessidade da sua defesa, tão contrários à perda de valores cristãos nesta nossa sociedade, mas certamente, como sempre, só para os pobres, pois nunca os vi cumprir a exigência de Jesus no episódio do homem rico.[4] E, porém, é com eles e outros análogos que as mais altas esferas da Igreja se sentem bem, para não dizer cúmplices, agora e pelo século dos séculos. A hipocrisia desta gente e da Igreja, tão bem denunciada por Marx, tornou-se, porém, muito mais difícil de sustentar quando os textos por eles considerados sagrados se tornaram acessíveis ao comum dos mortais.

Ora, voltando ao início, estava eu a tecer considerações deste tipo, não as do último parágrafo, mas dos anteriores, quando um aluno declara: “O setôr é mesmo ateu.” De facto, como os alunos já sabiam, sou mesmo ateu, mas o que eu estava a tratar era a crítica religiosa à religião contemporânea, ou seja, a crítica de pessoas profundamente religiosas, até de diversos pontos de vista (moral, existencial, hermenêutico), à perda de sentido do sagrado. O aluno em causa está longe de ser um aluno medíocre, é um aluno com uma inteligência viva, interessado e atento, participativo e autónomo, mesmo que um pouco menos estudioso do que deveria. Como poderia, então, considerar que as críticas inspiradas em Kant, Kierkegaard ou Ricoeur tinham um teor ateu? Estaria distraído? Confuso? Não, vive apenas nesta época e não deixa de ser reflexo dela. Com o pouco tempo que tinha, apenas relembrei que estas críticas tinham sido enunciadas por homens verdadeiramente religiosos, mas, se tivesse possibilidade de uma explicação mais demorada, teria dito que a acusação do aluno era reflexo do maniqueísmo grosseiro que domina totalmente os meios de comunicação nesta era e que cria um ambiente generalizado de anulação das distinções no pensamento dos indivíduos, para lá do alinhamento em duas manadas opostas. Ou se é crente, ou não crente, e todas as distinções entre os crentes são caladas para produzir um exército mais coeso, e todas as diversas críticas dos não crentes são consideradas como pertencendo a um mesmo pacote, o do exército oposto. O dogmatismo é notório de ambos os lados e, por vezes, até bem maior, nesta época, do lado ateu. Mas é um dogmatismo cego que nem sabe ao certo que doutrinas está a defender exceto a vaga tese do pró e contra a religião. Se se está a criticar algum aspeto das crenças religiosas, mesmo tratando-se do fideísta Kierkegaard, só se pode ser um ateu; se se defende alguma crença, só se pode ser um homem de fé, de toda a fé, nem, se sabe bem qual, visto tudo pertencer ao mesmo pacote. A religião do padre Fontes é a mesma da teologia de Aquino, a de Fátima é a mesma de Calvino, a de Francisco, o papa que justifica a agressão, é a mesma de Jesus, a religião dos teólogos é a mesma do povo, a religião moral de Kant é a mesma do fideísmo de Pascal, a religião estatutária tradicional é a mesma da fé escatológica de Ricoeur? E, do outro lado, as perspetivas de Clifford, Ayer ou Russell são as mesmas que o panteísmo de Spinoza ou o ateísmo de Meslier, o ateísmo de Marx é o mesmo que o de Mackie, a perspetiva de Nietzsche é a mesma da de Freud?  

A este maniqueísmo grosseiro instilado pela cultura popular norte-americana, já seguido por outras (a europeia, a japonesa, etc.) de forma mais ou menos acéfala, corresponde uma formatação do pensamento da maioria que se tornou incapaz de sequer tentar compreender, não as diferenças mais subtis, nada para o qual seja requerido o esprit de finesse, mas apenas as mais elementares discriminações do espírito geométrico.[5] Para tal, também muito contribui a irrelevância da religião para a vida corrente, aquilo que é expresso pela declaração nietzscheniana da morte de Deus. Noutras eras, a religião enquadrava toda a vida da comunidade pela repetição anual dos rituais que tornavam de novo vivo o tempo sagrado, toda a compreensão da realidade era determinada pelas crenças religiosas, nenhuma prática, financeira, económica, moral ou política, era admitida se não fosse sancionada pelos modelos sagrados. Hoje, aqui na Europa, mesmo um crente, compreende o mundo através da ciência laica, regula os seus investimentos pelas regras do mercado, segue as modas de vestuário mais hostis às conceções religiosas, é condicionado constantemente pelas opiniões formadas pelos media, comporta-se, na sua vida afetiva, segundo as mentalidades determinadas pelo mundo profano, pode até mesmo ter comportamentos ostensivamente opostos aos da doutrina da Igreja que diz professar (contracepção, orientação sexual, “espiritualidades”, etc.) – e reserva um anexo remoto da sua existência para a sua suposta religião, um último recurso para quando se sente aflito, ainda assim subordinado ao médico, ao psicólogo e talvez ao guru. A reserva do próprio crente lembra a das visitas aos túmulos dos falecidos. Há que ainda mostrar o seu respeito, mas a vida segue, na sua quase totalidade, sem sequer se lembrar dos defuntos. Essa é a maior evidência da morte de Deus e não as teses ateias. No final do célebre texto da Gaia Ciência em que Nietzsche declara a morte de Deus, compara-se as igrejas a jazigos onde os crentes vêm ainda prestar homenagem ao Deus falecido. Deus morreu, não pelas teses ateias, não por o homem se ter superado a si próprio e tomado o lugar do próprio Deus, mas pelo mais mesquinho que existe no homem, por aquilo que é ilustrado na imagem do último homem proposta no Zaratustra, pela pequenez da homogeneização que se ilude com diferenças toscamente superficiais, pela nivelação que dispensou Deus por se ter tornado incapaz de transcendência, pela impotência de olhar para lá do ambiente próximo, de escutar algo mais do que o ruído da manada, de dizer algo que tenha significado para lá das operações necessárias ao funcionamento coletivo. Nesse ambiente, a questão de Deus está reduzida a um ridículo Benfica/Sporting, um absurdo esquerda/direita, um acéfalo creio/não creio, sem a menor profundidade ou compreensão, sem a menor intenção de explicitação, uma mera escolha ao calhas, fútil, como comprar este vestido em vez daquele – e não se nota a menor diferença entre as vidas dos que escolhem para um lado ou para outro, pois tal escolha se tornou irrelevante. Qual a diferença entre as declarações de felicidade dos jovens nas recentes jornadas e aquelas que foram produzidas logo a seguir no Meo Sudoeste? E qual a diferença entre os horizontes destes jovens e aqueles que são descritos por Nietzsche a propósito do último homem? “«Descobrimos a felicidade», dirão os Últimos Homens, piscando os olhos.”[6]

No caos a que o último homem chama mundo, não há alto e baixo, não há superficial e profundo, não há saber e ignorância, há apenas a reiteração da mesma pequenez sem fim que confunde a imensidão do número com grandeza. Os likes substituíram a fala e em breve até os slogans serão demasiado complicados. A própria filosofia está reduzida a um cálculo binário que incinde sobre esqueletos argumentativos elementares e atómicos. Nada se justifica senão por objetivos utilitários imediatos e nada tem valor se não for objeto de negócio. As críticas deístas, panteístas, agnósticas ou ateias não foram as responsáveis pela morte de Deus, mesmo se contribuíram um pouco para ela. O plebeu mesquinho que desprezava a religião através de um ateísmo prático mais ou menos secreto tornou-se todo-poderoso e apenas estendeu, pelo número, o desprezo e a incompreensão já antes sentidas. Este processo foi crucial para nos livrarmos de crenças e práticas religiosas arbitrárias, muito mais que os argumentos de legiões de filósofos, literatos e cientistas. Porém, associado à morte de Deus ou da religião, ocorreu um processo muito mais grave e prejudicial para toda a existência. É a morte do sagrado. Tudo se tornou venal e, logo, tudo se tornou profano. Melhor, nem sequer profano, pois este depende da oposição ao sagrado, mas boçalmente indiferente. A galhofa com que é recebido o louco que procura Deus (o reverso do insensato dos Salmos) no texto de Nietzsche é que matou não apenas Deus, mas a própria possibilidade de sagrado. É minha convicção que, sem sagrado, a própria existência perde qualquer sentido possível. Mas o sagrado não implica nem o teísmo, nem o fideísmo, nem a escatologia. Este é o primeiro de vários artigos que dedicarei à questão religiosa atual. Esta foi uma primeira abordagem da dessacralização contemporânea. Voltarei a ela no final. Antes, porém, gostaria de rejeitar as sucessivas restaurações do teísmo e fideísmo, denunciando-as como meras restaurações de ilusões perniciosas. Na verdade, uma série de autores procuraram dar razão à crítica ateia, corroborá-la, incorporá-la, para pretender, depois, superá-la por aquilo que sustentaram ser a verdadeira religião ou a verdadeira fé que, supostamente, teria ficado incólume após a referida crítica. De tal “operação”, são exemplos Levinas e, sobretudo, Ricoeur. É minha convicção que não passam de soluções requentadas que tentam desesperadamente recuperar as velhas ilusões, recorrendo, aliás, para isso, a toda uma série de truques camufladores de falácias grosseiras. Importa, pois, após seguir as vias mais tradicionais da crítica ateia ou agnóstica, a analítica e a genealógica, o confronto com estas “novas” propostas de restauração do divino. A clarificação do ateísmo tem o desígnio de libertar a possibilidade de pensamento futuro de toda a tralha teológica e fideísta que está a atravancar o caminho, provocando regressões constantes e justificando as próprias tendências mais irracionais da religião popular. Mas a afirmação ateia não implica a rejeição do sagrado. E desconfio que, se se escavar suficientemente a tradição teísta ocidental, sem necessitar de recorrer ao oriente, se poderá encontrar, na origem, esse sagrado bem próximo do ateísmo.

Porém, é irrelevante que se aceite ou não uma tal interpretação, o que importa é a instauração de sentido aqui e agora – e um tal empreendimento é bem mais difícil que a aceitação de uma reinterpretação do passado. Importa escutar, não o além infinitamente distante, mas o emudecido, por esta época, mesmo aqui ao pé; importa o zelo, o cuidado, a atenção pelo caráter único de cada acontecer; importa gerar o possível, gizar o futuro, gestar a promessa de vida no cultivo, no trabalho, na procriação, na própria obra; importa fazer o humano, por fim, digno de si mesmo; importa demandar não o sentido transcendente alucinado, mas o perdido sentido do aqui e agora; importa indagar o deserto da operatividade e desvelar a transcendência inevitável da própria imanência; importa desdobrar a existência compactada num invólucro utilitário e fazer florescer a palavra e o discurso pela poesia e pensamento; importa dizer algo por si significativo e não meramente funcional; importa inspirar, enlevar-se pelos odores da terra ignota, ouvir a música das cores, falar verdadeiramente para o outro, ouvi-lo como se nada mais importasse atender; importa compreender a incompleta totalidade, a ignorância da origem, o mistério da alteridade; importa importar-se e não negligenciar o mais ínfimo fragmento de ek-sistência; no caos técnico sem freio da rapina, agressão e concorrência, importa persistir, importa a resistência. E, se nada disto importar, não importa mesmo nada.



[1] Immanuel Kant, tr. port. Artur Morão, A Religião nos limites da simples Razão, Ed. 70, Lisboa, 1992, pp. 201 – 202.

[2] Sören Kierkegaard, tr. port. João Gama, Ponto de vista explicativo da minha obra como escritor, Ed. 70, Lisboa, 1986, p. 37.

[3] Sören Kierkegaard, op. cit., p. 38.

[4] Mateus, cap. 19, vers. 16-24; Lucas, cap. 18, vers. 18-25.

[5] Referência a uma distinção bem conhecida de Pascal.

[6] Friedrich Nietzsche, tr. port. Alfredo Margarido, Assim falava Zaratustra, Guimarães ed., s/l, s/d, p. 18.