26.5.07

A explosão demográfica e o humanitarismo

Quem, no seu perfeito juízo, poderia não louvar os esforços humanitários desenvolvidos por médicos, enfermeiros e outro pessoal das mais diversas organizações, que se têm esforçado por minorar o sofrimento das populações do Terceiro Mundo facultando-lhes medicamentos, dando-lhes acesso a antibióticos, promovendo gigantescas campanhas de vacinação, tentando mesmo irradicar certas doenças e chegando mesmo a irradicá-las, como aconteceu com a terrível varíola? Frente a populações esquecidas pelo mundo, esses heróis lutam com meios extremamente escassos para fazerem face às mais diversas doenças epidémicas, algumas das quais, como a malária, continuam a matar em larga escala (2 milhões de vítimas mortais da malária por ano). Haverá outra forma de tratar o tema senão através da idolatração de tais pessoas?
Custa-me fazer o papel de advogado do diabo, mas raramente encontrei uma situação em que melhor se empregasse o velho ditado popular: "de boas intenções, está o inferno cheio." Poderão essas pessoas regressar a suas casas das suas cidades exuberantes de desperdício, com a boa consciência de terem salvo milhares de vidas humanas e, caso sejam religiosos, com a secreta esperança de um lugar no paraíso. Mas, entretanto, o que acontecerá a esses milhares de pessoas que "salvaram"? Para que vida salvaram essas pessoas? Nunca houve massas tão vastas de famélicos como na nossa humanitária época. Cada pessoa salva de doenças que eram mortais no passado, reproduzir-se-á e engrossará a massa de famintos. Em vez de morrer de uma doença que a faria sofrer durante alguns dias, semanas ou meses, poder-se-á arrastar com sede, fome e sofrimento, durante décadas. As vacinas e os antibióticos poderão ter chegado a tais remotas paragens, mas não a comida, com excepção de campanhas pontuais, e não as condições produtivas para superarem a miséria. As situações são diversas e em muitos locais as condições de vida são suficientemente aceitáveis para que as campanhas humanitárias sejam incondicionalmente boas. Não deixa de ser interessante que até essas condições aceitáveis sejam inferiores àquelas que, no mundo desenvolvido, se consideram inaceitáveis para a vida e justificativas, nas campanhas políticas, para a execução do aborto. Mas vastas regiões do mundo, como, por exemplo, a maior parte do Sahel, defrontam-se com condições, para uma população sempre crescente, inferiores a qualquer limiar mínimo aceitável. E, nesses casos, essas pessoas e a sua imensa prole que acompanha sempre, em qualquer lado, a miséria, foram "salvas"?
Claro que não é do pessoal humanitário a culpa das condições de vida dessas regiões desoladas. Claro que esse pessoal humanitário é o primeiro, no mundo desenvolvido, a conhecer essas condições e a revoltar-se contra a inércia das potências políticas e económicas que esbanjam recursos inimagináveis e só olham para essas regiões se a cobiça por matérias primas lá encontrar um alvo de exploração, que chegam a provocar instabilidade, conflitos e guerras apenas para terem um acesso mais fácil e barato à espoliação de tais recursos. Claro que têm a consciência de estar a lutar contra a maré e que a sua acção pouco pode melhorar as condições de vida daquelas pessoas. A questão, porém, é se não piorará em vez de melhorar. Criando condições para o aumento populacional, a acção médica, sem a evolução económica das zonas desenvolvidas, salva pessoas para uma cada vez maior pressão sobre os recursos disponíveis, levando a que se intensifique e se estenda a actividade agrícola a zonas reservadas tradicionalmente à pastorícia, à floresta ou a pântanos, provocando, imediatamente, desastres ecológicos e, com o tempo, a erosão dos solos e uma cada vez maior desertificação. Muitas vezes, a única solução é partir para cidades que não têm condições para os receber e onde se criam cidades de lata gigantescas, nas quais os famélicos procuram encontrar migalhas que caiam da mesa dos ricos que os possam sustentar um pouco mais de tempo. Mesmo nos países mais miseráveis, há sempre quem se banqueteie à beira das condições humanas mais deploráveis. De facto, algumas das maiores fortunas convivem com a miséria inominável da esmagadora maioria.
Muitas vezes, não se tem sequer conciência que a medicina é também uma área tecnológica. Como área tecnológica, tem o objectivo de mudar a realidade, nomeadamente as condições naturais. Como um engenheiro que tem como objectivo chegar à outra margem do rio e, para tal, constrói uma ponte sem estar a considerar todo o resto do mundo, assim um bom médico trata uma doença de um ser humano só porque é um ser humano, independentemente de quaisquer condições que existam à sua volta. Como poderá qualquer pai não querer que um médico salve o seu filho em sofrimento e que, antes, estava a caminho de uma morte certa? É por isso que é humana e humanitária a acção. E, com certeza, que esse esforço médico é infinitamente mais meritório que o dos médicos que só agem a peso de ouro em confortáveis consultórios acolchoados. Mas esta actuação tem as características de toda actuação tecnológica. Nunca parece haver consciência de que a mudança ou transformação de um grão de areia, passe o exagero, poderá ter impacto no conjunto do mundo. Com certeza que as organizações humanitárias poderão dizer que fizeram a sua parte e que cabe a outro tipo de organizações fazer o resto. Mas a questão está no facto de ser ou não benéfico fazer esta parte sem que as outras sejam feitas.
Os meios naturais de controlo da população foram muito diminuídos e, em vastas áreas do globo, não existem condições sociais, económicas e políticas para a criação de meios estritamente humanos de controlo. O desespero é de tal ordem que, em muitas zonas, já se levaram a cabo campanhas mais ou menos secretas de esterilização forçada e de abortos sistemáticos. Os locais onde tais práticas ocorrem não são, porém, os mais desfavorecidos de todos. Nos locais mais desfavorecidos, como em grande parte da África sub-saariana, a proliferação é entregue, simplesmente, à sede e fome massivas. No seu desespero, arriscam-se a tudo para virem bater à porta dos reinos do desperdício, a Europa e a América do Norte, e aí ganhamos consciência deles como um incómodo. Não temos sequer consciência que esse "incómodo" corresponde à esmagadora maioria do mundo. Sempre fiquei deprimido com o facto de os meus alunos pensarem que pertencem a um povo desfavorecido no mundo e de não terem nenhuma consciência que, mesmo os mais desfavorecidos entre eles, pertencem aos 15% da população mundial mais privilegiada. E esta cegueira é a primeira condição cultural para que todos os restantes erros de cálculo sejam feitos. O mundo está à beira do abismo e muita gente julga que está contribuir para a salvação do mundo com chazinhos de caridade.
Seria melhor, então, não fazer nada? É demasiado tarde para e demasiado horrível não fazer nada. Costuma-se dizer que o bom é inimigo do óptimo, mas, por vezes, trata-se, simplesmente, do mau ser melhor que o pior. Estou certo que a África estaria muito melhor se não tivesse existido a colonização e se nunca lhe tivessem sido trazidos os "benefícios" da "civilização", da tecnologia. A natureza geriria muito melhor a realidade humana do que os humanos têm gerido. Porém, as multidões sempre crescentes de famélicos já aí estão e deixá-los, simplesmente, morrer é já o que acontece, sem que isso signifique, porém, qualquer paragem ou recuo na explosão demográfica. O que seria importante é que se começasse a pensar melhor e que se ponderasse, sempre, o conjunto das situações, em vez de entregar o tratamento dos constantes cenários catastróficos a tão arrebatados como inconsequentes (quando não nefastos) gestos de entrega do coração. O que seria importante é que se deixasse de pensar parcialmente, unilateralmente, fragmentariamente, e cada acto se integrasse num todo. É isso que se vai passar? A julgar pelas sucessivas declarações da ONU, o fim da fome no mundo está sempre a um passo, mas, passados uns anos, estamos sempre mais distantes do que estávamos. Não me parece crível que vá ocorrer uma reforma na humanidade de tal ordem que, por todo o lado, em uníssono, se comece a pensar decentemente. Julgo que, infelizmente, o melhor que se pode esperar é que tudo continue, mais ou menos, na mesma, nuns lados melhor, noutros pior. E temo, sinceramente, que tudo esteja a progredir para a desgraça inexorável, até porque o que o passado nos mostra das tentativas de "civilizar" o mundo é que parece sempre querer dar-se razão a um outro ditado popular: "pior a emenda que o soneto."
Que assim não seja, podem crer que adoraria estar enganado...

11 comentários:

AN disse...

ho stôr tudo bem que é a realidade, mas não acha que anda a "abusar" um bocado nas imagens..?! =/

quim disse...

Infelizmente, a realidade é que anda a abusar e o manto de silêncio sobre ela já é suficientemente grande. Sabe que entre cerca de 1000 fotos no google sob o rótulo "hunger", certamente mais de 90% era de gente a banquetear-se, gordos a encherem-se de burgers e coisas assim. Apenas meia dúzia dessas fotos diziam respeito a verdadeira fome. Ora, quanto a reflexo do que é a realidade, acha que é isso que acontece no mundo: mais de 90% das pessoas a banquetear-se e menos de 1% a passar fome? Ora, é isso que querem que também eu dê, uma visão deformada da realidade? Acha que já não chega de vos enganar com um mundo de abundância, uma espécie de conto de fadas para adultos?

lilianne disse...

"tudo bem que é a realidade,mas não acha que anda a "abusar" um bocado nas imagens?!"

desculpa andreia mas vou ter que t dzr que foi a coisa mais estupida que li.Achas mesmo que estas imagens são "abusar"...eu acho é que a tua realidade está fora do contexto, s fosse a ti eu tinha vergonha de dzr o que disses-te, é certo que nós vivemos num canto asséptico e anestisiado, mas acorda para a vida e ve bem á tua volta e vais ver que há mt mais que estas pequenas amostras d fotos que o stor pos no blog.

CIDE disse...

As imagens são "duras", mas são reais. por vezes é necessário mostrar o mundo em que vivemos, que vai muito além da sofá lá de casa, da Telenovela da noite e dos mimos da mãe.

Carolina disse...

Stor eu acho que a maior parte dessa gente das acçoes humanitarias estao onde estao e fazem o que fazem, para ajudarem os outros e admito que talvez uma grande parte para se sentir bem consigo mesmo ao fazer trabalhos de vá: personal fullfilment pq embora me custe aceitar o stor disse uma frase na aula q é verdadeira "todas as acçoes humanas sao egoistas". mas nao é qql um k se poe em africa a ver crianças no estado dessas fotografias e a ver miseria e tudo mais e nao fica indiferente! a verdade é mta gente se aproveita destas situaçoes humilhantes para enriquecer e isso ainda me revolta mais! uma coisa é querer ajudar outra coisa é fazer dinheiro à pala de desgraçadinhos em trabalhos perigosos e arduos, darem lhes uns tostões e eles ficarem todos contentes! isso é que devia ser travado! e nao podemos estar la a pensar assim: ai coitadinhos tou lhes aki a dar vacina contra o nao sei ke e secalhar amanha morrem desidratados. epah se todos pensarem assim mais vale nunca fazer nada! isso até nos paises desevolvidos acontece! tomamos hoje a vacina da gripe, morremos atropelados amanha! é a lei da vida.

Anónimo disse...

o que muitas pessoas n sabem é lidar com a realidade, e certos problemas continuam acontcer porque quando tenta se abrir os olhos para tal , a soluçao é fugir. e isso ja o vimos aqui. sim imagens de facto muito fortes, mas se nao gostamos do que vemos temos que tentar muda lo e na minha opiniao n é eskecer e ignora lo k vai deixar de ser xonkante e forte.

Diannee disse...

pois bem.. a vida tambem nao é so isso! pk essas imagens demontra um pouko do k o mundo tem da humanidade k é desgraça miseria tristeza e outros conceitos..obvio k é triste e preoucupante essa pequena parte do mundo, mas tambem "Todos" nós estamos ajudar porque é o nosso dever em ajudar aqueles k mais precisam; (em dar: vacinas,comida, agua,medicamentos etc..)pois tentamos por essas pessoas c/ um "sorriso". mas tambem nao podemos pensar so nisso, nao podemos pensar no pior..porque neste mundo tambem existem coisas bonitas e boas e k as pessoas podem satisfazer-se delas.
nao temos culpa de essa pequena parte do mundo estar assim! isso so prova k o nº de pessoas daí está aumentar e cada um deles sofre de uma doença ou outros.. por isso acho kao devemos estar a lembrar dessa pequena tristeza porque eu por exemplo estou bem!porque se estivesse la obvio k nao! por isso há k aproveitar tdo! á k aproveitar as coisas k a vida nos trás e saber aproveita-las!pk "Nós k nao temos culpa" contribuimos os outros k bem precisam!ou k é k poderemos fazer mais para o bem deles?! =s...

AN disse...

Bem Liliane, acho que não percebeste bem o significado do que eu quiz dixer... Por alguma razão pus abusar entre aspas... Eu sei muito bem que isto é a realidade, e acredita que a minha realidade fora do contexto nao esta certamente, apenas acho que há pessoas sensiveis a virem ver este blog (falo de pessoas que conheço que por cá passam) e estas imagens que o stôr aqui põe são um pouco chocantes! Como já disse, infelizmente é a realidade sim, e estas imagens servem para nos sensibilizar e mostrar exa realidade tão cruel que é, mas penso que são imagens que podem sensibilizar de mais as pessoas mais sensiveis. Percebeste? Não sou muito boa pra explicar as minhas ideias...

quim disse...

Carolina: A tese "todas as acções humanas são egoístas" foi dada como exemplo de uma má tese, impossível de testar e sempre confirmável por quem tenha má vontade e má língua relativamente ao ser humano.
Diane: É chocante que você tenha a ideia de que se trata de uma "pequena parte do mundo". Isso mostra como estão alheados da realidade em que vivem. Essa "pequena parte do mundo" é a esmagadora maioria do mundo. Mas como têm do mundo a visão de hollywood que só apresenta tal miséria muito raramente, quase por engano, vocês desenvolvem uma visão distorcida do mundo, pensando que os coitadinhos e os miseráveis são os portugueses e não tendo a mínima noção de que são muito privilegiados no conjunto do mundo. Além disso, julgam que a nossa situação é eterna, quando é evidente a decadência da europa que, mais tarde ou mais cedo, na competição global, criará situações de grande miséria como aquelas que, aliás, ainda não há muito tempo, se presenciavam nesta mesma europa.

lilianne disse...

hmmm ok ok andreia, mas d facto achei que a palavra "abusar" fora posto noutro sentido...dai a minha recção ao teu comentario...sim obvio que as pessoas mais sensiveis ficam chocadas, mas em certo ponto é msm bom que as choque , mas pergunto, essas pessoas serão msm sensiveis ou n querem simplesment encarar a realidade e fogem dizendo k as choca????
Mas andreia agora sim entendi onde querias chegr, peço deculpa pela frontalidd com que me opus ao teu comentario.

AN disse...

Não faz mal liliane... por vezes explico-me mal, e por isso compreendi a tua reacção. ;)

Mas...pois... realmente pode ser ixo mesmo: nao querem ou nao gostam de enfrentar a realidade, e então desculpam-se com esses argumentos.

Mas tudo na boa! ;)