O caso da Manela
No calor do anúncio da censura a Manuela Moura Guedes, no dia 3 de Setembro, muitos comentadores se apressaram a vir a terreiro, na maioria dos casos, com a expressa intenção de ilibar o primeiro-ministro, sustentada no argumento que seria uma estupidez ele fazer uma intervenção como aquela, 3 semanas antes das eleições, e alegando que o principal prejudicado pelo caso seria o próprio José Sócrates. Como se viu, porém, tal operação de branqueamento surtiu tal efeito que a principal consequência do caso foi o simples silenciamento da voz mais incómoda da comunicação social para o PS, durante todas as 5 longas semanas eleitorais que se seguiram. Se acumularmos a isto, o caso que pôs em posição defensiva o diário incómodo e o facto de o semanário incómodo parecer ter alinhado por outra facção do PSD contra a direcção actual, criaram-se as condições ideais para um passeio rumo à vitória socrática que tão difícil parecia à partida. É caso para dizer se seriam os próprios comentadores os estúpidos, se estariam a fazer de estúpidos os eleitores. Já agora, não posso deixar de dizer que o programa censurado era de facto revoltante em termos jornalísticos, mas a perda de qualquer referência à deontologia jornalística é comum a todo o jornalismo televisivo, sem que a generalidade dos políticos ou dos jornalistas vejam grande problema nisso. O programa em causa apenas acentuava tendências há muito instaladas na comunicação social.


No entanto, a sequência mais interessante passou-se com Pedro Adão e Silva, cujo mandato era muito mais óbvio. É preciso relembrar que muitos dos que não se atreviam a incriminar directamente o primeiro-ministro, recordavam, porém, as pressões por ele e por membros do seu partido exercidas contra a estação e o programa em causa. Ora, Pedro Adão e Silva, referindo-se às pressões, considerou que quem as fez foi a Manuela Moura Guedes quando disse que seria muito estúpido tirá-la do ar, porque estaria a fazer “chantagem sobre quem detém o órgão”. Não sei se Pedro Adão e Silva conheceria a legislação que impedia qualquer administração de interferir na linha editorial de um órgão de comunicação social, mas considerar que alguém defender-se de uma censura anunciada é uma forma de pressão inaceitável, é o cúmulo da desfaçatez. Visto até parecer tratar-se de um crime à luz da nossa lei, a argumentação de Pedro Adão e Silva é a de que alguém que se queixa de um crime que aconteceu ou está prestes a acontecer, levado a cabo pela entidade patronal, está a fazer uma pressão intolerável sobre essa entidade.
Mais adiante, frente à insistência de Mário Crespo acerca de José Eduardo Moniz e Manuela Moura Guedes terem sido eliminados, o mesmo Pedro Adão e Silva nega que eles tenham sido eliminados ou derrotados, com base nas suas declarações “tipicamente políticas”: “o que eu assisti foi a intervenções de José Eduardo Moniz e de Manuela Moura Guedes (...) que não são intervenções (...) de um jornalista, (...) são intervenções de alguém que tem uma participação política e uma presença política na vida pública, eu não sei se isso é exactamente o papel que cabe a um jornalista.” Deste espantoso argumento, conclui que não lhe parece que sejam os derrotados desta história. A esta conclusão, seguiu-se um ataque ao teor jornalístico do Jornal Nacional por não garantir o pluralismo, o que, sendo inteiramente verdadeiro, soou, na circunstância, a justificação da censura.
Este último argumento é uma verdadeira pérola. Primeiro, os visados não tinham sido eliminados porque, no fundo, protestaram. Segundo, Pedro Adão e Silva parece nem reconhecer o direito a protestar a um jornalista porque isso o torna num político. Terceiro, aparentemente, sendo um político, um pseudo-jornalista já pode ser censurado à vontade. É difícil até pegar nesta argumentação por um lado em detrimento de outro. Um bom jornalista, segundo Pedro Adão e Silva, cala-se bem caladinho quando é censurado, não protesta e, nesse caso, já podemos ser solidários com ele pelo acto de censura. Além disso, desde que proteste, alguém já não é eliminado ou derrotado. Pelos vistos, pode até ser morto, desde que tenha protestado, não foi eliminado. Por outro lado, torna-se claro que há um direito superior a censurar políticos que não existe para os verdadeiros jornalistas (embora esta linha de raciocínio pareça estar em contradição com a utilização, pelo PS, do caso Marcelo para se defender dos ataques neste caso). Finalmente, e esta é a cereja em cima do bolo, desde que se seja político, é-se invencível. Não podem ser os derrotados desta história porque têm uma participação política e uma presença política. Ou seja, não é possível derrotar um político.
Em abono da verdade, estas declarações não constituem nada de especial no coro falacioso que foi feito neste dia e nos seguintes pelos responsáveis do PS e seus comentadores. Já referi isto a propósito do debate com o Louçã. Se há espectáculo político verdadeiramente impressionante é o do coro grandioso que o PS consegue montar na comunicação social sempre que algo corre mal ou sempre que decidem aniquilar alguém. Nas aulas referi um outro caso, o de Manuela Ferreira Leite a quando da declaração sarcástica, dirigida a Sócrates, sobre a suspensão da democracia. Muitos outros casos poderiam ser referidos, o do arranjinho com o Constâncio do deficit de 6,8%, as campanhas contra classes profissionais (que, numa fase inicial, resultaram sempre junto do povo, sempre pronto para dar vazão a uma invejazita), as sucessivas campanhas contra o Presidente, etc., etc.. Em todos os casos, parece haver a crença que uma falácia, se for muitas vezes repetida e por muita gente, deixa de ser falácia e passa a ser a encarnação da verdade e validade. E a verdade é que têm tido sucesso com a estratégia. Sempre que ela é executada na sua forma mais completa, passados alguns dias já toda a gente confunde a falácia com os factos e interpreta os factos à luz da falácia. Tal é o poder da manipulação política. Como disse, as declarações citadas nada têm de especial no contexto desses dias, tratam-se simplesmente das que eu gravei e servem como exemplo da estratégia adoptada a propósito deste caso.
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