30.1.10

Descartes - A demonstração da existência do mundo físico e a forma como é recuperado

Devido à confusão provocada pela obscuridade do manual no que respeita à recuperação do mundo físico e à forma como é recuperado, e, ainda, ao facto de não ser citado qualquer texto a este propósito, apresento, em seguida, algumas palavras do próprio Descartes:

1. Que razões nos fazem saber certamente que há corpos.

Se bem que estejamos suficientemente persuadidos que há corpos que existem verdadeiramente no mundo, como, porém, duvidámos anteriormente disso e pusemos isso no número dos juízos que havíamos feito desde o começo da nossa vida, é necessário que investiguemos aqui as razões que nos fazem ter disso ciência certa. Em primeiro lugar, experimentamos em nós mesmos que tudo o que sentimos vem de outra coisa qualquer que não o nosso pensamento; porque não está no nosso poder fazer que tenhamos um sentimento em vez de um outro, dependendo isso dessa coisa segundo a forma como toca nossos sentidos. É verdade que poderíamos nos questionar se Deus ou qualquer outro que não ele, não poderia ser essa coisa; mas, por causa de nós sentirmos, ou melhor, dos nossos sentidos nos excitarem, muitas vezes, a perceber, clara e distintamente, uma matéria extensa em comprimento, largura e profundidade, da qual as partes têm figuras e movimentos diversos, de onde procedem os sentimentos que temos das cores, dos odores, da dor, etc., se Deus apresentasse à nossa alma, imediatamente por ele próprio, a ideia dessa matéria extensa, ou, somente, se ele permitisse que ela fosse causada em nós por qualquer coisa que não tivesse qualquer extensão, nem figura, nem movimento, não poderíamos encontrar razão alguma que nos impedisse de crer que ele encontrava prazer em nos enganar; pois nós concebemos essa matéria como uma coisa diferente de Deus e do nosso pensamento, e nos parece que a ideia que temos disso se forma em nós ocasionada pelos corpos de fora, aos quais é inteiramente semelhante. Ora, considerando que Deus não nos engana de forma alguma, visto isso repugnar à sua natureza, devemos concluir que há uma certa substância extensa em comprimento, largura e profundidade, que existe presentemente no mundo com todas as propriedades que manifestamente conhecemos pertencerem-lhes. E essa substância extensa é aquilo que apropriadamente designamos por corpo ou substância das coisas materiais.

3. Que os nossos sentidos não nos ensinam a natureza das coisas, mas somente aquilo em que elas nos são úteis ou prejudiciais

Chegará que consideremos somente que tudo aquilo de que nos apercebemos por meio dos nossos sentidos, diz respeito à estreita união que a alma tem com o corpo, e que conhecemos, ordinariamente, por seu intermédio aquilo em que os corpos de fora nos podem aproveitar ou prejudicar, mas não qual é a sua natureza, a não ser, talvez, raramente e por acaso. Pois, após esta reflexão, deixaremos sem pena todos os preconceitos que não são fundados senão sobre nossos sentidos, e não nos serviremos senão do nosso entendimento, porque é só nele que as primeiras noções ou ideias que são como sementes das verdades que somos capazes de conhecer, se encontram naturalmente.

4. Que não é o peso, nem a dureza, nem a cor, etc., que constituem a natureza do corpo, mas somente a extensão.

Assim fazendo, saberemos que a natureza da matéria ou do corpo tomado em geral, não consiste de forma alguma em ser uma coisa dura, ou pesada, ou colorida, ou que toque nossos sentidos de qualquer outra forma, mas somente no facto de ser uma substância extensa em comprimento, largura e profundidade. No que respeita à dureza, disso não conhecemos outra coisa, por meio do tacto, senão que as partes dos corpos duros resistem ao movimento das nossas mãos quando se encontram; mas se, de todas as vezes que levássemos nossas mãos para qualquer parte, os corpos que aí estivessem se retirassem tão depressa quanto elas se aproximassem, é certo que não sentiríamos jamais a dureza; e, no entanto, não temos qualquer razão que nos possa fazer crer que os corpos que, desta forma, se retirassem, perdessem, por isso, aquilo que os faz corpos. Donde se segue que a sua natureza não consiste na dureza que sentimos, por vezes, a seu respeito, nem também no peso, calor e outras qualidades desse género; pois se examinarmos seja qual for o corpo, podemos pensar que ele não tenha em si qualquer destas qualidades e, no entanto, conhecermos, clara e distintamente, que tem tudo o que o faz corpo, desde que tenha a extensão em comprimento, largura e profundidade: donde se segue também que, para ser, ele não precisa de forma alguma delas e que a sua natureza consiste apenas no facto de ser uma substância que tem extensão.”

René Descartes, tr. fr. Abbé Picot, Les Principes de la Philosophie, 2ª parte, 1, 3 e 4.

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