Face à manifesta decadência de Francisco Louça, os dois maiores tribunos da política portuguesa, José Sócrates e Paulo Portas, confrontaram-se, no dia 2 de Setembro de 2009, num debate, a propósito das eleições legislativas, transmitido pela TVI. Como espelhos um do outro, em termos retóricos, foi curioso ver o recurso sistemático ao mesmo estilo retórico, incluindo, em vários casos, os mesmos tipos de falácias.
Logo para começar, como se tivesse desertinho por uma falácia, Portas faz a seguinte declaração: “Em termos económicos, eu entendo que a política económica de José Sócrates falhou, fracassou. Há dois momentos que os portugueses não esquecem: o primeiro, o governo decretou o início da retoma exactamente quando a crise estava a chegar a Portugal de uma forma violenta; e, bem recentemente, José Sócrates anunciou, praticamente, o princípio do fim da crise na véspera de se saber que Portugal tinha meio milhão de desempregados e tinha, infelizmente, batido esse recorde histórico.” Depois, conclui, enunciando aquilo que, segundo ele, a política económica de Sócrates havia gerado, incluindo muitos aspectos advindos da crise que ele implicitamente reconheceu vir de fora. Mas a falácia já estava feita. De facto, a demonstração feita por Portas do falhanço da política económica de Sócrates consistia na referência a duas declarações alegadamente erradas feitas por José Sócrates ou por membros do seu Governo. A associação é verdadeiramente insólita. Uma política económica não é feita por declarações. Os ministros poderiam ter feito milhares de declarações erradas e terem políticas de sucesso, e vice-versa, não ter feito nenhuma e as medidas serem um fracasso. Quem nos dera que os únicos erros de política económica dos nossos governos fossem as calinadas que este ou aquele ministro deu e às quais ninguém ligou!
Curiosamente, não demorou muito até que José Sócrates, nesta muito curiosa competição, fizesse uma falácia muito semelhante: “O senhor tem direito aos seus argumentos e às suas críticas, mas não tem direito a alterar os factos. Quando o senhor esteve no governo, não havia nenhuma recessão internacional e o senhor teve uma recessão por causa do discurso do país de tanga (referindo-se a uma declaração, no Parlamento, do então primeiro-ministro Durão Barroso).” Notável! Com estas declarações, percebe-se porque é que os nossos políticos não conseguem fazer grande coisa do país. Aparentemente, eles julgam que são as suas declarações públicas, talvez por serem transmitidas pela televisão, que decidem o destino do país. Provavelmente, em vez de tentarem resolver, de facto, os problemas do país, o seu trabalho consiste em treinar declarações, visto terem esta crença de tipo mágico de que são as suas declarações que poderão assegurar o sucesso ou desgraça do país. Veja-se como Sócrates atribui a causa de uma recessão a uma única expressão de um discurso de um político. E devo dizer que isto não foi um lapso. Ouvi, incontáveis vezes, responsáveis do PS e comentadores alinhados atribuírem a causa da recessão ao discurso do país de tanga. Já agora, relembro que o que Durão Barroso fez nesse discurso foi acusar o PS de deixar o país de tanga. Ora, os responsáveis “socialistas” conseguiram esta proeza de alterar as causas da recessão, da gestão dos dinheiros públicos e da política económica, para a declaração que denunciava essa gestão e essa política. Assim, a causa da crise, em vez de ser a gestão, seja do PS, seja do PSD; passou a ser a declaração.
Já antes desta declaração de José Sócrates, Paulo Portas nos havia brindado com uma outra preciosidade tão típica quanto vazia do discurso político: “Eu não concordo com nenhum pessimismo estrutural. Portugal sempre foi capaz e o facto de este primeiro-ministro e de estes governos não serem capazes, não quer dizer que Portugal não seja capaz.” Ora, o que é que quer dizer isto de Portugal ser capaz ou não ser capaz? Estamos perante uma daquelas vacuidades políticas que, muitas vezes, servem de slogans, mas que não dizem rigorosamente nada. Animam o disposição dos eleitores mais papalvos, neste caso, com um patrioteirismo bacoco, sentem reforçada a crença não se sabe em quê porque a afirmação é absolutamente abstracta e, daí, em termos políticos, retira-se que opção? Obviamente, nenhuma. Qualquer político de qualquer quadrante poderia dizer isto, até porque não poderia dizer o contrário, sob pena de contradizer a sua própria função de político. E dizendo isto, diria um disparate. As pessoas são capazes de fazer isto e aquilo, desde roubar a ir às compras. Um conjunto de muitas pessoas é capaz de muito mais coisas. Mas ninguém é capaz em geral, nem mesmo Deus, para quem crê, visto não ser capaz do mal. Mesmo admitindo que um país seja capaz de alguma coisa, é muito estranho que seja capaz em geral. Aliás, como remete para o passado, talvez fosse útil a Portas uma releitura de qualquer História de Portugal para se dar conta de uma longa lista de incapacidades, não apenas dos governos, mas da sociedade e da economia portuguesa. Mas, claro, o que interessa é animar as hostes.
Mais adiante no debate, foi bem óbvia a forma como José Sócrates contorna as objecções levantadas por Paulo Portas relativamente às alterações à concessão do subsídio de desemprego, assim como foi óbvio que Paulo Portas ignorou, na comparação das taxas de desemprego entre o seu governo e o actual, o impacto da crise internacional. Igualmente, ambos lançam objecções infundadas e não justificadas, muitas vezes em apartes, às medidas enumeradas pelo outro, com o único objectivo de impedir que a mensagem do outro chegue, com clareza, ao telespectador. Ambos, aliás, apresentam um elenco unilateral das medidas tomadas pelos respectivos governos, nunca reconhecendo qualquer virtude a qualquer actuação do outro. Nestes passos, há muito material para análise mais detalhada, pelo que recomendo uma olhada ao vídeo:
http://www.youtube.com/watch?v=4DD_Hbj8FVE.
Estas semelhanças continuam por todo o debate. Por exemplo, Paulo Portas desvia-se à questão relativa à segurança interna posta por Sócrates – que o havia interrogado acerca do facto de se Portas tinha ou não votado a lei que criticava relativa à prisão preventiva – exortando-o a ir “interrogar os seus camaradas”, repetição de exortação anterior que tinha, na altura, feito todo o sentido, a propósito da Segurança Social e de posições tomadas por responsáveis do PS num documento oficial, mas que vinha completamente a despropósito nesta questão. Porém, logo em seguida, é José Sócrates que ignora a questão relativa ao relatório sobre segurança que o Governo reteve e não divulgou antes das eleições.
Porém, neste capítulo da Segurança Interna, a pérola final cabe a José Sócrates, com esta declaração: “Em matéria de segurança, eu acho que nós não devemos poupar esforços e sempre fiz aquilo que achava que devia fazer para pôr o Estado português e a sociedade portuguesa em segurança. Mas há uma coisa que eu nunca fiz e o que o senhor fez, sabe. Eu nunca aceitei que o Estado português entrasse numa guerra ilegítima e numa guerra errada como o senhor decretou e apoiou, a Guerra do Iraque. E essa diferença, e esse fardo do passado, vai persegui-lo por muitos anos.” Ou seja, Sócrates, para refutar as acusações de Portas relativas ao policiamento e à política penal, à falta de uma política de segurança eficaz, preventiva e protectora das vítimas, responde, acusando Portas de quê?... Da Guerra do Iraque… No comments.