Falácias da saúde
No passado dia 16 de Novembro, diversos responsáveis da Saúde deste país (Ministra da Saúde, Director Geral de Saúde, Director da Maternidade Alfredo da Costa, Directores de serviços de obstetrícia, etc.) fizeram declarações acerca da morte do primeiro feto após ser tomada a vacina para a Gripe A que são especialmente interessantes para a nossa análise das falácias por misturarem o discurso político típico com um infelizmente ainda recorrente discurso científico-tecnológico. Faço notar que o que está aqui em causa não é, como sempre, a verdade ou falsidade das teses mas sim a validade dos argumentos. Aliás, quem, neste caso, está do outro lado são os amargurados familiares que não são, na sua argumentação, menos falaciosos. Mas como não são políticos, nem para-políticos, não nos interessam neste trabalho – tanto assim é que até, neste caso, posso referir a falácia central que cometem, uma das falácias da falsa causa, sobretudo a que é conhecida pela expressão latina post hoc, ergo propter hoc, que consiste em considerar algo como causa de um acontecimento simplesmente por ter ocorrido num momento anterior. Existirão eventualmente outras, sobretudo, nas desesperadas declarações do pai, mas não vale a pena estarmos aqui a explorar situações com elevada carga emocional – já basta o que fazem as televisões.
Julgo, porém, que se houvesse um cultivo generalizado, na nossa educação, na nossa política e na nossa formação académica, mesmo quando tecnológica, da lógica e da honestidade intelectual, não haveria necessidade de recorrer a falácias, sem que, com isso, resultasse alguma situação de descontrolo ou pânico maiores que os actuais. Tomemos, por exemplo, as palavras da ministra Ana Jorge em declarações à RTP:
“Isto não tem nada a ver com o facto de a grávida ter feito a vacina às 34 semanas, três, dois dias, penso eu, antes de ter ocorrido a morte do feto in útero e, portanto, aquilo que nós achamos, neste momento, e todos os profissionais e os técnicos, que esta morte não tem nada a ver com a vacina, é uma coincidência no tempo. Portanto, vamos aguardar a autópsia, mas, provavelmente ou há muita probabilidade, porque muitas vezes as autópsias, nestes casos, também não nos contribuem muito para a identificação da causa. De qualquer forma, estamos seguros, dentro que inclusive já hoje de manhã os obstetras que mais trabalham nesta área têm dito que não há relação causal, que isto não é, não há nenhuma referência no mundo inteiro das grávidas vacinadas que tenha ocorrido uma situação dessas. Portanto, aquilo que nós gostaríamos de transmitir é que todas as grávidas do 2º e no 3º trimestre devem fazer a sua vacina. E também aquilo que me foi dito que aconteceu nesta grávida, no dia da vacina, é um efeito que não está descrito em ninguém que tenha feito a vacina e a vacina não dá, em quaisquer circunstâncias, não dá efeitos imediatos. Os efeitos adversos, os efeitos secundários levam muitas vezes, ou são imediatos, na altura da vacina, que não aconteceu nunca, ou os efeitos secundários, ou os adversos aparecem muito depois e, de facto, não está nada descrito naquilo que aconteceu. Portanto, nós confiamos e garantimos, a vacina é segura e, portanto, apelamos a todas as grávidas que se vacinem.”
Não estamos aqui para avaliar a capacidade oratória da ministra que, como se vê, não é apreciável. Deste arrazoado que chega a parecer contraditório, penso que se pode retirar a seguinte argumentação: «A morte do feto não tem relação causal com a vacinação ocorrida três dias antes. Porquê? Porque não existe qualquer registo, em todo o mundo, da morte de um feto ocorrer por causa da vacinação. Também os efeitos que, segundo a família, começaram a surgir logo a seguir à vacinação, não foram provocados por ela porque, novamente, não há qualquer registo de efeitos deste género que surjam imediatamente. De qualquer forma, vamos aguardar a autópsia, embora seja muito provável que a autópsia não esclareça nada.»
Sublinhei a referência a casos passados porque ela é crucial na argumentação, conjuntamente com a eventual inutilidade da autópsia. Já Jorge Branco, Director da Maternidade Alfredo da Costa, havia sustentado a mesma tese com base no facto de que “não há nenhuma referência internacional de morte fetal após a vacinação contra o vírus H1N1”. Por outro lado, Luís Graça, director de obstetrícia do Hospital de Santa Maria, após defender a mesma tese, com o mesmo argumento (embora este fosse o único a admitir, por absurdo, que, se existisse relação, seria o primeiro caso), acrescenta, relativamente à autópsia: “Em grande número destes casos que sucedem de morte fetal súbita perto do fim da gravidez, na maior parte destes casos a autópsia é, como nós costumamos dizer, branca, não se encontra situação palpável que possa ser atribuída a essa morte, é, pura e simplesmente, a morte súbita.”
Recapitulemos, de novo. Não há relação causal entre a morte fetal e a vacinação. Como sabemos isso? Porque não existe qualquer registo internacional de que tal tenha ocorrido. E como chegaram a tal conclusão em todo o mundo? Através de autópsias que, em muitos casos, não tiveram qualquer resultado (dizer que é morte súbita não é um resultado, é uma declaração de desconhecimento da causa). Ou seja, conclui-se, à partida, que não há qualquer relação porque não há qualquer registo, mas, se se utilizou o mesmo raciocínio nos outros casos, não há qualquer registo porque sempre se pensou que não havia relação com base em não existir qualquer registo. Além disso, a mesma conclusão é retirada da ausência de resultados da autópsia, ou seja, do facto de se desconhecer a causa da morte, em vez de se retirar uma simples interrogação sem resposta, retira-se um pseudo-resultado (a morte súbita) e o reforço da constatação inicial de que não há relação causal entre a morte e a vacinação.
Penso que os médicos dão estes frequentes pontapés na lógica confortados pelo facto de o estarem a fazer por bons motivos e com boas intenções. Estão acostumados a manipular as reacções das pessoas para o bem delas, como quando prescrevem placebos. Porém, é notório que a eficácia da argumentação foi reduzida neste caso, apesar da imensa campanha feita, porque, muito embora tenham uma fraquíssima formação lógica, as pessoas percebem, intuitivamente, que há algo de errado com estes argumentos. O mesmo aconteceu com a morte do rapaz de 10 anos umas semanas antes. A ministra bem veio defender o procedimento médico de diagnosticar uma virose para despachar o rapaz para casa (vindo a morrer dois dias depois). Virose é outro caso de não resultado ou, neste caso, de não diagnóstico. Virose é um diagnóstico tão genérico que inclui desde as mais insignificantes perturbações de saúde até algumas das mais graves doenças que podem ocorrer a um ser humano. Além disso, mas por isso mesmo, não é diagnóstico que razoavelmente sustente a consequência de não ser necessário fazer exames. Ora, qualquer utente dos serviços públicos de saúde, sobretudo os pais, sabem que esse diagnóstico tem como consequência, quase invariável, nos hospitais públicos, não só não serem feitos quaisquer exames, como serem enviados para casa os pacientes. O mesmo não acontece, muitas vezes, nos hospitais privados onde cada exame feito é dinheiro em caixa – e isso tem sido bem notório nesta questão da gripe e na forma como alunos da nossa escola com os mesmos sintomas, foram diagnosticados em instituições dos dois tipos. A razão dos diferentes procedimentos é, portanto, económica e/ou funcional e não médica.
Não digo que não possam ser boas razões. Mas, para mostrar que de boas intenções está o inferno cheio, quando se declara que é uma virose e não gripe, como parece ter ocorrido no referido rapaz e com alunos da nossa escola, sem ter feito exames e para não ter que os fazer, não só se provoca a diminuição de precauções relativamente a eventuais complicações, como se promove a eventual transmissão da gripe relativamente à qual tantas campanhas se fizeram, pois se declara, sem mais, ao paciente que ele a não tem, estando livre de transitar por onde lhe apetecer. Pergunto-me se não seria preferível a honestidade de um “não sei” e a explicação da verdadeira razão para não fazer exames, de forma a não bloquear e a não onerar despropositadamente o sistema com uma doença que é, na generalidade dos casos, banal e sem gravidade. Aliás, muitos são os médicos que o dizem, pelo que tal prática de diagnosticar evasivamente não é sequer generalizada (embora não passasse a ser boa, mesmo que fosse generalizada). Do referido resulta que, ao menos neste aspecto, se é verdade que um tal diagnóstico foi feito para o referido rapaz de 10 anos, a ministra não tivesse razão na defesa feita, muito embora o resultado viesse a ser o mesmo se os médicos reconhecessem que não sabiam o que se passava e o enviassem para casa. Mas, para os pais, poderia ser diferente porque poderiam não se ter sentido, como se sentem tantos utentes, manipulados.
Por fim, voltando ao caso inicial, devo referir que, em todo o caso, só ouvi uma argumentação que, não sei se será verdadeira ou falsa, mas não me pareceu falaciosa. Trata-se do argumento do Director de Obstetrícia do Hospital de São João, Luís Montenegro, que remeteu para a própria constituição da vacina a impossibilidade de relação causal entre a morte do feto e a vacinação. De facto, um argumento causal deve ser capaz de explicar a possibilidade de relação entre a alegada causa e o alegado efeito. A falta dessa explicação leva a uma falácia causal ou a outra congénere (e. g., falácia do acidente, da falsa analogia, etc.). Ao referir a sua incapacidade de perceber a possibilidade da relação com base na ausência do vírus na preparação da vacina, está a abordar pela negativa a explicação da relação. Este procedimento não só não é falacioso, como é o aconselhável em qualquer raciocínio causal.
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