21.11.09

Dr. Jekyll Primeiro-Ministro e Mr. Hyde Sócrates


Em 24 de Junho, o primeiro-ministro José Sócrates, na sequência do debate quinzenal na Assembleia da República, onde foi questionado pelo CDS-PP acerca do negócio que estava a decorrer entre a PT e grupo Prisa, envolvendo a TVI, à saída do hemiciclo, declarou, segundo a versão digital do jornal Público: “Não estou sequer informado disso, nem o Estado tem conhecimento disso”, insistindo, aliás, que se tratavam de negócios privados em que o Estado não se metia. Ora, recentemente, o semanário Sol revelou que, nas escutas de Março a Armando Vara, no âmbito do processo “Face Oculta”, o primeiro-ministro aborda o negócio que afirma desconhecer três meses depois.
Confrontado com a notícia do Sol, no dia 13 de Novembro, José Sócrates declarou à RTP (entre outros órgãos), junto ao Centro Cultural de Belém, que o jornal em causa não dava uma notícia, mas, antes, fazia um insulto, insistindo que mantinha tudo o que havia dito no Parlamento, não tendo nada a acrescentar. Mas acrescentou. E acrescentou de tal forma que confirmou a notícia que, supostamente, era apenas um insulto, ao avançar com uma estranha hermenêutica que distinguia os conhecimentos informais que eram discutidos em conversas entre amigos e os conhecimentos formais de Estado. Assim, talvez para obviar um possível conhecimento público futuro da escuta, o primeiro-ministro acabou por considerar um insulto que se considerasse que o primeiro-ministro tinha conhecimento daquilo que só José Sócrates tinha conhecimento. De facto, é de ficar espantado com o facto de se poder fazer um tão grade insulto. Mas “ouçamos” José Sócrates (ou será o primeiro-ministro):
“Porque uma coisa é naturalmente discutirmos aquilo que, com amigos, como o fiz, relativamente às notícias que vinham nos jornais e aos conhecimentos informais, outra coisa, como disse no Parlamento, como primeiro-ministro, o conhecimento oficial e o conhecimento prévio, cativo desse negócio: Não tive. Eu não tenho nada a acrescentar ou a retirar. Outra coisa é, e não me apanham nesse jogo, agora, comentar conversas que tive com amigos meus que são do domínio privado e que, lamento muito, não aceito essa ditadura de as querer transformar em conversas públicas.”
Obviamente que esta curiosa distinção não foi enunciada na sessão do Parlamento de 24 de Junho, nem houve qualquer esclarecimento acerca do sujeito elidido na declaração “Não estou sequer informado disso” – quanto ao sujeito ser José Sócrates ou o Primeiro-Ministro. Além disso, também não é esclarecido como é que o primeiro-ministro consegue ignorar os conhecimentos informais de José Sócrates. Talvez se esqueça do que acontece e do que toma conhecimento sob o efeito da poção. De uma coisa podemos já ter a certeza: o primeiro-ministro não afastou, directa ou indirectamente, Manuela Moura Guedes do ar – quanto a José Sócrates...

Embora pareça já fora do domínio da falácia, não posso deixar de comentar a intangibilidade que José Sócrates associa às conversas privadas, considerando uma ditadura querer transformá-las em conversas públicas. Para dizer a verdade, nem consigo perceber o que ele quer dizer. Quererá dizer que só se as conversas forem públicas é que podem ser objecto de um tribunal e de um julgamento? Quer dizer que não se pode investigar ou condenar um mafioso se a informação ou a prova obtida se basear na escuta de uma conversa privada, onde o suspeito encomenda um homicídio ou combina os detalhes de uma operação de tráfico de droga? Ou estar-se-á a referir à consideração política dessas conversas? Mas como algo pode ser investigado e/ou julgado e não poder ser considerado politicamente? É verdade que, neste caso, provavelmente, essas escutas nem poderão ser consideradas, mas devido a um diploma berlusconiano (aprovado, aliás, por Sócrates e pelo “seu” Parlamento) em que se limitam as investigações possíveis dos detentores dos mais altos cargos do Estado. Mas se se trata de evocar a sua situação excepcional, não deveria subsumi-la no enunciado de escandalizados princípios universais que, se fossem tomados em conta, tornariam inúteis todas as escutas – porque de conversas públicas, não é necessário fazer escutas – aliás, só são públicas se estiverem a ser, consentidamente, “escutadas por”, ou seja, emitidas para o público. Tendo em conta que Sócrates teve a maioria na Assembleia da República para poder acabar com as escutas, não se percebe que ele não aceite, só para si, a ditadura de fazer o que fazem todas as escutas judiciais, tornar o privado em público, quando manteve essa ditadura para todos os outros.


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