22.11.08

Falácias "educativas" II

Como prova de que a formação em Filosofia não torna os políticos imunes à argumentação falaciosa, talvez até antes pelo contrário, e que até mesmo políticos retirados gostam de matar saudades do tempo em que tinham que fazer acrobacias intelectuais mirabolantes para conseguirem defender as posições mais insustentáveis dos “seus” governos, verdadeiros Protágoras modernos na habilidade de tornar o argumento fraco em forte, seguem-se algumas declarações de José Pacheco Pereira no programa Quadratura do Círculo de 20 de Novembro, na sequência das alterações anunciadas pela Ministra da Educação ao processo de avaliação de desempenho dos docentes, Ministra pela qual o político metamorfoseado comentador, por diversas vezes, confessou a sua estima. Dizia, então, José Pacheco Pereira, pelas 23.22:
“A mim, preocupa-me, mais do que a substância deste processo, se a ministra da Educação cai (...) porque o Primeiro-Ministro a põe na rua ou porque ela tem que se demitir ou porque se chega a um impasse, em grande parte pela contestação dos sindicatos e dos professores, ninguém mexe em coisa nenhuma da Educação nos próximos 25 anos.” Logo a seguir, em resposta ao jornalista, insiste que mesmo suspender provisoriamente ou recuar apenas, em alguns aspectos, seria o mesmo que cair. Pelas 23.24, percebe-se que não seria só a Educação que ficaria paralisada: “Preocupa-me que haja um tónus reformista no governo e na sociedade portuguesa e eu sei que esse tónus reformista, independentemente das coisas estarem a ser bem ou mal feitas – porque acho que estão a ser muito mal feitas – (...) esse tónus reformista recua objectivamente, se a Ministra da Educação cair face à rua.”
Tendo em conta que não me lembro de alguma altura em que, na Educação, não se estivessem a passar várias reformas, ou curriculares, ou das modalidades de ensino, ou dos estatutos docentes, discentes ou dos outros funcionários, ou nos programas, ou na definição da rede escolar, ou na gestão, ou no agrupamento dos ciclos nas escolas, ou na avaliação docente ou discente, ou no ensino nocturno, ou nos concursos, ou no parque escolar, ou na implementação de novas pedagogias, etc., muitas vezes começando uma, no mesmo âmbito, ainda antes de ter acabado a experimentação da anterior, a mera expectativa de 25 anos de estabilidade, seja com que modelos for, não deixa de ter um carácter sedutor que só alguém que não trabalha neste parque de diversões dos políticos, dos "cientistas" educativos e dos funcionários ministeriais, que é o sistema educativo, não percebe. Mas, infelizmente, tal idílio só pode existir na cabeça de José Pacheco Pereira e aí, pelos vistos, entendido como se fosse um pesadelo. Além disso, o pesadelo, neste caso, tem a espantosa capacidade de se alargar a todos os sectores, coisa que nem a queda de Leonor Beleza, citada por Pacheco Pereira, teve o poder de conseguir. Aliás, o pesadelo já se tornou realidade porque, segundo Pacheco Pereira, após a conferência de imprensa da Ministra, esta, de facto, já caiu.
Já agora, convém entender o que Pacheco Pereira pensa (agora) sobre este processo de avaliação. Pelas 23.25, ele esclarece-nos: “Eu sou o primeiro a dizer que este sistema de avaliação tem todos os defeitos do mundo, ele é o resultado de uma atitude defensiva dos professores que quiseram acrescentar alínea sobre alínea sobre alínea sobre alínea para se defenderem do processo de avaliação e de um ministério que não percebe que fala com burocracia contra burocracia, e o resultado é um monstro que, evidentemente, gerou este movimento.” O monstro é adiante explicado por ser “profundamente burocrático”. Deixando passar o facto de toda a luta sindical do ano lectivo passado se ter centrado em tirar alíneas (como a da avaliação dos docentes pelos pais) e não em pô-las, Pacheco Pereira acaba por conseguir culpabilizar os professores pelo modelo contra o qual lutam, atribuindo apenas ao Ministério uma inocente ingenuidade, surgindo aqui os professores como modelos, por excelência, de burocratas. Os serviços administrativos tornam-se, assim, vítimas inocentes do espírito burocrático... dos amanuenses, dos conservadores, dos contabilistas, dos gestores, dos escriturários, dos inspectores, dos fiscais, de sabe-se lá que repartição onde se percam os K. deste mundo? Não, dos professores, os mais nefastos burocratas da sociedade. De facto, já me tinha sentido várias vezes num ambiente kafkiano...
Pelas 23.29, António Lobo Xavier sintetizou brilhantemente a argumentação de José Pacheco Pereira desta forma: “Ele disse: criou-se um monstro; mas, no fundo, depois disse: não se pode desistir do monstro porque isso é trágico, porque depois há 25 anos sem nada e é melhor termos um monstro do que nada nos próximos 25 anos.” Ou seja, visto, segundo Pacheco Pereira, o monstro ter sido criado pelos professores, registe-se que Pacheco Pereira é afinal favorável a algo criado pelos professores dos Ensinos Básico e Secundário. No entanto, é útil dizer que a descrição desfavorável deste modelo de avaliação por parte de Pacheco Pereira, só surgiu agora, quando descobriu a culpa dos professores na sua criação. De forma que não sei, ao certo, se os professores lhe deverão agradecer o apoio...
Como cereja em cima do bolo, pelas 23.34, José Pacheco Pereira renegava o que António Costa estava a afirmar com um repetido "isso é retórica", no velho sentido de um palavreado vazio e/ou enganoso que substitui o conteúdo pelo estilo empolado e/ou truques de manipulação demagógica...

Falácias "educativas" I

Até agora procurei evitar as falácias dos nossos políticos a respeito da crise da educação, mas como quase não se fala noutra coisa, se as não utilizo, dificilmente poderei arranjar outras. No passado dia 17 de Novembro, se não me surpreendeu a aberração legal de alterar uma lei com um despacho sob o pretexto de que se tratava de uma clarificação a propósito do Estatuto do Aluno, visto ser já uma prática corrente dos nossos políticos para se livrarem de textos legislativos incompetentes, já a desfaçatez do Sr. Albino Almeida supera tudo o que a mínima decência racional humana pode suportar. É que chamar clarificação a uma alteração que dá o dito por não dito, parece ser uma simples mentira, mas culpar as Escolas por cumprirem a lei que o próprio Sr. Albino aplaudiu entra num nível superior de desonestidade. Alegou o Sr. Albino que as Escolas, ao abrigo da sua autonomia, tinham liberdade para interpretar o Estatuto no sentido de ignorar os efeitos da não aprovação ou falta à prova de recuperação quando as faltas fossem justificadas. Aliás, alegou-o de forma insultuosa, acusando-as de “falta de capacidade” e de “necessitarem de muletas”. Em declarações às televisões, fez depender a sua interpretação do facto de se tratar de uma prova e não de um exame, como se o uso daquela palavra em vez desta não implicasse a exclusão no caso de não aprovação ou falta à prova. Como as premissas destes argumentos se encontram no próprio enunciado da lei, transcrevo em seguida os pontos relevantes do artigo 22º da Lei nº 3/2008 de 18 de Janeiro. Repare-se que, se nesse enunciado estiver dito que a não aprovação em ou a falta a essa prova de recuperação puder implicar a retenção ou exclusão, independentemente da natureza das faltas que lhe deram origem, o que o Sr. Albino está a defender é que a autonomia das escolas possa desrespeitar as leis da República e que os regulamentos das escolas possam se sobrepor aos diplomas legais. Talvez isso não seja estranho por parte de alguém que fica satisfeito por um despacho alterar uma lei...
Artigo 22.º – Efeitos das faltas: “2 — Sempre que um aluno, independentemente da natureza das faltas, atinja um número total de faltas correspondente a três semanas no 1.º ciclo do ensino básico, ou ao triplo de tempos lectivos semanais, por disciplina, nos 2.º e 3.º ciclos no ensino básico, no ensino secundário e no ensino recorrente, ou, tratando-se, exclusivamente, de faltas injustificadas, duas semanas no 1.º ciclo do ensino básico ou o dobro de tempos lectivos semanais, por disciplina, nos restantes ciclos e níveis de ensino, deve realizar, logo que avaliados os efeitos da aplicação das medidas correctivas referidas no número anterior, uma prova de recuperação, na disciplina ou disciplinas em que ultrapassou aquele limite, competindo ao conselho pedagógico fixar os termos dessa realização. 3 — Quando o aluno não obtém aprovação na prova referida no número anterior, o conselho de turma pondera a justificação ou injustificação das faltas dadas, o período lectivo e o momento em que a realização da prova ocorreu e, sendo o caso, os resultados obtidos nas restantes disciplinas, podendo determinar: a) O cumprimento de um plano de acompanhamento especial e a consequente realização de uma nova prova; b) A retenção do aluno inserido no âmbito da escolaridade obrigatória ou a frequentar o ensino básico, a qual consiste na sua manutenção, no ano lectivo seguinte, no mesmo ano de escolaridade que frequenta; c) A exclusão do aluno que se encontre fora da escolaridade obrigatória, a qual consiste na impossibilidade de esse aluno frequentar, até ao final do ano lectivo em curso, a disciplina ou disciplinas em relação às quais não obteve aprovação na referida prova. (...) 5 — A não comparência do aluno à realização da prova de recuperação prevista no n.º 2 ou àquela a que se refere a sua alínea a) do n.º 3, quando não justificada através da forma prevista do n.º 4 do artigo 19.º, determina a sua retenção ou exclusão, nos termos e para os efeitos constantes nas alíneas b) ou c) do n.º 3.”
Quanto ao que nos interessa, parece-me que nos argumentos do Sr. Albino estão envolvidas duas falácias distintas. Eventualmente, poderá também ser detectada uma outra nas explicações do Ministério, mas está longe de ser tão evidente. De qualquer forma, a minha preferida da Ministra da Educação (embora já desactualizada) continua a ser aquela que, inúmeras vezes, foi, por ela, reiterada, desde o ano lectivo passado, como se fosse um excelente argumento, a propósito da avaliação dos professores: desmentindo que o processo fosse muito burocrático e afirmando que, entre avaliadores e avaliados, só se tinha que preencher algumas folhinhas, rejeitava a possibilidade de suspender o processo de avaliação com base no argumento de que muitos professores já haviam trabalhado durante muitos meses nesse mesmo processo. Ora, como perceber que, não sendo burocrático o processo, tantos professores tenham trabalhado nele durante muitos meses (o que é, aliás, inteiramente, verdadeiro)?
Já agora, embora já não pertença à falácia em si, não seria suposto que a única coisa em que os professores no activo deveriam passar muitos meses a trabalhar, era no seu trabalho com os alunos, e a avaliação incidir sobre esse mesmo trabalho?