25.1.24

A inclusividade pedagógica

 


            A generalidade dos professores já pouco ou nada reage às investidas doutrinárias das modernas inclusividades, transição digital, flexibilidades, etc. Se instados, em privado, a dar a opinião, é, porém, muito generalizada a rejeição quer através de trejeitos, quer com declarações relativas à sua absurdidade. Porém, existe um número amplo de comissários políticos e de professores carreiristas que estão dispostos a seguir qualquer orientação do poder momentâneo, mesmo que em completa contradição com a que seguiam também fervorosamente ainda há poucos anos, para tornar quase axiomáticas as maiores falácias ou simples falsidades através da estratégia mais usada pelos próprios políticos da repetição ad nauseam. Este período é bastante diverso de anteriores, por exemplo, o do consulado de Guterres, porque, para realizar os desígnios ideológicos que passam por ciências de educação, se criou uma guarda pretoriana própria. Esses comissários de política educativa foram colocados em número muito superior a qualquer grupo disciplinar, ano após ano dos anos deste consulado, aproveitando o grupo já existente do ensino especial – mas deixaram de ficar circunscritos ao tratamento dos casos desses alunos (muitas vezes até mais negligenciados que anteriormente), até por o seu número exceder em muito as necessidades do ensino especial. Muito embora possam proferir objetivos mais construtivos, na verdade, como iremos ver, nada mais têm a dizer quando se dá a positiva a todos os alunos. Por muito que digam o contrário, nunca os vi (nem eles, nem ninguém) ir verificar se uma determinada classificação positiva corresponde a algum tipo de aprendizagem, mesmo que ínfima. A partir do momento em que se atribui a positiva, deixam de existir considerações de tipo algum. Torna-se, por isso, claro que o objetivo central desses comissários é o de produzir a adulteração dos resultados educativos de forma a garantir estatísticas de pleno sucesso. Em termos públicos, não existe a consciência desta realidade. Ainda recentemente, ouvi um dos comentadores televisivos referir como um dos problemas do ensino a falta de professores do ensino especial. Não, apesar de poder haver falta de funcionários ou especialistas dedicados às NEE, esse é o único grupo que não tem falta de professores em lado algum, embora, como qualquer massa, busque sempre ter um ainda maior número. Ora, esse processo de ampliação do número de comissários começou exatamente na altura em que se anunciava para breve o início da falta de professores nas escolas.

O público em geral não tem consciência de que esse grupo é atualmente constituído por docentes dos mais diversos grupos disciplinares, na maioria dos casos, sem qualquer formação académica relacionada com as NEE, quanto muito uma das bem pouco sustentadas formações de professores, que estavam em situações mais ou menos precárias e viram no ingresso nesse grupo a possibilidade de estabilização da sua vida numa efetivação segura. Do ponto de vista governamental, tal decisão mostra uma opção inequívoca que tem sido muito pouco sublinhada, para não dizer ocultada. O governo sabia que, ao desviar tão grande número de docentes para esta função, estava a criar condições para uma aceleração vertiginosa da falta de docentes disciplinares. Porém, não tenho a mínima dúvida que o fez intencionalmente, visto ouvir, há décadas, da parte de professores alinhados e políticos, uma desvalorização sistemática do saber disciplinar e a defesa de que qualquer um pode “ensinar” seja o que for, sem necessitar de qualquer conhecimento especializado. Fê-lo porque lhe importava mais garantir que os professores martelassem resultados do que quaisquer aprendizagens reais. Na verdade, isso mostra que, ao governo, importa mais a aparência presente que os resultados futuros na sociedade – e, para ocultar tal facto, envolve todo o sistema numa nebulosa de considerações difusas destinadas a relativizar a avaliação e recusa todo o escrutínio rigoroso dos resultados das suas intervenções. Declara-se que os resultados são mais ou menos os mesmos com toda a desfaçatez, quando se veem as escolas que anteriormente se destacavam pela positiva a afundarem-se nos exames na direta proporcionalidade da implementação das inclusividades – ao contrário, exatamente, das escolas que resistem a ou moderam essa implementação. Por isso, procuram desesperadamente acabar com os exames, pela maior dificuldade de aí levar a cabo uma fraude equalizadora.

            Pior ainda, como existe falta de professores, muito agravada por esta migração para o comissariado, o número de alunos por turma tem que ser cada vez maior, não se importando a tutela de impor o ingresso em turmas já cheias, até perfazerem 32 alunos, quantas vezes com alunos estrangeiros “despejados” na escola que nem inglês sabem e que os docentes, à falta de melhor solução, apenas acrescentam ao número das fraudes educativas que já têm de cometer. Como os horários estão mais que preenchidos, existe um cada vez menor recurso ao instrumento tradicional do apoio pedagógico acrescido e são as próprias Direções que o desincentivam, apelando a meios mágicos alternativos.[1] E os comissários têm de continuar a transmitir a doutrina da diferenciação que requereria um ensino individualizado quando os docentes não privilegiados pelos arranjos feitos nas escolas têm que lidar com verdadeiras massas industriais, com os quais só é possível o ensino massificado universal ou a pura e simples desistência dos docentes, dando positivas a todos sem critério e sem aprendizagem, de forma a não serem incomodados. Não creio que os comissários sejam de tal modo alienados da realidade que possam crer que tais pedagogias diferenciadas possam ser implementadas sem esforço algum pelos docentes, como já os vi defender sem que ninguém levantasse a voz para lhes dizer que estavam a delirar. O seu objetivo é apenas o mesmo que orienta os ideólogos há muitas décadas, criar má consciência nos docentes, fazê-los crer que a culpa do insucesso é sempre sua e, assim, para se redimirem da culpa, forçá-los a apresentar resultados falsificados que, hipocritamente, se declara nunca terem sido pedidos. Se o governo tivesse a mínima intenção de aferir os resultados desta política, bastava-lhe ver se a percentagem de alunos do ensino público aumentou ou diminuiu no ingresso nos cursos mais procurados, as medicinas, certas engenharias, etc. Mas os dirigentes do partido que promove esta exclusão camuflada de inclusividade sabem bem o que estão a fazer e têm quase todos os filhos e netos nas escolas privadas de excelência. Perante este cenário, o que é fornecido nas escolas para mantê-las no caminho pretendido? Retórica falaciosa, reproduzida pelos comissários dos ideólogos pedagógicos e dos políticos alinhados.

Escalpelizando logicamente um exemplo recente, pode-se, por exemplo, apresentar como premissas de uma conclusão inicialmente apresentada a já velha distinção entre os estilos de aprendizagem. Poder-se-ia também ter ido buscar os tipos de inteligência e ainda várias outras teorizações psicológicas que os docentes bem conhecem há muito. Qualquer dessas abordagens é muito meritória e seria ótimo poder tê-las em constante consideração, mesmo tendo em conta a massificação já referida. Na verdade, tais premissas já ignoram um fator que é o da progressão entre os níveis de ensino, desde um ensino que deveria ser quase só lúdico, até à necessidade de uma aprendizagem muito mais formalizada que, por isso mesmo, se torna muito inapropriado adequar a qualquer estilo de aprendizagem. Mas, lá está, o mal aqui estará, do ponto de vista dos ideólogos, nas disciplinas, mesmo quando elas já são escolhidas e não são obrigatórias, de forma correspondente aos cursos superiores em que se pretende o futuro ingresso. Voltarei mais adiante a esta questão. Não chegando as limitações desta abordagem no contexto fornecido, nunca se apresentam tais premissas sem recurso a falácias grosseiras. No exemplo referido, qual era a conclusão a propósito da qual se apresentavam depois as justificações, ou seja, as premissas relativas aos estilos de aprendizagem? A conclusão era a relativização da avaliação das aprendizagens, procurando defender como aprendizagem de algo seja o que for que o aluno dissesse. Para isso, forneceu-se antes um exemplo edificante que ignorava por completo as diversas condições de aprendizagem e forçava um aluno que não tinha condições para fazer uma determinada aprendizagem a chegar a um resultado, exclusivamente, com os seus meios próprios, tudo envolvido num embrulho poético que convidava a desencadear emoções e não a pensar.[2] Mas tais exemplos narrativos servem para tudo e o seu contrário. Também há o filme da professora que se vê alvo de todo o tipo de processos por se atrever a considerar errado que 2+2=22. Ora, como se poderia considerar a discriminação dos estilos de aprendizagem justificação para a conclusão inicial, a de que se deveria considerar como aprendizagem qualquer resultado construído pelo aluno? Esta afirmação não se segue (non sequitur) daquelas premissas, para lá de se ignorar, deliberadamente, as condições que deveriam ser respeitadas ao adotar instrumentos adaptados aos diversos estilos de aprendizagem (ignoratio elenchi). De facto, quem for honesto intelectualmente e tiver condições para aplicar esses instrumentos, visa que o aluno atinja um determinado conhecimento pelas vias que forem mais adequadas para o aluno, em função do seu estilo de aprendizagem. Pode-se admitir, igualmente, a flexibilização da avaliação em função das várias vias seguidas pelo aluno ao construir o seu próprio conhecimento. Em lado algum, esta abordagem meritória implica que se aceite seja qual for o resultado que o aluno atinja, valorizando sempre positivamente a opinião do aluno. Mas é exatamente isso que todos os apaniguados da ideologia pedagógica governamental dizem, de forma mais ou menos clara, chegando a ter tal determinação nas grelhas destinadas a avaliar as aulas dos colegas, segundo os modelos de supervisão que não é por acaso que a maioria dos docentes rejeita.

            Há uns anos, lembro-me de um aluno que procurava defender que os norte-americanos nunca tinham ido à lua. Não sei se por ter visto isso em algum lado, se por originalidade própria (o que deveria ser muito valorizado segundo os nossos comissários), justificou a sua tese pelo facto de, nas imagens, os astronautas terem sombra. Segundo ele, se estivessem na lua, não a poderiam ter porque, sendo a lua uma estrela e irradiando luz, impediria a formação de sombras. Segundo os nossos brilhantes pedagogos, eu agi mal e fui um péssimo professor, visto lhe ter dito que o que ele estava a dizer estava errado, logo à partida pelo facto de a lua não ter luz própria e não ser uma estrela. Presumo que, em certas disciplinas, em que o que importa é o cultivo de um instrumento, por exemplo, uma língua estrangeira, pouco importe a falsidade ou verdade de outros conteúdos que podem ser abordados apenas como oportunidade de troca de ideias. Digo troca de ideias e não debate porque os docentes alinhados com estas ideologias relativistas se mostram extremamente avessos a qualquer forma de debate, tal qual os políticos e pedagogos se mostram hostis a qualquer forma de escrutínio. Na verdade, comportam-se nas escolas como uma seita que não admite contraditório. Consideram-se portadores da luz, consideram que estão a promover o progresso e distinguem apenas os docentes em termos da fidelidade aos seus ideais, tendo um declarado projeto de levar o conjunto dos docentes, a pouco e pouco, para o que consideram o bem. Deve-se dizer que, assim, se mostram bem mais honestos que os carreiristas que aplicaram, com o mesmo fervor com que seguem o Costa, as determinações do Crato, tendo já defendido tudo e o seu contrário, ficando sempre bem nas graças do poder instituído. Esta luta ideológica nada tem a ver com ciência, pois tudo está decidido antes de qualquer investigação científica, determinando, aliás, o teor da própria investigação. O que está em causa seria do âmbito da filosofia da educação e, mais amplamente, da filosofia política, isto é, se os agentes em causa permitissem algum tipo de filosofia. Mas não permitem. De facto, assumem uma atitude em tudo similar às religiões dogmáticas, mas sem sequer o seu sentido de transcendência, razão pela qual a atitude só revela uma ideologia política autoritária. O que está em causa é a finalidade da escola, para que serve a escola na sociedade, qual o serviço essencial da escola para a sociedade. Afinal, é logo aqui que se decide se a avaliação deve ser totalmente relativizada ou não, porque esta resposta depende daquilo que se pretende do sistema educativo.

            Antes de tratar essa questão, porém, gostaria de reafirmar uma tese que tenho já defendido em diversos textos e que está intimamente ligada com toda a circunstância relatada. Desde, pelo menos, os anos 90 que tenho ouvido os responsáveis, por exemplo, do Conselho Nacional de Educação a defenderem que a retenção dos alunos é, em todos os casos, contraproducente, levando à simples reiteração do insucesso. Embora ainda aí tivesse detetado diversas falácias, novamente devidas aos pressupostos que tratarei no fim, não tenho nenhuma razão para me opor à conclusão que decorreria dessas afirmações: o fim das retenções. Ora, os sucessivos governos socialistas, talvez com medo de serem acusados de facilitismo (como se fosse possível facilitismo maior do que aquele que têm promovido), têm optado não por tal medida que estaria na sua inteira responsabilidade, mas pela intimidação dos docentes, visando que cumpram o seu desígnio sem implementar o fim das retenções. Como consideraram que a intimidação das Direções e inspeções era ainda insuficiente, amplificaram enormemente um grupo dedicado a casos excecionais, pondo em causa as aulas disciplinares ordinárias por falta de professores, e fizeram desse grupo um grupo que vigiava a atribuição das avaliações de todos os alunos por todos os docentes, de forma a garantir, com recurso a ameaças diversas, que os docentes alterassem as suas classificações negativas. Como, ainda assim, não conseguiam cobrir todos os Conselhos de Turma (e até já se terem cansado de o tentarem) e nem todos os professores se deixavam intimidar, deu-se origem a uma sistemática arbitrariedade: alunos com desempenhos superiores a outros transitados por razão nenhuma que não a intimidação, podem ser retidos por estarem na turma errada com os professores errados – isto, considerando como errados os professores que insistem em fazer uma avaliação mais honesta (completamente honesta é coisa que já não existe) e não aceitam a ignomínia de outros exigirem que alterassem a sua avaliação, não por considerações suas, mas dos outros, sem que os outros, tal como o governo, assumam a responsabilidade pela adulteração dos dados. Os professores pedem respeito nas ruas, como se o respeito fosse medido pelo salário, e aceitam a desautorização e a imposição aviltante da fraude avaliativa, o que constitui uma absoluta falta de respeito aos docentes, de forma passiva. Mais ainda: os sindicatos tradicionais que falam em respeito colaboram empenhadamente nesta mistificação. E nada disto seria necessário se simplesmente tivessem acabado com as retenções. Os professores poderiam fazer uma avaliação honesta, os dados dessa avaliação seriam fiáveis, os alunos teriam uma informação fiável para os guiar nas escolhas que fariam de disciplinas e de exames de ingresso no superior. Não haveria ainda falta de professores, pois não teria sido necessária a ampliação desmesurada do grupo de ensino especial, mesmo se essa falta acabasse mais tarde por ocorrer. Mas como os docentes não seriam forçados a práticas aviltantes, a própria profissão seria mais atrativa e, sobretudo, atrativa não para demagogos relativistas, mas para profissionais ciosos do seu saber e da aprendizagem dos alunos.

            As falácias atrás identificadas no exemplo atual nada têm de especial. A falta de educação lógica ou a desonestidade intelectual parecem estar sempre presentes no discurso pedagógico. Ao longo de décadas, as falácias foram tão constantes que muitos se habituaram a elas até o ponto de as julgarem bons argumentos. Não vou repetir a denúncia do caráter falacioso do mantra dos responsáveis socialistas dos 80% das profissões que, desde os anos 90, iriam desaparecer nos próximos 10 anos, usado para relativizar os cursos orientados para a formação académica que, exatamente, não pretendem formar ninguém profissionalmente (sendo bem mais provável que a especificidade dos Cursos Profissionais os torne obsoletos, como já ocorreu em muitos casos passados, a curto prazo); nem a linguagem das competências transversais que foi, por sua vez, desenvolvida para atacar as disciplinas tradicionais, quando são exatamente essas disciplinas (Matemática, Português, Filosofia, Inglês, etc.) que permitem aprendizagens que serão sempre úteis em qualquer profissão; nem as sistemáticas estatísticas relativas ao ensino tradicional, descredibilizadoras do mesmo, sem nenhuns números, nem sequer martelados, sobre as experiências educativas que defendem, apenas as envolvendo em declarações holísticas, sem se admitir o mais ínfimo dos escrutínios reservados apenas para o ensino tradicional; nem a pretensão de aplicar a massas de alunos modelos de diferenciação desenvolvidos para pequenos grupos, etc. Tudo isto é do domínio do mesquinho que será esquecido sem deixar rasto. Mesmo estes argumentos que se prolongam durante décadas só parecem persistentes para a curta vida humana, acabando por vir a ser descartados como inutilidades absurdas e nocivas, como ocorreu com os precursores destas correntes do início do séc. XX. São citados pelos realinhados, mas sem nunca explicar porque é que algo tão perfeito foi desprezado. A verdade é que, ontem como hoje, os revolucionários ideologicamente motivados estão tão convencidos da verdade absoluta do que defendem que se consideram justificados para aldrabar todos os dados e olhar de viés para as mais óbvias objeções, sem nunca seriamente as considerar. Por isso, aliás, criaram as mistificações recentes à custa da falta de professores para os grupos disciplinares. Por isso, também, desenvolvem todo um discurso que visa acabar de vez com o saber disciplinar. Por isso, tentam, também, tornar obsoletos os professores pela sua substituição, cada vez maior, por formadores, dinamizadores e meios digitais.

É adequado denominar pedagogos aos profissionais que estes partidários defendem. O pedagogo, na Antiguidade clássica grega, não era o professor, mas sim o escravo que levava as crianças e que procurava que elas se comportassem devidamente. Esse é o papel que se mantém reservado, segundo estas gentes, para o professor, acompanhar e vigiar as crianças, ocupar-lhes o tempo na melhor das hipóteses. O professor era o didáskalos que procurava transmitir da melhor forma o que era considerado saber na sua época. Ora, das mais diversas formas, os responsáveis governamentais e os pedagogos fazem de tudo para relativizar o saber, de forma a considerar qualquer opinião saber, ficando, depois, muito surpreendidos com os Qanon deste tempo que ameaçam diretamente os seus efetivos criadores, visto terem transformado todo o disparate em opinião legítima que não se podia qualificar de errada e ignorante. Sempre houve maluquinhos, a diferença da nossa época é a de terem sido legitimados pelas instituições supostamente educativas. Ora, se já é discutível que se possa aceitar tudo no presente para não frustrar as crianças, para não macular a felicidade imediata que estes pedagogos consideram que é a única coisa por que devem zelar numa escola, para lisonjear as famílias todas satisfeitas com o êxito do seu rebento, quando se tenta pensar na finalidade de uma instituição assim para a sociedade, sobretudo para o seu futuro, a gravidade do que se está a fazer é verdadeiramente avassaladora. Tal processo é solidário do processo de mecanização mental que eu trato noutro artigo ainda deixado incompleto, que prepara o futuro triunfo da inteligência artificial (não aquela que por aí se propagandeia e que é apenas o desenvolvimento da anterior estupidez artificial). O objetivo que resulta dos atos destes pedagogos e não das suas palavras enganosas é muito simplesmente alienar o ser humano mediano do seu saber, do seu fazer e da sua vontade. Pretende-se ensinar empatia e pensamento positivo para criar um ser conformado e disposto a aceitar tudo, ou seja, sem vontade. Fala-se de pensamento crítico, mas o que defendem está nos antípodas da filosofia e é completamente contrário ao debate. O saber é sistematicamente considerado dispensável e defendem-se apenas as competências transversais, uma espécie de florescimento indeterminado de capacidades holísticas, o aprender a aprender nem se sabe bem o quê, pois se deve estar aberto às possibilidades futuras. Finalmente, entregar-se-á todo o fazer às máquinas e à inteligência artificial, realizando plenamente o sonho do preguiçoso e cancelando definitivamente o humano, o humano que sempre foi o homo faber, o animal cuja essência se realizava por aquilo mesmo que fazia. E para toda esta aniquilação do homem enquanto homem não faltam demagogos a conduzirem a massa para o abismo. Teme-se o colapso ambiental, mas eu pergunto-me, sobreviver, para quê? Para uma distopia técnica em que o homem já não terá lugar a não ser como um ser amorfo ou, o que até é preferível, um escravo?

            Os demagogos, sejam eles pedagogos ou não, apresentam essa distopia como a utopia que realizará plenamente a história humana, visto permitir aos homens realizarem plenamente a sua criatividade. Ora, em todos os homens se pode desenvolver a capacidade de fazer, ou seja, de trabalhar, mas é sempre uma ínfima minoria que se mostra criativa. O que se vê na vasta população que, nos países privilegiados, já nada é obrigada a fazer, é o cultivo de uma indolência brutal de que os meios digitais bem mostram a natureza, sobretudo, mas não só, nas redes sociais. Os defensores dos amanhãs que cantam sempre foram precursores não de sonhos, mas de horríveis pesadelos. Todos os maiores crimes já cometidos pela humanidade e contra a humanidade foram cometidos devido a uma promessa de um futuro, aquém ou além, radiante. Mesmo o atual colapso ambiental, resulta do sonho simultaneamente democrático e industrial, da satisfação sem limites dos desejos de todos. O utilitarismo surgiu como a filosofia adequada a esse sonho, o da maximização do prazer e da eliminação da dor, e hoje todo o discurso político, consciente ou inconscientemente, é dominado por esse ideal. O que torna impossível escapar ao colapso ambiental é que todos tentam tornar o futuro sustentável sem prescindir dos seus níveis de consumo ou até, no caso dos países ditos em vias de desenvolvimento, aumentando tais níveis. Com toda a tendência a aldrabar todos os dados e a falsear todas as estatísticas, arranja-se sempre maneira de fazer um discurso de aparência onde se diga estar a fazer exatamente o contrário daquilo que se faz. Portugal ou a própria Europa diz-se defensora do meio ambiente, recorrendo à sujidade dos outros. Os jovens consomem sem controlo e vão para manifestações culpar os mais velhos do estado do planeta. Na verdade, são ainda mais estimulados a consumir pelos adultos e seus programas de intercâmbios, de digitalização e de ludicidade. Os defensores da paz são, quase invariavelmente, promotores da guerra. Os meios de comunicação que se declaram fidedignos são máquinas de propaganda que constantemente transmitem juízos de valor como notícias. As escolas tornam-se, cada vez mais, instituições certificadoras de saberes inexistentes, de atitudes conformistas em vez do espírito crítico e da autonomia que dizem promover, de habituação à indolência que tornam os nossos jovens cada vez mais incapazes de resistirem às exigências de um mercado de trabalho. Um país clientelar do Estado, seja sob governos de esquerda, seja sob governos de direita (apenas de modos diferentes), enche a boca constantemente com o empreendedorismo – de facto, cheguei a ver políticos que fizeram toda a sua carreira no Estado a defender que era melhor a precariedade da construção do currículo na iniciativa privada. Aquilo que se declara é constantemente negado pelas ações e a denúncia das ações é constantemente negada por linguagem eufemística e/ou mistificadora. A mentira só não tem plenos direitos de cidadania porque não agrada aos poderes toda a mentira, mas apenas aquela que camufla aquilo que estão a fazer. De resto, não se pode dizer nada de forma clara, tudo é tratado de viés, as realidades não são chamadas pelos nomes, o que ocorre é sempre camuflado por um qualquer volteio retórico considerado aceitável. A honestidade intelectual é tratada como um crime e a malícia é considerada manifestação de inteligência emotiva.

            É verdade que existem tendências por toda a Europa que infletiram o rumo no âmbito da educação. Não creio que se enraízem longamente devido à tendência democrática para a lisonja e o facilitismo, para nem falar da alienação artificial. Porém, a questão que será sempre a central enquanto ainda existirem seres humanos é se o saber ou o conhecimento são ou não negligenciáveis na escola. Na verdade, se forem negligenciáveis, não se percebe para quê os rios de dinheiro que se gastam no sistema educativo. Pior ainda, criar-se-á sempre tensão enquanto se mantiver o recrutamento docente ancorado nos saberes académicos, os tais ligados às disciplinas que os demagogos dizem que são irrelevantes e onde se sediam os diversos saberes. Enquanto esta for a sua origem, haverá sempre docentes reacionários que resistirão na medida das suas possibilidades ao aviltamento a que é sujeito o saber que os formou. É verdade que já há modelos de certificação que premeiam financeiramente quem não se predispuser a aprender mais nada, ao passo que nada é dado a quem ainda busca aprender algo. Mas, talvez com medo das repercussões políticas, insistem em manter um recrutamento académico que cada vez mais desprezam, ao menos, para os outros, os jovens que não têm acesso a escolas de excelência. Mas, se o objetivo for apenas uma qualquer forma de animação de algum tipo para ocupar os meninos e fazê-los produzir algo sem qualquer exigência objetiva, para quê pagar a tantos docentes formados nos mais diversos saberes? De facto, para quê professores se 2+2 pode ser 3, 5 ou 22? Para quê materiais didáticos se tudo pode ser tudo, se a lua pode ser uma estrela, queijo ou um portal interdimensional? E mesmo a própria fantasia, não bastará sonhá-la, visto que tão-pouco farão sentido regras de gramática e escrever histórias fantásticas dá trabalho demais, acabando por ser pouco inclusivo? Aliás, como poderão os outros entender a história, se cada qual desenvolver as suas próprias regras? Os sofistas de hoje são os mesmos de sempre, visam o sucesso fácil e pouco se importam com o bem comum, apenas em fazer vingar como bem comum o seu relativismo e a sua arbitrariedade. Dispensar como objetivo último da escola o saber é retirar-lhe a razão da sua existência. Poderá continuar a chamar-se escola, mas não se distinguirá da creche e do lar. E se se dispensasse assim o saber por toda a parte, seria a sociedade que acabaria por colapsar. Mas não se dispensa em toda a parte. Em breve, a escola pública e uma parte das escolas privadas serão apenas para as grandes massas. Aqueles que não tiverem grandes ambições para os filhos, não os querendo, apenas, sujeitos a ambientes de exclusão social, procurarão algumas situações intermédias. Mas, além disso, manter-se-á um ensino privado de excelência que assegurará a quase totalidade dos futuros quadros que dominarão a sociedade. Isto nem sequer é futurismo, é o que já está a acontecer, promovido pela escola da inclusividade presente e da exclusão futura.

            O mundo nunca foi o simples sítio onde se encontram as coisas. O cosmos grego era uma ordem instaurada pelos deuses em oposição ao caos. No mundo judaico-cristão, sempre viram teólogos e filósofos o sinal de um desígnio devido à ordem que se manifestava no todo e na parte (por exemplo, na orgânica dos seres vivos). Vivendo, hoje, sob o signo da morte de Deus, tornou-se evidente que a ordem cósmica sempre foi uma arquitetura da própria mente humana. Essa arquitetura é a do pensamento, mas ganha expressão, eficácia e partilha na linguagem. Aliás, não há pensamento sem linguagem. O pensamento estrutura-se pela lógica, várias lógicas, conforme as limitações do seu estudo. Essa lógica fundamenta a matemática, tornando possível o estudo do real; desdobra-se em aplicações, como a gramática, todas as gramáticas, qualquer gramática; e como a metodologia, a lógica aplicada que torna possíveis as diversas disciplinas. Com as ferramentas matemáticas, linguísticas e metodológicas, toda a arquitetura do mundo se orienta por essa filha da lógica, tantas vezes considerada por tantos bastarda, a causalidade, que não admite, logo a nível formal, que algo possa surgir do nada, mesmo que só tortuosamente ou nunca, sempre sem dispensar apoio empírico, se possa descobrir de que, concretamente, proveio isto ou aquilo. Nada se pode considerar explicado se não se conseguir determinar uma razão, um motivo, uma causa. E mesmo que não se encontre alguma causa, nunca se concluirá a sua não existência, mas apenas a própria ignorância, seja fenoménica, seja numénica, seja mesmo existencialmente, por muito que se tenha iludido uma geração com a afirmação contrária. Pela causalidade, por todas as ordens causais, se entretece o mundo. Sem causalidade, não se tem qualquer mundo, mas o caos. E o conhecimento a cada momento possível das múltiplas causalidades identificáveis, conhecimento transitório e sempre limitado pelas condições cognitivas da subjetividade, é a linha através da qual se tece, paulatinamente, o mundo. Quem o tece poderá ter uma espontaneidade que não se deixa explicar desta forma, a não ser de forma imprópria, inadequada. Há um mistério na raiz deste mesmo entretecer que só se pretende apreender por formas ilusórias e manipuladoras. Mas esse mistério não poderá sequer mostrar-se a florescer se não lhe for permitido sequer entretecer o mundo.

As disciplinas são, de facto, arrumações de conveniência. Permitem, porém, fazer chegar às consciências as linhas que lhes permitem tecer mundos. A conveniência tão pouco é arbitrária. Ninguém pode saber tudo de tudo. Ninguém pode saber tudo de tudo, sobretudo numa determinação cada vez mais específica de cada uma das sequências causais e de cada perspetiva de as conceber. Assim, a arrumação artificial das disciplinas, se pode ser um obstáculo à criação de um verdadeiro mundo, devido à rigidez e unilateralidade com que é encarado cada saber, devido à redução à operatividade técnica, devido ao dogmatismo que facilmente habita cada tradição, é uma forma bem adequada de fornecer linhas e tijolos e argamassa e terreno e capacidades para erguer a arquitetura da consciência que torna possível o mundo. O relativismo pedagógico apenas dissolve materiais e capacidades até tornar o sujeito incapaz da mais ínfima construção. Receitas associadas de conformismo, o condicionamento da empatia e da positividade, apenas garantem mais completamente essa dissolução numa entidade amorfa, apenas capaz de reagir de formas estereotipadas ao ambiente. Claro que a maioria dos seres humanos acaba sempre por ter este destino, a inclusão na massa indiferenciada das competências transversais. Mas não só, pelo ensino disciplinar, pôde ter consciência de poder existir algo mais, como esse ensino lhe dá a efetiva possibilidade de ser mais. Dessa possibilidade depende a própria capacidade das sociedades responderem aos mais diversos desafios, possibilidade propiciada por poucos seres humanos, mas de que beneficiam muitos, talvez todos. Ao se cancelar tal possibilidade para vastas classes sociais, cancela-se a possibilidade mais especificamente humana das possibilidades humanas, a possibilidade de criar mundo – não para todos, como já salientei, elites socioeconómicas e mesmo políticas garantem todas as possibilidades aos seus rebentos – mas para aqueles que já à partida tinham condições mais difíceis, assim tornadas quase intransponíveis.

            A construção pelo próprio aluno da sua própria aprendizagem não é um objetivo futurista a atingir, mas uma inevitabilidade de qualquer aprendizagem. Não há aprendizagem que não seja autodidata, por muito que muitos professores promovam as mais diversas e criativas oportunidades de aprendizagem. É isso, aliás, que os melhores professores fazem, seja através de aulas de questionação provocatória, mesmo que tradicionais, seja através de debate que busque a sustentação argumentativa das teses, seja através da organização de trabalhos de projeto, seja através da dinamização de atividades em clubes, seja através da organização dos mais diversos eventos, etc. – os docentes procuram assim criar condições para o florescimento da pessoa a partir da gente indiferenciada, a gente dos preconceitos que toda a gente tem, das banalidades que toda a gente diz, dos comportamentos estereotipados que toda a gente segue, do ostensivo copianço que se parte do princípio que toda a gente faz. Porquê e para quê? Porque só a pessoa permite encontrar novas respostas e não o mero eco do ambiente social. Para que o mundo seja fecundado de novo sentido capaz de superar o caos que as gentes espalham pelo planeta. O mundo precisa de ser renovado e recriado porque a mensagem do passado se mostra incapaz de o manter mundo, visto ser perpetuada apenas sob as formas anquilosadas, unilaterais e acéfalas da gente que apenas se mostra capaz de seguir pouco importa ao certo o quê. Para essa gente, incapaz de criar, de dizer, de pensar, a não ser reproduzindo de forma deformada e estulta o já dito, é também fundamental o que as novas pessoas possam trazer, mesmo que, quase invariavelmente, sacrifiquem esses criadores sagrados à imolação pelos coletivos e à profanação posterior da sua apropriação desfigurada pelas gentes. Ora, travestida de construção pelo aluno do seu próprio saber, aquilo que os pedagogos e comissários promovem, é a reprodução do caos das gentes, cancelando qualquer possibilidade de escrutínio do que fazem, hiperbolizando os produtos de copy/paste, sacrificando a diferença individual ao serviço ao coletivo para garantir pseudoresultados a quem nada sabe ou quer saber, apresentando como espírito cooperativo o trabalho de uns para a indolência de outros e obrigando a uma constante adulação da ignorância, do desleixo e da completa ausência de verdadeira criatividade. Uma tal glorificação da mediocridade nos seus piores aspetos só pode contribuir para a deterioração e decadência social, para lá da já referida estratificação cultural que redunda, rapidamente, em estratificação económica e social, ainda mais extremada que aquela que apenas reproduz.

Pelo contrário, um ensino sólido que forneça modelos mais consistentes para as gentes imitarem, aquilo afinal que acabam sempre por fazer, não só torna os indivíduos capazes de um serviço profícuo à sociedade, como fornece uma plataforma de sentido suscetível de ser criticada e superada, no florescimento antagónico da pessoa. O sistema educativo deve procurar garantir a transmissão do saber consolidado para todos e estar sempre aberto para a possibilidade do florescimento raro e minoritário da individualidade, mesmo nos meios excluídos cultural, social e economicamente. E ele ocorre. Mesmo neste pórtico do sistema educativo entre um modelo de saber e um modelo de bem-estar imediato que já não cumpre qualquer função quer académica, quer técnica, quer social, ainda continua a haver alunos que manifestam a sua criatividade individual de formas verdadeiramente surpreendentes. São uma minoria, mesmo em turmas com elevados níveis de desempenho, e ainda são mais ínfima minoria no conjunto do sistema, mas é importante que não sejam esquecidos ou castrados, como tantas vezes acontece, quer pela reprodução tradicional do saber, quer pela defendida, atualmente, reprodução do caos das gentes. Poderá parecer um objetivo secundário visto só ser concretizado por alguns, mas, na verdade, não deveria ser perdido de vista pelo sistema, até porque um sistema que não seja castrador da individualidade é um sistema que está preparado para o florescimento da individualidade de qualquer um – e que recusa que tal possibilidade seja restringida aos meios cultural, social e economicamente privilegiados. Um sistema que nivela por baixo, que não avalia rigorosamente as aprendizagens, que força os professores a adotar práticas fraudulentas para não serem humilhados com anterior ou posterior ameaça e intimidação, que se satisfaz com a produção de qualquer porcaria e valoriza ou até sobrevaloriza declarações objetivamente erradas, que declara aos sete ventos que todos podem aprender tudo por não exigir a ninguém que saiba coisa alguma, que desvaloriza a herança dos conhecimentos consolidados, trocando-os por declarações holísticas que tudo e nada podem significar, que exige justificações sistemáticas e exaustivas do trabalho sério, enquanto toma decisões arbitrárias sem a menor justificação, ofendendo não só o sentimento de justiça, mas a própria lei, que não cria o menor problema a quem não ensina coisa nenhuma por apresentar um sucesso que não corresponde a nada, mas que persegue sem descanso quem cumpre o seu dever, que equipara tudo e, por isso, dissolve no oceano da nulidade cada contributo discente realmente individual, que certifica a ignorância e a equipara ao saber, que castra o desenvolvimento de um saber verdadeiramente sustentado, mostrando, incessantemente, a cada aluno que não vale a pena se esforçar, pois os seus esforços trarão o mesmo resultado que a ausência total dos mesmos, é um sistema que condenará a sociedade à regressão, incapaz de confiar numa ponte que seja feita por quem proviria de um tal sistema, incapaz de investir numa empresa promovida pelas vítimas da desresponsabilização e estímulo à apatia característicos do caos que passaria por sistema, incapaz de dar crédito aos técnicos que lhe comunicariam uma solução política, incapaz de aderir a algo a não ser por inércia e ausência de alternativa.

Esse sistema, na sua forma final, ainda não existe, fundamentalmente devido à resistência dos próprios docentes, muitas vezes até por maus motivos, por inércia, preconceitos e até preguiça, mas que têm sido a garantia que a distopia defendida acriticamente por pedagogos, comissários e carreiristas não se realiza plenamente. Por essa ou outra resistência, também os meios do Ensino Superior impediram que se acabassem com os exames nacionais, contra a vontade inequívoca do Costa idolatrado pelos pedagogos. Naturalmente, essa extinção seria a condição necessária para que não se efetuasse o menor escrutínio, para lá de tornar prática corrente os sistemas de favorecimento no acesso ao Ensino Superior (mais generalizados do que os que já existem). Assim, a falsificação sistemática de todos os resultados poderia ocorrer sem que ninguém desse por isso e sem que os políticos tivessem que assumir o ónus de acabar com as reprovações, a única coisa que já há muito tempo seria decente e justo fazer, dada a intencionalidade manifesta e constante das chamadas políticas educativas. Dizem os nossos comissários que, a pouco e pouco, se vão eliminando os resistentes e se vai conseguindo que cada vez mais gente esteja quase lá, presumo que na luz. Quando isso acontecer, não só aqui, mas por toda a parte, a única coisa que será garantida será, a médio prazo, o aceleramento da decadência das sociedades ocidentais, cada vez mais obsoletas e incapazes de competir com outros blocos, pois não chegará a educação das elites para fazer face à concorrência. A razão porque tantos docentes ainda resistem e protegem o seu saber das investidas é um sentido de justiça elementar e a consciência que a realização dos objetivos educativos é diacrónica e não sincrónica, não está reduzida à satisfação imediata, mas pretende criar condições para a realização de vidas. E esses docentes que zelam pelo saber como se fora um tesouro têm imensamente mais razão que os aduladores de massas, que os pedagogos dos amanhãs que cantam e que os comissários que venderam o saber pela efetivação, desfalcando os grupos disciplinares de profissionais. Nem refiro os carreiristas porque esses seguirão sempre quem detiver o poder, seja ele qual for. E assim esses docentes vão garantindo que haja uma nesga de possibilidade para a inclusividade atual não resultar sempre na exclusão futura, garantida a uma maioria cada vez maior. Estes pedagogos e comissários ainda não mataram, por completo, a possibilidade de pessoa nos meios menos favorecidos. Ainda não conseguiram persuadir todos que as suas indiscutíveis boas práticas sejam, de facto, boas, até por parecer suspeito a sua recusa de qualquer debate e aposta exclusiva na doutrinação. Ainda não conseguiram condicionar todos para não verem os resultados nefastos que cada uma das suas medidas provoca imediatamente. É preciso uma verdadeira disciplina marcial de desonestidade para conseguir interpretar sempre os resultados mais negativos como sucessos das boas práticas. Ainda não conseguiram generalizar nenhuma das novilínguas sucessivas para tentar alcançar o objetivo de uma escola inteiramente conformada com os seus modelos, de uma escola que não consegue pensar qualquer crítica àquilo que defendem, de uma escola que já não encontra palavras que se considerem adequadas para dizer, tão simplesmente, “o rei vai nu”.[3] Ainda não. E nada há com que mais sonhem do que cancelar a petulância inocente da criança dessa história…



[1] E para que é que se estaria a desgastar um aluno com horas adicionais, se é suposto toda a gente ser aprovada no final, em qualquer caso?

[2] Não sei se a intenção dos autores do filme era a mesma dos nossos comissários políticos. Tratava-se de uma criança cega de nascença que era forçada a dizer o que eram as cores, sem qualquer apoio alheio.

[3] Tendo ficado recentemente surpreendido com o desconhecimento da história por parte dos alunos, devo mencionar que esta é uma referência a um conto de Hans Christian Andersen.

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