A inclusividade pedagógica
A generalidade dos professores já pouco ou nada reage às
investidas doutrinárias das modernas inclusividades, transição digital,
flexibilidades, etc. Se instados, em privado, a dar a opinião, é, porém, muito
generalizada a rejeição quer através de trejeitos, quer com declarações
relativas à sua absurdidade. Porém, existe um número amplo de comissários
políticos e de professores carreiristas que estão dispostos a seguir qualquer
orientação do poder momentâneo, mesmo que em completa contradição com a que
seguiam também fervorosamente ainda há poucos anos, para tornar quase
axiomáticas as maiores falácias ou simples falsidades através da estratégia mais
usada pelos próprios políticos da repetição ad
nauseam. Este período é bastante diverso de anteriores, por exemplo, o do
consulado de Guterres, porque, para realizar os desígnios ideológicos que
passam por ciências de educação, se criou uma guarda pretoriana própria. Esses
comissários de política educativa foram colocados em número muito superior a
qualquer grupo disciplinar, ano após ano dos anos deste consulado, aproveitando
o grupo já existente do ensino especial – mas deixaram de ficar circunscritos
ao tratamento dos casos desses alunos (muitas vezes até mais negligenciados que
anteriormente), até por o seu número exceder em muito as necessidades do ensino
especial. Muito embora possam proferir objetivos mais construtivos, na verdade,
como iremos ver, nada mais têm a dizer quando se dá a positiva a todos os
alunos. Por muito que digam o contrário, nunca os vi (nem eles, nem ninguém) ir
verificar se uma determinada classificação positiva corresponde a algum tipo de
aprendizagem, mesmo que ínfima. A partir do momento em que se atribui a
positiva, deixam de existir considerações de tipo algum. Torna-se, por isso,
claro que o objetivo central desses comissários é o de produzir a adulteração
dos resultados educativos de forma a garantir estatísticas de pleno sucesso. Em
termos públicos, não existe a consciência desta realidade. Ainda recentemente,
ouvi um dos comentadores televisivos referir como um dos problemas do ensino a
falta de professores do ensino especial. Não, apesar de poder haver falta de
funcionários ou especialistas dedicados às NEE, esse é o único grupo que não
tem falta de professores em lado algum, embora, como qualquer massa, busque
sempre ter um ainda maior número. Ora, esse processo de ampliação do número de
comissários começou exatamente na altura em que se anunciava para breve o
início da falta de professores nas escolas.
O
público em geral não tem consciência de que esse grupo é atualmente constituído
por docentes dos mais diversos grupos disciplinares, na maioria dos casos, sem
qualquer formação académica relacionada com as NEE, quanto muito uma das bem
pouco sustentadas formações de professores, que estavam em situações mais ou
menos precárias e viram no ingresso nesse grupo a possibilidade de
estabilização da sua vida numa efetivação segura. Do ponto de vista
governamental, tal decisão mostra uma opção inequívoca que tem sido muito pouco
sublinhada, para não dizer ocultada. O governo sabia que, ao desviar tão grande
número de docentes para esta função, estava a criar condições para uma
aceleração vertiginosa da falta de docentes disciplinares. Porém, não tenho a
mínima dúvida que o fez intencionalmente, visto ouvir, há décadas, da parte de
professores alinhados e políticos, uma desvalorização sistemática do saber
disciplinar e a defesa de que qualquer um pode “ensinar” seja o que for, sem
necessitar de qualquer conhecimento especializado. Fê-lo porque lhe importava
mais garantir que os professores martelassem resultados do que quaisquer
aprendizagens reais. Na verdade, isso mostra que, ao governo, importa mais a
aparência presente que os resultados futuros na sociedade – e, para ocultar tal
facto, envolve todo o sistema numa nebulosa de considerações difusas destinadas
a relativizar a avaliação e recusa todo o escrutínio rigoroso dos resultados
das suas intervenções. Declara-se que os resultados são mais ou menos os mesmos
com toda a desfaçatez, quando se veem as escolas que anteriormente se
destacavam pela positiva a afundarem-se nos exames na direta proporcionalidade
da implementação das inclusividades – ao contrário, exatamente, das escolas que
resistem a ou moderam essa implementação. Por isso, procuram desesperadamente
acabar com os exames, pela maior dificuldade de aí levar a cabo uma fraude equalizadora.
Pior ainda, como existe falta de professores, muito
agravada por esta migração para o comissariado, o número de alunos por turma
tem que ser cada vez maior, não se importando a tutela de impor o ingresso em
turmas já cheias, até perfazerem 32 alunos, quantas vezes com alunos
estrangeiros “despejados” na escola que nem inglês sabem e que os docentes, à
falta de melhor solução, apenas acrescentam ao número das fraudes educativas
que já têm de cometer. Como os horários estão mais que preenchidos, existe um
cada vez menor recurso ao instrumento tradicional do apoio pedagógico acrescido
e são as próprias Direções que o desincentivam, apelando a meios mágicos
alternativos.[1]
E os comissários têm de continuar a transmitir a doutrina da diferenciação que
requereria um ensino individualizado quando os docentes não privilegiados pelos
arranjos feitos nas escolas têm que lidar com verdadeiras massas industriais,
com os quais só é possível o ensino massificado universal ou a pura e simples
desistência dos docentes, dando positivas a todos sem critério e sem
aprendizagem, de forma a não serem incomodados. Não creio que os comissários
sejam de tal modo alienados da realidade que possam crer que tais pedagogias
diferenciadas possam ser implementadas sem esforço algum pelos docentes, como
já os vi defender sem que ninguém levantasse a voz para lhes dizer que estavam
a delirar. O seu objetivo é apenas o mesmo que orienta os ideólogos há muitas
décadas, criar má consciência nos docentes, fazê-los crer que a culpa do
insucesso é sempre sua e, assim, para se redimirem da culpa, forçá-los a
apresentar resultados falsificados que, hipocritamente, se declara nunca terem
sido pedidos. Se o governo tivesse a mínima intenção de aferir os resultados
desta política, bastava-lhe ver se a percentagem de alunos do ensino público
aumentou ou diminuiu no ingresso nos cursos mais procurados, as medicinas,
certas engenharias, etc. Mas os dirigentes do partido que promove esta exclusão
camuflada de inclusividade sabem bem o que estão a fazer e têm quase todos os
filhos e netos nas escolas privadas de excelência. Perante este cenário, o que
é fornecido nas escolas para mantê-las no caminho pretendido? Retórica
falaciosa, reproduzida pelos comissários dos ideólogos pedagógicos e dos
políticos alinhados.
Escalpelizando
logicamente um exemplo recente, pode-se, por exemplo, apresentar como premissas
de uma conclusão inicialmente apresentada a já velha distinção entre os estilos
de aprendizagem. Poder-se-ia também ter ido buscar os tipos de inteligência e
ainda várias outras teorizações psicológicas que os docentes bem conhecem há
muito. Qualquer dessas abordagens é muito meritória e seria ótimo poder tê-las em
constante consideração, mesmo tendo em conta a massificação já referida. Na
verdade, tais premissas já ignoram um fator que é o da progressão entre os
níveis de ensino, desde um ensino que deveria ser quase só lúdico, até à
necessidade de uma aprendizagem muito mais formalizada que, por isso mesmo, se
torna muito inapropriado adequar a qualquer estilo de aprendizagem. Mas, lá
está, o mal aqui estará, do ponto de vista dos ideólogos, nas disciplinas,
mesmo quando elas já são escolhidas e não são obrigatórias, de forma
correspondente aos cursos superiores em que se pretende o futuro ingresso.
Voltarei mais adiante a esta questão. Não chegando as limitações desta
abordagem no contexto fornecido, nunca se apresentam tais premissas sem recurso
a falácias grosseiras. No exemplo referido, qual era a conclusão a propósito da
qual se apresentavam depois as justificações, ou seja, as premissas relativas
aos estilos de aprendizagem? A conclusão era a relativização da avaliação das
aprendizagens, procurando defender como aprendizagem de algo seja o que for que
o aluno dissesse. Para isso, forneceu-se antes um exemplo edificante que
ignorava por completo as diversas condições de aprendizagem e forçava um aluno
que não tinha condições para fazer uma determinada aprendizagem a chegar a um
resultado, exclusivamente, com os seus meios próprios, tudo envolvido num
embrulho poético que convidava a desencadear emoções e não a pensar.[2]
Mas tais exemplos narrativos servem para tudo e o seu contrário. Também há o
filme da professora que se vê alvo de todo o tipo de processos por se atrever a
considerar errado que 2+2=22. Ora, como se poderia considerar a discriminação
dos estilos de aprendizagem justificação para a conclusão inicial, a de que se
deveria considerar como aprendizagem qualquer resultado construído pelo aluno?
Esta afirmação não se segue (non sequitur)
daquelas premissas, para lá de se ignorar, deliberadamente, as condições que
deveriam ser respeitadas ao adotar instrumentos adaptados aos diversos estilos
de aprendizagem (ignoratio elenchi).
De facto, quem for honesto intelectualmente e tiver condições para aplicar
esses instrumentos, visa que o aluno atinja um determinado conhecimento pelas
vias que forem mais adequadas para o aluno, em função do seu estilo de
aprendizagem. Pode-se admitir, igualmente, a flexibilização da avaliação em
função das várias vias seguidas pelo aluno ao construir o seu próprio
conhecimento. Em lado algum, esta abordagem meritória implica que se aceite
seja qual for o resultado que o aluno atinja, valorizando sempre positivamente
a opinião do aluno. Mas é exatamente isso que todos os apaniguados da ideologia
pedagógica governamental dizem, de forma mais ou menos clara, chegando a ter
tal determinação nas grelhas destinadas a avaliar as aulas dos colegas, segundo
os modelos de supervisão que não é por acaso que a maioria dos docentes
rejeita.
Há uns anos, lembro-me de um aluno que procurava defender
que os norte-americanos nunca tinham ido à lua. Não sei se por ter visto isso em
algum lado, se por originalidade própria (o que deveria ser muito valorizado
segundo os nossos comissários), justificou a sua tese pelo facto de, nas
imagens, os astronautas terem sombra. Segundo ele, se estivessem na lua, não a
poderiam ter porque, sendo a lua uma estrela e irradiando luz, impediria a
formação de sombras. Segundo os nossos brilhantes pedagogos, eu agi mal e fui
um péssimo professor, visto lhe ter dito que o que ele estava a dizer estava
errado, logo à partida pelo facto de a lua não ter luz própria e não ser uma
estrela. Presumo que, em certas disciplinas, em que o que importa é o cultivo
de um instrumento, por exemplo, uma língua estrangeira, pouco importe a
falsidade ou verdade de outros conteúdos que podem ser abordados apenas como
oportunidade de troca de ideias. Digo troca de ideias e não debate porque os
docentes alinhados com estas ideologias relativistas se mostram extremamente
avessos a qualquer forma de debate, tal qual os políticos e pedagogos se
mostram hostis a qualquer forma de escrutínio. Na verdade, comportam-se nas
escolas como uma seita que não admite contraditório. Consideram-se portadores
da luz, consideram que estão a promover o progresso e distinguem apenas os
docentes em termos da fidelidade aos seus ideais, tendo um declarado projeto de
levar o conjunto dos docentes, a pouco e pouco, para o que consideram o bem.
Deve-se dizer que, assim, se mostram bem mais honestos que os carreiristas que
aplicaram, com o mesmo fervor com que seguem o Costa, as determinações do
Crato, tendo já defendido tudo e o seu contrário, ficando sempre bem nas graças
do poder instituído. Esta luta ideológica nada tem a ver com ciência, pois tudo
está decidido antes de qualquer investigação científica, determinando, aliás, o
teor da própria investigação. O que está em causa seria do âmbito da filosofia
da educação e, mais amplamente, da filosofia política, isto é, se os agentes em
causa permitissem algum tipo de filosofia. Mas não permitem. De facto, assumem
uma atitude em tudo similar às religiões dogmáticas, mas sem sequer o seu
sentido de transcendência, razão pela qual a atitude só revela uma ideologia
política autoritária. O que está em causa é a finalidade da escola, para que
serve a escola na sociedade, qual o serviço essencial da escola para a
sociedade. Afinal, é logo aqui que se decide se a avaliação deve ser totalmente
relativizada ou não, porque esta resposta depende daquilo que se pretende do
sistema educativo.
Antes de tratar essa questão, porém, gostaria de
reafirmar uma tese que tenho já defendido em diversos textos e que está
intimamente ligada com toda a circunstância relatada. Desde, pelo menos, os
anos 90 que tenho ouvido os responsáveis, por exemplo, do Conselho Nacional de
Educação a defenderem que a retenção dos alunos é, em todos os casos,
contraproducente, levando à simples reiteração do insucesso. Embora ainda aí
tivesse detetado diversas falácias, novamente devidas aos pressupostos que
tratarei no fim, não tenho nenhuma razão para me opor à conclusão que
decorreria dessas afirmações: o fim das
retenções. Ora, os sucessivos governos socialistas, talvez com medo de
serem acusados de facilitismo (como se fosse possível facilitismo maior do que
aquele que têm promovido), têm optado não por tal medida que estaria na sua
inteira responsabilidade, mas pela intimidação dos docentes, visando que
cumpram o seu desígnio sem implementar o fim das retenções. Como consideraram
que a intimidação das Direções e inspeções era ainda insuficiente, amplificaram
enormemente um grupo dedicado a casos excecionais, pondo em causa as aulas
disciplinares ordinárias por falta de professores, e fizeram desse grupo um grupo
que vigiava a atribuição das avaliações de todos os alunos por todos os
docentes, de forma a garantir, com recurso a ameaças diversas, que os docentes
alterassem as suas classificações negativas. Como, ainda assim, não conseguiam
cobrir todos os Conselhos de Turma (e até já se terem cansado de o tentarem) e
nem todos os professores se deixavam intimidar, deu-se origem a uma sistemática
arbitrariedade: alunos com desempenhos superiores a outros transitados por
razão nenhuma que não a intimidação, podem ser retidos por estarem na turma
errada com os professores errados – isto, considerando como errados os
professores que insistem em fazer uma avaliação mais honesta (completamente
honesta é coisa que já não existe) e não aceitam a ignomínia de outros exigirem
que alterassem a sua avaliação, não por considerações suas, mas dos outros, sem
que os outros, tal como o governo, assumam a responsabilidade pela adulteração
dos dados. Os professores pedem respeito nas ruas, como se o respeito fosse
medido pelo salário, e aceitam a desautorização e a imposição aviltante da
fraude avaliativa, o que constitui uma absoluta falta de respeito aos docentes,
de forma passiva. Mais ainda: os sindicatos tradicionais que falam em respeito
colaboram empenhadamente nesta mistificação. E nada disto seria necessário se
simplesmente tivessem acabado com as retenções. Os professores poderiam fazer
uma avaliação honesta, os dados dessa avaliação seriam fiáveis, os alunos
teriam uma informação fiável para os guiar nas escolhas que fariam de
disciplinas e de exames de ingresso no superior. Não haveria ainda falta de
professores, pois não teria sido necessária a ampliação desmesurada do grupo de
ensino especial, mesmo se essa falta acabasse mais tarde por ocorrer. Mas como
os docentes não seriam forçados a práticas aviltantes, a própria profissão
seria mais atrativa e, sobretudo, atrativa não para demagogos relativistas, mas
para profissionais ciosos do seu saber e da aprendizagem dos alunos.
As falácias atrás identificadas no exemplo atual nada têm
de especial. A falta de educação lógica ou a desonestidade intelectual parecem
estar sempre presentes no discurso pedagógico. Ao longo de décadas, as falácias
foram tão constantes que muitos se habituaram a elas até o ponto de as julgarem
bons argumentos. Não vou repetir a denúncia do caráter falacioso do mantra dos
responsáveis socialistas dos 80% das profissões que, desde os anos 90, iriam
desaparecer nos próximos 10 anos, usado para relativizar os cursos orientados
para a formação académica que, exatamente, não pretendem formar ninguém profissionalmente
(sendo bem mais provável que a especificidade dos Cursos Profissionais os torne
obsoletos, como já ocorreu em muitos casos passados, a curto prazo); nem a
linguagem das competências transversais que foi, por sua vez, desenvolvida para
atacar as disciplinas tradicionais, quando são exatamente essas disciplinas
(Matemática, Português, Filosofia, Inglês, etc.) que permitem aprendizagens que
serão sempre úteis em qualquer profissão; nem as sistemáticas estatísticas
relativas ao ensino tradicional, descredibilizadoras do mesmo, sem nenhuns
números, nem sequer martelados, sobre as experiências educativas que defendem, apenas
as envolvendo em declarações holísticas, sem se admitir o mais ínfimo dos
escrutínios reservados apenas para o ensino tradicional; nem a pretensão de
aplicar a massas de alunos modelos de diferenciação desenvolvidos para pequenos
grupos, etc. Tudo isto é do domínio do mesquinho que será esquecido sem deixar
rasto. Mesmo estes argumentos que se prolongam durante décadas só parecem
persistentes para a curta vida humana, acabando por vir a ser descartados como
inutilidades absurdas e nocivas, como ocorreu com os precursores destas
correntes do início do séc. XX. São citados pelos realinhados, mas sem nunca explicar
porque é que algo tão perfeito foi desprezado. A verdade é que, ontem como
hoje, os revolucionários ideologicamente motivados estão tão convencidos da
verdade absoluta do que defendem que se consideram justificados para aldrabar
todos os dados e olhar de viés para as mais óbvias objeções, sem nunca
seriamente as considerar. Por isso, aliás, criaram as mistificações recentes à
custa da falta de professores para os grupos disciplinares. Por isso, também,
desenvolvem todo um discurso que visa acabar de vez com o saber disciplinar.
Por isso, tentam, também, tornar obsoletos os professores pela sua
substituição, cada vez maior, por formadores, dinamizadores e meios digitais.
É
adequado denominar pedagogos aos profissionais que estes partidários defendem. O
pedagogo, na Antiguidade clássica grega, não era o professor, mas sim o escravo
que levava as crianças e que procurava que elas se comportassem devidamente.
Esse é o papel que se mantém reservado, segundo estas gentes, para o professor,
acompanhar e vigiar as crianças, ocupar-lhes o tempo na melhor das hipóteses. O
professor era o didáskalos que
procurava transmitir da melhor forma o que era considerado saber na sua época.
Ora, das mais diversas formas, os responsáveis governamentais e os pedagogos fazem
de tudo para relativizar o saber, de forma a considerar qualquer opinião saber,
ficando, depois, muito surpreendidos com os Qanon
deste tempo que ameaçam diretamente os seus efetivos criadores, visto terem
transformado todo o disparate em opinião legítima que não se podia qualificar
de errada e ignorante. Sempre houve maluquinhos, a diferença da nossa época é a
de terem sido legitimados pelas instituições supostamente educativas. Ora, se
já é discutível que se possa aceitar tudo no presente para não frustrar as
crianças, para não macular a felicidade imediata que estes pedagogos consideram
que é a única coisa por que devem zelar numa escola, para lisonjear as famílias
todas satisfeitas com o êxito do seu rebento, quando se tenta pensar na
finalidade de uma instituição assim para a sociedade, sobretudo para o seu
futuro, a gravidade do que se está a fazer é verdadeiramente avassaladora. Tal
processo é solidário do processo de mecanização mental que eu trato noutro
artigo ainda deixado incompleto, que prepara o futuro triunfo da inteligência
artificial (não aquela que por aí se propagandeia e que é apenas o
desenvolvimento da anterior estupidez artificial). O objetivo que resulta dos
atos destes pedagogos e não das suas palavras enganosas é muito simplesmente
alienar o ser humano mediano do seu saber, do seu fazer e da sua vontade.
Pretende-se ensinar empatia e pensamento positivo para criar um ser conformado
e disposto a aceitar tudo, ou seja, sem vontade. Fala-se de pensamento crítico,
mas o que defendem está nos antípodas da filosofia e é completamente contrário
ao debate. O saber é sistematicamente considerado dispensável e defendem-se
apenas as competências transversais, uma espécie de florescimento indeterminado
de capacidades holísticas, o aprender a aprender nem se sabe bem o quê, pois se
deve estar aberto às possibilidades futuras. Finalmente, entregar-se-á todo o
fazer às máquinas e à inteligência artificial, realizando plenamente o sonho do
preguiçoso e cancelando definitivamente o humano, o humano que sempre foi o homo faber, o animal cuja essência se
realizava por aquilo mesmo que fazia. E para toda esta aniquilação do homem enquanto
homem não faltam demagogos a conduzirem a massa para o abismo. Teme-se o
colapso ambiental, mas eu pergunto-me, sobreviver, para quê? Para uma distopia
técnica em que o homem já não terá lugar a não ser como um ser amorfo ou, o que
até é preferível, um escravo?
Os demagogos, sejam eles pedagogos ou não, apresentam
essa distopia como a utopia que realizará plenamente a história humana, visto
permitir aos homens realizarem plenamente a sua criatividade. Ora, em todos os
homens se pode desenvolver a capacidade de fazer, ou seja, de trabalhar, mas é
sempre uma ínfima minoria que se mostra criativa. O que se vê na vasta
população que, nos países privilegiados, já nada é obrigada a fazer, é o
cultivo de uma indolência brutal de que os meios digitais bem mostram a
natureza, sobretudo, mas não só, nas redes sociais. Os defensores dos amanhãs
que cantam sempre foram precursores não de sonhos, mas de horríveis pesadelos.
Todos os maiores crimes já cometidos pela humanidade e contra a humanidade
foram cometidos devido a uma promessa de um futuro, aquém ou além, radiante. Mesmo
o atual colapso ambiental, resulta do sonho simultaneamente democrático e
industrial, da satisfação sem limites dos desejos de todos. O utilitarismo
surgiu como a filosofia adequada a esse sonho, o da maximização do prazer e da
eliminação da dor, e hoje todo o discurso político, consciente ou
inconscientemente, é dominado por esse ideal. O que torna impossível escapar ao
colapso ambiental é que todos tentam tornar o futuro sustentável sem prescindir
dos seus níveis de consumo ou até, no caso dos países ditos em vias de
desenvolvimento, aumentando tais níveis. Com toda a tendência a aldrabar todos
os dados e a falsear todas as estatísticas, arranja-se sempre maneira de fazer
um discurso de aparência onde se diga estar a fazer exatamente o contrário
daquilo que se faz. Portugal ou a própria Europa diz-se defensora do meio
ambiente, recorrendo à sujidade dos outros. Os jovens consomem sem controlo e
vão para manifestações culpar os mais velhos do estado do planeta. Na verdade,
são ainda mais estimulados a consumir pelos adultos e seus programas de
intercâmbios, de digitalização e de ludicidade. Os defensores da paz são, quase
invariavelmente, promotores da guerra. Os meios de comunicação que se declaram
fidedignos são máquinas de propaganda que constantemente transmitem juízos de
valor como notícias. As escolas tornam-se, cada vez mais, instituições
certificadoras de saberes inexistentes, de atitudes conformistas em vez do
espírito crítico e da autonomia que dizem promover, de habituação à indolência
que tornam os nossos jovens cada vez mais incapazes de resistirem às exigências
de um mercado de trabalho. Um país clientelar do Estado, seja sob governos de
esquerda, seja sob governos de direita (apenas de modos diferentes), enche a
boca constantemente com o empreendedorismo – de facto, cheguei a ver políticos
que fizeram toda a sua carreira no Estado a defender que era melhor a
precariedade da construção do currículo na iniciativa privada. Aquilo que se
declara é constantemente negado pelas ações e a denúncia das ações é
constantemente negada por linguagem eufemística e/ou mistificadora. A mentira
só não tem plenos direitos de cidadania porque não agrada aos poderes toda a
mentira, mas apenas aquela que camufla aquilo que estão a fazer. De resto, não
se pode dizer nada de forma clara, tudo é tratado de viés, as realidades não
são chamadas pelos nomes, o que ocorre é sempre camuflado por um qualquer
volteio retórico considerado aceitável. A honestidade intelectual é tratada
como um crime e a malícia é considerada manifestação de inteligência emotiva.
É verdade que existem tendências por
toda a Europa que infletiram o rumo no âmbito da educação. Não creio que se
enraízem longamente devido à tendência democrática para a lisonja e o
facilitismo, para nem falar da alienação artificial. Porém, a questão que será
sempre a central enquanto ainda existirem seres humanos é se o saber ou o
conhecimento são ou não negligenciáveis na escola. Na verdade, se forem
negligenciáveis, não se percebe para quê os rios de dinheiro que se gastam no
sistema educativo. Pior ainda, criar-se-á sempre tensão enquanto se mantiver o
recrutamento docente ancorado nos saberes académicos, os tais ligados às
disciplinas que os demagogos dizem que são irrelevantes e onde se sediam os
diversos saberes. Enquanto esta for a sua origem, haverá sempre docentes
reacionários que resistirão na medida das suas possibilidades ao aviltamento a
que é sujeito o saber que os formou. É verdade que já há modelos de
certificação que premeiam financeiramente quem não se predispuser a aprender
mais nada, ao passo que nada é dado a quem ainda busca aprender algo. Mas,
talvez com medo das repercussões políticas, insistem em manter um recrutamento
académico que cada vez mais desprezam, ao menos, para os outros, os jovens que
não têm acesso a escolas de excelência. Mas, se o objetivo for apenas uma
qualquer forma de animação de algum tipo para ocupar os meninos e fazê-los
produzir algo sem qualquer exigência objetiva, para quê pagar a tantos docentes
formados nos mais diversos saberes? De facto, para quê professores se 2+2 pode
ser 3, 5 ou 22? Para quê materiais didáticos se tudo pode ser tudo, se a lua
pode ser uma estrela, queijo ou um portal interdimensional? E mesmo a própria
fantasia, não bastará sonhá-la, visto que tão-pouco farão sentido regras de
gramática e escrever histórias fantásticas dá trabalho demais, acabando por ser
pouco inclusivo? Aliás, como poderão os outros entender a história, se cada
qual desenvolver as suas próprias regras? Os sofistas de hoje são os mesmos de
sempre, visam o sucesso fácil e pouco se importam com o bem comum, apenas em
fazer vingar como bem comum o seu relativismo e a sua arbitrariedade. Dispensar
como objetivo último da escola o saber é retirar-lhe a razão da sua existência.
Poderá continuar a chamar-se escola, mas não se distinguirá da creche e do lar.
E se se dispensasse assim o saber por toda a parte, seria a sociedade que
acabaria por colapsar. Mas não se dispensa em toda a parte. Em breve, a escola
pública e uma parte das escolas privadas serão apenas para as grandes massas. Aqueles
que não tiverem grandes ambições para os filhos, não os querendo, apenas,
sujeitos a ambientes de exclusão social, procurarão algumas situações
intermédias. Mas, além disso, manter-se-á um ensino privado de excelência que
assegurará a quase totalidade dos futuros quadros que dominarão a sociedade.
Isto nem sequer é futurismo, é o que já está a acontecer, promovido pela escola
da inclusividade presente e da exclusão futura.
O mundo nunca foi o simples sítio
onde se encontram as coisas. O cosmos grego era uma ordem instaurada pelos
deuses em oposição ao caos. No mundo judaico-cristão, sempre viram teólogos e
filósofos o sinal de um desígnio devido à ordem que se manifestava no todo e na
parte (por exemplo, na orgânica dos seres vivos). Vivendo, hoje, sob o signo da
morte de Deus, tornou-se evidente que a ordem cósmica sempre foi uma arquitetura
da própria mente humana. Essa arquitetura é a do pensamento, mas ganha
expressão, eficácia e partilha na linguagem. Aliás, não há pensamento sem
linguagem. O pensamento estrutura-se pela lógica, várias lógicas, conforme as
limitações do seu estudo. Essa lógica fundamenta a matemática, tornando
possível o estudo do real; desdobra-se em aplicações, como a gramática, todas
as gramáticas, qualquer gramática; e como a metodologia, a lógica aplicada que
torna possíveis as diversas disciplinas. Com as ferramentas matemáticas,
linguísticas e metodológicas, toda a arquitetura do mundo se orienta por essa
filha da lógica, tantas vezes considerada por tantos bastarda, a causalidade,
que não admite, logo a nível formal, que algo possa surgir do nada, mesmo que
só tortuosamente ou nunca, sempre sem dispensar apoio empírico, se possa
descobrir de que, concretamente, proveio isto ou aquilo. Nada se pode
considerar explicado se não se conseguir determinar uma razão, um motivo, uma
causa. E mesmo que não se encontre alguma causa, nunca se concluirá a sua não
existência, mas apenas a própria ignorância, seja fenoménica, seja numénica,
seja mesmo existencialmente, por muito que se tenha iludido uma geração com a
afirmação contrária. Pela causalidade, por todas as ordens causais, se
entretece o mundo. Sem causalidade, não se tem qualquer mundo, mas o caos. E o
conhecimento a cada momento possível das múltiplas causalidades identificáveis,
conhecimento transitório e sempre limitado pelas condições cognitivas da
subjetividade, é a linha através da qual se tece, paulatinamente, o mundo. Quem
o tece poderá ter uma espontaneidade que não se deixa explicar desta forma, a
não ser de forma imprópria, inadequada. Há um mistério na raiz deste mesmo
entretecer que só se pretende apreender por formas ilusórias e manipuladoras.
Mas esse mistério não poderá sequer mostrar-se a florescer se não lhe for
permitido sequer entretecer o mundo.
As
disciplinas são, de facto, arrumações de conveniência. Permitem, porém, fazer
chegar às consciências as linhas que lhes permitem tecer mundos. A conveniência
tão pouco é arbitrária. Ninguém pode saber tudo de tudo. Ninguém pode saber
tudo de tudo, sobretudo numa determinação cada vez mais específica de cada uma
das sequências causais e de cada perspetiva de as conceber. Assim, a arrumação
artificial das disciplinas, se pode ser um obstáculo à criação de um verdadeiro
mundo, devido à rigidez e unilateralidade com que é encarado cada saber, devido
à redução à operatividade técnica, devido ao dogmatismo que facilmente habita
cada tradição, é uma forma bem adequada de fornecer linhas e tijolos e
argamassa e terreno e capacidades para erguer a arquitetura da consciência que
torna possível o mundo. O relativismo pedagógico apenas dissolve materiais e
capacidades até tornar o sujeito incapaz da mais ínfima construção. Receitas
associadas de conformismo, o condicionamento da empatia e da positividade,
apenas garantem mais completamente essa dissolução numa entidade amorfa, apenas
capaz de reagir de formas estereotipadas ao ambiente. Claro que a maioria dos
seres humanos acaba sempre por ter este destino, a inclusão na massa
indiferenciada das competências transversais. Mas não só, pelo ensino
disciplinar, pôde ter consciência de poder existir algo mais, como esse ensino
lhe dá a efetiva possibilidade de ser mais. Dessa possibilidade depende a
própria capacidade das sociedades responderem aos mais diversos desafios,
possibilidade propiciada por poucos seres humanos, mas de que beneficiam
muitos, talvez todos. Ao se cancelar tal possibilidade para vastas classes
sociais, cancela-se a possibilidade mais especificamente humana das
possibilidades humanas, a possibilidade de criar mundo – não para todos, como
já salientei, elites socioeconómicas e mesmo políticas garantem todas as
possibilidades aos seus rebentos – mas para aqueles que já à partida tinham
condições mais difíceis, assim tornadas quase intransponíveis.
A construção pelo próprio aluno da sua própria
aprendizagem não é um objetivo futurista a atingir, mas uma inevitabilidade de
qualquer aprendizagem. Não há aprendizagem que não seja autodidata, por muito que
muitos professores promovam as mais diversas e criativas oportunidades de
aprendizagem. É isso, aliás, que os melhores professores fazem, seja através de
aulas de questionação provocatória, mesmo que tradicionais, seja através de
debate que busque a sustentação argumentativa das teses, seja através da
organização de trabalhos de projeto, seja através da dinamização de atividades
em clubes, seja através da organização dos mais diversos eventos, etc. – os docentes
procuram assim criar condições para o florescimento da pessoa a partir da gente
indiferenciada, a gente dos preconceitos que toda a gente tem, das banalidades
que toda a gente diz, dos comportamentos estereotipados que toda a gente segue,
do ostensivo copianço que se parte do princípio que toda a gente faz. Porquê e
para quê? Porque só a pessoa permite encontrar novas respostas e não o mero eco
do ambiente social. Para que o mundo seja fecundado de novo sentido capaz de
superar o caos que as gentes espalham pelo planeta. O mundo precisa de ser
renovado e recriado porque a mensagem do passado se mostra incapaz de o manter
mundo, visto ser perpetuada apenas sob as formas anquilosadas, unilaterais e
acéfalas da gente que apenas se mostra capaz de seguir pouco importa ao certo o
quê. Para essa gente, incapaz de criar, de dizer, de pensar, a não ser
reproduzindo de forma deformada e estulta o já dito, é também fundamental o que
as novas pessoas possam trazer, mesmo que, quase invariavelmente, sacrifiquem
esses criadores sagrados à imolação pelos coletivos e à profanação posterior da
sua apropriação desfigurada pelas gentes. Ora, travestida de construção pelo
aluno do seu próprio saber, aquilo que os pedagogos e comissários promovem, é a
reprodução do caos das gentes, cancelando qualquer possibilidade de escrutínio
do que fazem, hiperbolizando os produtos de copy/paste,
sacrificando a diferença individual ao serviço ao coletivo para garantir
pseudoresultados a quem nada sabe ou quer saber, apresentando como espírito
cooperativo o trabalho de uns para a indolência de outros e obrigando a uma
constante adulação da ignorância, do desleixo e da completa ausência de
verdadeira criatividade. Uma tal glorificação da mediocridade nos seus piores
aspetos só pode contribuir para a deterioração e decadência social, para lá da
já referida estratificação cultural que redunda, rapidamente, em estratificação
económica e social, ainda mais extremada que aquela que apenas reproduz.
Pelo
contrário, um ensino sólido que forneça modelos mais consistentes para as
gentes imitarem, aquilo afinal que acabam sempre por fazer, não só torna os
indivíduos capazes de um serviço profícuo à sociedade, como fornece uma
plataforma de sentido suscetível de ser criticada e superada, no florescimento
antagónico da pessoa. O sistema educativo deve procurar garantir a transmissão
do saber consolidado para todos e estar sempre aberto para a possibilidade do
florescimento raro e minoritário da individualidade, mesmo nos meios excluídos
cultural, social e economicamente. E ele ocorre. Mesmo neste pórtico do sistema
educativo entre um modelo de saber e um modelo de bem-estar imediato que já não
cumpre qualquer função quer académica, quer técnica, quer social, ainda
continua a haver alunos que manifestam a sua criatividade individual de formas
verdadeiramente surpreendentes. São uma minoria, mesmo em turmas com elevados
níveis de desempenho, e ainda são mais ínfima minoria no conjunto do sistema,
mas é importante que não sejam esquecidos ou castrados, como tantas vezes
acontece, quer pela reprodução tradicional do saber, quer pela defendida,
atualmente, reprodução do caos das gentes. Poderá parecer um objetivo
secundário visto só ser concretizado por alguns, mas, na verdade, não deveria
ser perdido de vista pelo sistema, até porque um sistema que não seja castrador
da individualidade é um sistema que está preparado para o florescimento da
individualidade de qualquer um – e que recusa que tal possibilidade seja
restringida aos meios cultural, social e economicamente privilegiados. Um sistema
que nivela por baixo, que não avalia rigorosamente as aprendizagens, que força
os professores a adotar práticas fraudulentas para não serem humilhados com anterior
ou posterior ameaça e intimidação, que se satisfaz com a produção de qualquer
porcaria e valoriza ou até sobrevaloriza declarações objetivamente erradas, que
declara aos sete ventos que todos podem aprender tudo por não exigir a ninguém
que saiba coisa alguma, que desvaloriza a herança dos conhecimentos
consolidados, trocando-os por declarações holísticas que tudo e nada podem
significar, que exige justificações sistemáticas e exaustivas do trabalho
sério, enquanto toma decisões arbitrárias sem a menor justificação, ofendendo
não só o sentimento de justiça, mas a própria lei, que não cria o menor
problema a quem não ensina coisa nenhuma por apresentar um sucesso que não
corresponde a nada, mas que persegue sem descanso quem cumpre o seu dever, que
equipara tudo e, por isso, dissolve no oceano da nulidade cada contributo discente
realmente individual, que certifica a ignorância e a equipara ao saber, que
castra o desenvolvimento de um saber verdadeiramente sustentado, mostrando,
incessantemente, a cada aluno que não vale a pena se esforçar, pois os seus esforços
trarão o mesmo resultado que a ausência total dos mesmos, é um sistema que
condenará a sociedade à regressão, incapaz de confiar numa ponte que seja feita
por quem proviria de um tal sistema, incapaz de investir numa empresa promovida
pelas vítimas da desresponsabilização e estímulo à apatia característicos do
caos que passaria por sistema, incapaz de dar crédito aos técnicos que lhe
comunicariam uma solução política, incapaz de aderir a algo a não ser por
inércia e ausência de alternativa.
Esse
sistema, na sua forma final, ainda não existe, fundamentalmente devido à
resistência dos próprios docentes, muitas vezes até por maus motivos, por
inércia, preconceitos e até preguiça, mas que têm sido a garantia que a
distopia defendida acriticamente por pedagogos, comissários e carreiristas não
se realiza plenamente. Por essa ou outra resistência, também os meios do Ensino
Superior impediram que se acabassem com os exames nacionais, contra a vontade
inequívoca do Costa idolatrado pelos pedagogos. Naturalmente, essa extinção
seria a condição necessária para que não se efetuasse o menor escrutínio, para
lá de tornar prática corrente os sistemas de favorecimento no acesso ao Ensino
Superior (mais generalizados do que os que já existem). Assim, a falsificação
sistemática de todos os resultados poderia ocorrer sem que ninguém desse por
isso e sem que os políticos tivessem que assumir o ónus de acabar com as
reprovações, a única coisa que já há muito tempo seria decente e justo fazer,
dada a intencionalidade manifesta e constante das chamadas políticas educativas.
Dizem os nossos comissários que, a pouco e pouco, se vão eliminando os
resistentes e se vai conseguindo que cada vez mais gente esteja quase lá,
presumo que na luz. Quando isso acontecer, não só aqui, mas por toda a parte, a
única coisa que será garantida será, a médio prazo, o aceleramento da
decadência das sociedades ocidentais, cada vez mais obsoletas e incapazes de
competir com outros blocos, pois não chegará a educação das elites para fazer face
à concorrência. A razão porque tantos docentes ainda resistem e protegem o seu
saber das investidas é um sentido de justiça elementar e a consciência que a
realização dos objetivos educativos é diacrónica e não sincrónica, não está
reduzida à satisfação imediata, mas pretende criar condições para a realização
de vidas. E esses docentes que zelam pelo saber como se fora um tesouro têm
imensamente mais razão que os aduladores de massas, que os pedagogos dos
amanhãs que cantam e que os comissários que venderam o saber pela efetivação,
desfalcando os grupos disciplinares de profissionais. Nem refiro os carreiristas
porque esses seguirão sempre quem detiver o poder, seja ele qual for. E assim
esses docentes vão garantindo que haja uma nesga de possibilidade para a
inclusividade atual não resultar sempre na exclusão futura, garantida a uma
maioria cada vez maior. Estes pedagogos e comissários ainda não mataram, por
completo, a possibilidade de pessoa nos meios menos favorecidos. Ainda não
conseguiram persuadir todos que as suas indiscutíveis boas práticas sejam, de
facto, boas, até por parecer suspeito a sua recusa de qualquer debate e aposta
exclusiva na doutrinação. Ainda não conseguiram condicionar todos para não
verem os resultados nefastos que cada uma das suas medidas provoca
imediatamente. É preciso uma verdadeira disciplina marcial de desonestidade
para conseguir interpretar sempre os resultados mais negativos como sucessos
das boas práticas. Ainda não conseguiram generalizar nenhuma das novilínguas
sucessivas para tentar alcançar o objetivo de uma escola inteiramente
conformada com os seus modelos, de uma escola que não consegue pensar qualquer
crítica àquilo que defendem, de uma escola que já não encontra palavras que se
considerem adequadas para dizer, tão simplesmente, “o rei vai nu”.[3] Ainda
não. E nada há com que mais sonhem do que cancelar a petulância inocente da
criança dessa história…
[1]
E para que é que se estaria a desgastar um aluno com horas adicionais, se é
suposto toda a gente ser aprovada no final, em qualquer caso?
[2]
Não sei se a intenção dos autores do filme era a mesma dos nossos comissários
políticos. Tratava-se de uma criança cega de nascença que era forçada a dizer o
que eram as cores, sem qualquer apoio alheio.
[3]
Tendo ficado recentemente surpreendido com o desconhecimento da história por
parte dos alunos, devo mencionar que esta é uma referência a um conto de Hans
Christian Andersen.
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