26.1.24

Sob o signo da morte de Deus - II

 

(Adaptado de texto do início de 2019)

A abordagem filosófica mais superficial da questão religiosa é a das provas da existência ou inexistência de Deus, ou seja, dos argumentos elaborados para sustentar diretamente cada uma das teses. Apesar desta superficialidade, cara à abordagem analítica, existem componentes ontológicos destas provas muito interessantes para qualquer pensamento que intente indagar o fundamento da realidade. De facto, embora tenha afirmado e reafirmado, repetidamente, o meu ateísmo, também me pronunciei, com significativas restrições, favoravelmente a aspetos dos argumentos cosmológico e ontológico. Isto indiciará que o meu ateísmo não será dos mais habituais, pois os agnósticos e ateus não genealógicos adotam, invariavelmente, como estratégia, a rejeição de qualquer tipo de validade às provas teístas e deístas. O mesmo, aliás, é feito pelo fideísmo. Além disso, não partilho a indiferença habitual do ateísmo prático, não defendo um nominalismo que rejeitasse significado à própria ideia de Deus por falta de referência empírica, não considero que a metafísica tenha morrido e que já não haja qualquer sentido para qualquer reflexão metafísica. Pelo contrário, é sobretudo a partir do ponto de vista da reflexão metafísica que coloco o problema. Por outro lado, não considero que faça sentido considerar a noção de Deus a não ser pelo menos no âmbito de uma conceção abstratamente teísta. Em Deus, é pensado um indivíduo, mesmo que universal e infinito, com vontade e entendimento, em relação com o mundo, para o qual tem algum tipo de desígnio. Outras variações (criação num momento ou eterna, causa final ou causa eficiente, transcendente ou imanente, etc.) podem ser comportáveis na noção de Deus. Admito que existam algumas conceções deístas que se aproximem de uma conceção teísta, personificando de algum modo Deus, por exemplo, através da admissão de um desígnio original. Porém, qualquer conceção deísta que anule toda a personificação ou qualquer conceção panteísta que o reduza a uma entidade abstrata global só guardam de Deus o nome, sem que se veja por que razão não preferiram outra palavra para designar o princípio geral de toda a realidade, pois já não pensam neste qualquer individualização ou personificação. Quanto ao fideísmo que só admita, como acesso único ao divino, a fé, não me parece que seja relevante considerá-lo num âmbito argumentativo, a não ser como corolário final de uma resposta cética ou como variação extrema da exigência teísta de fé. 

Na fronteira entre o fideísmo e a argumentação pura, existem diversas tentativas de pretensas provas empíricas que, na verdade, associam sempre uma componente de suposta verificação empírica a sustentações argumentativas e interpretativas. Considero todos esses argumentos extremamente fracos, na verdade sempre supondo o que afirmam por mero ato de fé, o que é autossuficiente e, como tal, não requer qualquer argumentação. Aliás, existe uma forte tradição teológica que equipara as diversas revelações à parte empírica da religião e que pretende que elas constituam provas empíricas por si, tal como aquelas que qualquer um pode ter na sua experiência habitual. Ora, como é evidente, a possibilidade de considerar um dado evidência empírica depende da possibilidade de repetição da experiência por qualquer um em qualquer lado, o que exatamente está vedado ao comum dos humanos nas alegadas experiências de revelação. Assim, já aqui, há um elemento argumentativo falacioso, o da equiparação com a experiência comum, que ignora uma das condições mais essenciais para a satisfação das exigências experimentais, tudo fazendo depender, ao contrário, de testemunhos extraordinários. Na verdade, a aceitação de tal argumentação levaria a ter de se aceitar a mais disparatada das patranhas, legitimando a tão humana tendência para a fabricação e a pura e simples mentira, quando não para o delírio e para a alucinação. Exatamente devido a esta fragilidade das experiências extraordinárias, seguindo a mesma busca de sustentação empírica, surgiu a pretensão de provar a existência de Deus, independentemente de quaisquer considerações racionais, por um “sentimento”. Neste sentido, pretendia-se que assim como se provam as existências sensíveis, também se sentiria sempre e por todos o próprio Deus. De certa forma, as conceções fideístas sustentavam algo similar a esta prova, visto a fé ser do domínio afetivo e a única forma de aceder a Deus segundo o fideísmo. Porém, aí, sustentam esse acesso a nível pessoal, ao passo que esta “prova” defende um “sentido” universal. Isso corresponde ao sensus divinatis de Calvino (muito embora se possa encontrar noções precursoras, nomeadamente em Aquino). Poderia parecer uma conceção anacrónica, mas, na verdade, tem vindo a ser sustentada, ao longo dos séculos, sobretudo nas tradições calvinistas (muito embora haja outros casos, incluindo teólogos católicos). Mostrando como a suposta filosofia da religião norte-americana não passa muitas vezes de teologia dogmática camuflada, essa “prova” também foi sustentada pela filosofia analítica recente, com a argumentação adicional de que o habitual não reconhecimento desse “sentido” por todas as pessoas se deveria aos efeitos noéticos do pecado. O caráter falacioso deste argumento é tão grosseiro que quase dá vontade de o passar em silêncio. Trata-se de um caso extremo da rejeição de qualquer refutação empírica, pois qualquer ocorrência em contrário poderá ser interpretada como decorrente da distorção provocada pelo pecado. Claro, está decidido à partida que os fiéis seriam os justos, o que é de uma arrogância desmedida, nem admitindo sequer a possibilidade dessa mesma distorção pelo pecado poder dar origem à própria crença nesse tal sentimento.

Uma outra suposta prova do mesmo género, mas um pouco mais indireta, é a pretensão de provar a existência de Deus pela universalidade da sua crença na história do homem. Muito comum no passado, à medida que se foram conhecendo outras tradições, levaram a uma interpretação, cada vez mais forçada, das mais diversas conceções dos mais diversos povos, no sentido de ver uma preconceção da divindade nos povos primitivos e uma conceção deturpada ou degenerada noutros. Newton, por exemplo, defendia que todas as religiões derivariam da religião adâmica, não passando a diversidade das crenças de distorções da religião original. Naturalmente, trata-se de uma argumentação muito defeituosa, dependente de uma interpretação que supõe aquilo exatamente que haveria a provar, que todas as tradições culturais teriam na sua base a crença no Deus único. Esta suposta prova tornou-se muito difícil de defender, devido a uma menor ignorância atual acerca da diversidade das crenças. Existem, porém, outros argumentos baseados na história e na tradição, supondo já sempre a fé numa tradição e adicionando-lhe este ou aquele componente, até argumentos de ordem estética. Lembro-me de um suposto filósofo analítico, na verdade um teólogo dogmático, que alegava não ser possível uma história mais bela e empolgante do que a da Encarnação. Ora, poderia recomendar-lhe ler O Senhor dos Anéis que está escrito na sua língua, assim como muitas outras histórias fantásticas, que, para além de serem esteticamente superiores, têm a vantagem de conterem muito menos absurdos. É difícil, aliás, debater com crentes que calam de tal forma a sua razão que podem com facilidade defender os argumentos mais insustentáveis, como a unidade e consistência absoluta da Bíblia que provaria a existência de um único verdadeiro autor transcendente, ou a total racionalidade de tudo quanto foi revelado. De facto, a fé afirma-se muitas vezes racional, quando na verdade tem como único suporte a própria fé. Ora, a fé é um puro ato de vontade que não requer nada que não uma adesão afetiva, sem necessidade de qualquer argumento. Costumo dizer que para crer basta querer, mas tenho reparado que uma tal declaração, tão evidente que poderia ser tomada como axioma, tem reiteradamente provocado a ira dos crentes. Os crentes querem em geral que haja, para a sua crença, uma sustentação superior à sua mera vontade subjetiva. Mas isso mesmo reitera o alegado axioma, pois mais não mostra senão uma crença adicional igualmente alicerçada na vontade.

Uma última variante das tentativas de sustentação empírica da existência de Deus é a existência, na nossa consciência, da lei moral. A estrutura do argumento é similar aos anteriores, mas com recurso a uma primeira justificação causal. Toda a gente teria consciência moral. A consciência moral seria uma espécie de marca do criador no criado. Logo, é um efeito que remete para a causa, um pouco como a prova causal com base na ideia de Deus de Descartes. O primeiro defeito do argumento está logo na primeira premissa: nem todos têm consciência moral, como se pode verificar nos psicopatas. Estranhamente, Kant que rejeitou todas as pretensas demonstrações da existência de Deus, apenas admitindo que, do ponto de vista prático, se possa sustentar que há crenças mais racionais do que outras (os postulados), acabou por dar um argumento adicional a esta via. Na verdade, Kant constata a lei moral como um facto da razão, o único facto da razão que atesta a liberdade, visto ser constituída unicamente por uma aspiração incondicionada que escapa à determinação empírica. Ora, mesmo um psicopata tem a mesma razão, a mesma faculdade de raciocinar. Embora possa escolher nunca seguir a determinação da razão, o critério formal da razão, a sua forma universal, está sempre disponível no seu pensamento. Mas porque razão isso poderia constituir uma marca deixada pelo próprio Deus? Naturalmente, Kant não poderia aceitar tal raciocínio, visto a causalidade apenas poder ser determinante no âmbito fenoménico. Aqui, estaríamos perante um uso transcendente da categoria. Porém, o incondicionado presente na lei moral aspira ao cumprimento segundo um critério que, se fosse considerado como substância, corresponderia exatamente ao representado na ideia de Deus, o absolutamente incondicionado. Aqueles que procuram dar a este argumento um teor demonstrativo falham, porém, exatamente no mesmo ponto que falham os argumentos cosmológico e ontológico. Mas esse é o teor essencial deste artigo e deixá-lo-ei para mais tarde. Ainda antes disso, a maior fraqueza do argumento é a mesma que a do argumento cartesiano, a defesa da impossibilidade do nosso espírito ser a causa da ideia de Deus ou da lei moral. Ora, quer na ideia de Deus, quer na lei moral estritamente formal, apenas se encontra presente o resultado de uma elementar operação formal. Como sublinhava Hume, os únicos conteúdos da ideia de Deus são as capacidades humanas que internamente podemos experienciar. Porém, todas elas, entendimento, previsão, poder, bondade, presença, etc., são limitadas. Basta colocar uma negação nessa limitação para ter Deus. Ora, por acaso Descartes consideraria inacessível ao espírito humano o ato de negar? Na verdade, seguindo o próprio Descartes, se negar é um ato não do entendimento, mas da vontade, nem mesmo seria requerido grande entendimento da ideia assim produzida. É fácil ver que a lei moral é determinada de igual modo, negando as condições, os limites. Só que a ligação a Deus é ainda mais indireta, pois a moralidade estabelece um critério incondicionado na ação e não se refere diretamente a um ser incondicionado.

Quanto à pretensão contemporânea de encontrar vias obscuras de sustentação de crenças como a abertura a Deus pela ética em Levinas, por muito que haja momentos interessantes no seu pensamento, constitui uma eloquente evidenciação de como a distorção de escolas de pensamento, como a fenomenologia ou a hermenêutica, pela fé se destina apenas a, através da opacidade do discurso, poder defender todo e qualquer disparate. Embora este tipo de velamento discursivo, que permite depois que se possa apresentar como desvelamento seja o que for, constitua uma forma de dar razão ao rigor da filosofia analítica, importa lembrar que esta também foi parasitada com os mesmos intuitos pelos homens de fé. Plantinga usa tanto os meios da filosofia analítica para defender os maiores disparates da sua fé, quanto Levinas ou Ricoeur usam os meios da fenomenologia ou da hermenêutica. Qualquer escola de pensamento com algum sucesso atrai sempre um número indeterminado de soldados da fé cujo desígnio único é tentar apropriar-se da nova escola para a pôr ao serviço da sua fé. Não têm a menor preocupação de procura isenta da verdade, de desbravamento de novos caminhos ou de criação de pensamento verdadeiramente inovador, o seu único objetivo está decidido à partida, o de encontrar uma brecha para conseguir restaurar a apologia da sua velha doutrina. Muito rapidamente, o rosto alheio tem, de facto, para a nossa consciência, uma função simbólica, posso mesmo dizer que é o símbolo por excelência de abertura ao infinito, uma abertura que rompe com a totalidade fechada do sistema. Mas considerar, depois, que é o próprio infinito que tem rosto revela apenas uma imaginação inconsistente que não se coíbe nas mais grosseiras irracionalidades. Ter rosto e ser infinito são conceitos incompatíveis a não ser para quem quer restaurar a subordinação a uma fantasia alucinada. Qualquer psicótico pode pretender que a sua alucinação seja um ensinamento do além, mas não há qualquer razão para a filosofia considerar com seriedade tais absurdos que se procuram ocultar por trás de uma linguagem propositadamente camufladora do seu teor patente. Mas uma consideração mais detida destas vias recentes deverá ser feita noutro artigo desta série.

Passando agora para os argumentos mais fortes, começo por salientar que todas as versões do argumento teleológico, muito diversificadas até de acordo com as teorias consideradas científicas em cada época, desde as esferas concêntricas e a teoria do lugar natural de Aristóteles até à recente teoria do big-bang, inspiradora do argumento do fine-tuning, passando pela teoria da gravitação universal de Newton, a harmonia de Leibniz, a investigação teleológica dos organismos vivos, etc., acabam sempre por estabelecer uma analogia entre as obras humanas e a autoria suposta em todas essas ordens. Ora, ao contrário do que muitos chegaram a defender no passado, a analogia, sendo um argumento informal, podendo ser muito útil para orientar a nossa vida e até a investigação, não tem propriedades demonstrativas. Por muito rigorosa que seja a analogia, estabelecida com base em grande número de semelhanças relevantes e verdadeiras, a conclusão pode vir a verificar-se falsa. Se se aceitasse que os argumentos analógicos fossem demonstrativos, atrevo-me a dizer que não haveria nada que não pudesse ser provado. Com facilidade, se encontraria uma semelhança estrutural que se poderia acreditar ser relevante, para defender seja o que for. Logo, existe uma fragilidade argumentativa de raiz nestes argumentos que não ocorre nos argumentos cosmológico e ontológico. Por outro lado, onde estes últimos acabam por falhar é onde os argumentos teleológicos mais resistem.

Os argumentos cosmológicos causais são, porventura, a forma mais intuitiva de defesa da existência de Deus. O mais completo analfabeto pode argumentar que isto tudo tem de ter vindo de alguma coisa, ou de alguma causa, ou ter alguma origem. A estrutura do argumento é muito elementar. Tudo no mundo tem de ter alguma causa. Logo, o próprio mundo tem de ter uma causa. Mas, se essa causa tiver, por sua vez, uma causa, então entraríamos numa regressão infinita. Mas não é possível uma regressão infinita. Logo, tem de haver uma causa primeira. Considero que as objeções ao argumento são, frequentemente, mal pensadas. Porém, uma primeira estratégia e talvez a melhor pensada é negar a própria possibilidade de argumentos causais demonstrativos. É conhecida a crítica de Hume à noção de causalidade. Hume reconhece que todas as nossas conclusões acerca da realidade se baseiam no princípio de causalidade entendido como princípio de associação de ideias. Porém, tal princípio quando visa descobrir conexões necessárias na própria realidade não tem justificação racional, nem empírica objetiva. Ao contrário, resulta de uma expectativa interna, uma propensão instintiva que é ativada pela repetição de sucessões de impressões semelhantes. No entanto, o hábito não explica os raciocínios causais negativos que não resultam de qualquer repetição. Se a água de um fervedor colocado ao lume, em vez de ferver, gelar, eu não concluo que o fenómeno não tem causa, mas sim que não sei qual a causa. Se investigar o assunto e continuar a não encontrar um fenómeno que explique a ocorrência, acabarei por reconhecer não conseguir descobrir a causa, mas nunca concluirei que o fenómeno não tem causa. Se avançar com hipóteses acerca do estranho fenómeno, bruxas, demónios, extraterrestres, alucinações, etc., serão sempre tão só e apenas hipóteses causais. Por outro lado, embora não seja grande argumento (a associação deveria ser com a presença ou não do sol), é sabido como Reid caricaturou a redução da causalidade ao hábito na sucessão entre dia e noite. Mesmo não sendo bom o exemplo, com facilidade se poderia argumentar com outros exemplos (assim, aliás, se estabelecem correlações causais supersticiosas – maus olhados, astrologia, etc. –, consideradas normalmente infundadas, mas que poderiam ser sustentadas pelo hábito e, assim, ter tanta legitimidade quanto a causalidade considerada científica). Ou seja, o princípio de causalidade é aceite porque não conseguimos pensar a realidade senão com ele, muito embora não se possa descobrir a realidade só com ele. Considerar que a sua base é instintiva é perfeitamente concordante com o facto de nos parecer indispensável. Aliás, pergunto-me se a validade dos princípios formais como o da não contradição não radica exatamente no mesmo facto, não conseguirmos pensar de outra forma. Mas pensar tudo de forma causal não significa descobrir, seja o que for, por mera demonstração causal. O princípio é, na minha opinião, formal, mas vazio, não transpondo de todo a sua necessidade formal para as aplicações empíricas. Não garante resultados apodícticos na ciência da natureza, como Kant pretendia no uso fenoménico. Encadeados pelo ataque kantiano ao dogmatismo da metafísica especulativa, os comentadores nem reparam que a sua metafísica da ciência da natureza era também dogmática, tentando fundamentar a priori conhecimentos necessários que corresponderiam à física newtoniana. Já na altura se poderia ter identificado tal dogmatismo, mas não sei como ele não se tornou evidente após a refutação de boa parte dessa física que supostamente deveria ter uma certeza apodítica e uma verdade necessária.

Regressando à causalidade, para negar a formalidade vazia deste princípio, seria necessário mostrar que algo poderia vir do nada. Eu posso não saber o que deu origem a algo, mas não posso conceber que algo surja do nada porque o nada não pode ter quaisquer características capazes de dar origem a algo. Tão-pouco se torneia tal evidência, referindo este princípio, o de nada poder vir do nada, à substância e não à causalidade, pois não são de todo duas questões diversas, mas apenas aspetos diversos do problema ontológico. Mas mesmo considerando-as separadas, eu posso admitir que algo dê origem a uma coisa diversa, mesmo que seja mera aparência, através de poderes inerentes aos seus predicados; não posso, ao contrário, admitir que algo provenha do que não tem nem poderes, nem predicados, nem ser, o que é a limitação, no pensamento, própria da noção de causalidade. Suspendendo por agora esta questão, todos os diversos detratores da causalidade que se foram sucedendo mais não fizeram que aproveitar a limitação kantiana para pretender que só se poderia aplicar a causalidade ao âmbito fenoménico, acabando sempre, porém, por não poder deixar de pensar causalmente o âmbito que supunham escapar à determinação causal por não ser empírico, seja referindo a possibilidade de uma causalidade pela liberdade, a tese da vontade universal como origem (em vez de causa) das vontades individuais fragmentadas, a atribuição ao ser de um destino ou até a espontaneidade da consciência, apenas protegida do pensamento causal através da suspensão de juízo que impedia a indagação da causa. Tal ignorância da causa da espontaneidade da consciência foi transformada, depois, na absurdidade de uma aparente causalidade (embora assim não chamada) a partir do nada, mas apenas por uma gigantesca falácia do apelo à ignorância, transformando o não conhecimento da causa da espontaneidade da consciência numa pseudocategoria ontológica, o nada. Aqui, como em tantos outros assuntos, existe uma constante e, por vezes, intencional confusão entre a ordem do ser e a do conhecer. Para conhecer, tenho de estabelecer uma correspondência adequada entre o enunciado e o objeto. Essa correspondência é sempre precária porque eu não domino o objeto, mesmo que o objeto seja eu próprio, e o objeto poderá vir sempre a mostrar uma face antes não desvelada que revela a inadequação do que antes julgava certo. Isso pode ocorrer pela experiência, pela reinterpretação dos dados e pela reinterpretação que leva a novas experiências. A limitação do conhecimento é insuperável e cada nova superação apenas coloca esse limite noutro sítio. Ora, a realidade é, por isso mesmo, inacessível em absoluto, mas há algo que posso garantir, independentemente de todas as vicissitudes do conhecimento, é que só posso considerar o ser que posso pensar. Se nada do que ocorre é pensável se não causalmente, pretender que algo não pode ser determinado causalmente visto não termos meios de o conhecer causalmente (a não ser de forma imprópria), é entrar em contradição com o próprio pensamento. Ou será ilegítimo perguntar pela causa daquilo cuja causa desconheço? Não se trata apenas de o poder fazer, eu não consigo pensar que algo não tenha causa. Mesmo uma entidade eterna que não tivesse sido causada por outra coisa, se não barrar a marcha do pensamento, devo me perguntar a que se deve tal eternidade. E isso significa que, ainda aí, estou a pensar causalmente.

Mas isso não impede que se possa admitir uma causa primeira, ou seja, uma causa incausada? Em primeiro lugar, o que se afirma ao afirmar uma causa primeira é que se trata de algo que não é causado por outra coisa – daí, aliás, o conceito tradicional de causa sui. Em segundo lugar, é exatamente essa diferença em relação a tudo o resto que implica a exigência de que só possa ser causa primeira um ser máximo. Admitindo que seja necessária uma causa primeira, porque não várias ou causas de uma ordem inferior à divina (o que constitui uma objeção comum e bastante menos pensada)? É exatamente o caráter único do ente perfeito, transcendente à ordem sensível, onde tudo é causado por outra coisa, que permite pensar uma causa primeira. Se fosse algo condicionado, como ocorreria com a concorrência entre várias causas, não haveria razão para não ser causado por outra coisa. A própria possibilidade extraordinária de uma causa que possa não ser causada por outra coisa é que exige que nada possa ser essa causa primeira senão um ser máximo, incondicionado, não sujeito a qualquer limitação, nem sequer a limitação da sua existência (contingência).

Por outro lado, há ainda uma objeção que consegue ser menos pensada porque não consegue ir para lá da mera declaração numa proposição, não intentando articular o pensamento para lá disso. É a tal indigência de pensamento que Leibniz chamava filosofia de noções incompletas e outros mimos do mesmo género. O argumento cosmológico afirma que, se não existisse uma primeira causa, também não poderiam existir qualquer dos seus efeitos. E, assim, as cadeias causais não podem regredir infinitamente. Ora, os defensores da objeção que se irá agora considerar, consideram que uma cadeia causal que regride infinitamente não tem, por definição, uma causa primeira. Portanto, concluem que, se não existir causa primeira, os efeitos da cadeia causal não deixam de existir. A objeção inclui, de facto, uma disfarçada petição de princípio. Embora se refira à definição, já supõe que o conceito de uma cadeia causal que regride infinitamente é algo que pode existir, que é o que é posto em questão, sustentando-se que essa existência é paradoxal, absurda. Como é que são pensáveis efeitos finitos se supomos uma cadeia infinita na origem desses efeitos? Tal como Leibniz criticava, no seu tempo, noções imaginárias absurdas como a de número infinito, exatamente por qualquer número a que uma contagem, mesmo que eterna, pudesse chegar, ser sempre finito, só sendo identificável como infinita a lei da série, o mesmo se passa com a pretensão de negar a impossibilidade concreta através de uma definição abstrata. Vejamos. Se houver uma cadeia causal infinita no passado, como seria possível ter chegado aqui? Visto ser infinita para trás, por maior que fosse a sucessão causal percorrida, haveria sempre mais a percorrer. Caso contrário, não seria infinita. Isto equivale a dizer que, se supuséssemos uma regressão infinita das causas, este mundo aqui e agora nunca poderia ter sequer chegado a existir. Como existe, não pode depender de uma cadeia causal infinita. Uma definição de um conceito não altera nada quanto à sua possibilidade efetiva, sobretudo se se tem de considerar como uma premissa geral a efetiva existência do mundo observável.

Naturalmente, o argumento não elimina o caráter paradoxal da antinomia entre finito e infinito. Admitindo, por exemplo, o caráter infinito desse ser máximo, visto o máximo não admitir qualquer limitação, haveria que pensar como poderia ser causa do finito. Porventura, seria difícil sustentá-lo se não de forma imaginária, fantástica, que deixaria boa parte por explicar racionalmente, ou então teria que se admitir o finito como mera aparência desse mesmo infinito, o que equivaleria ao panteísmo. Da mesma forma, se se não consegue conceber uma cadeia infinita na origem deste mundo, agora, aqui, e se não se consegue conceber uma limitação da ordem temporal, talvez se deva admitir que essa ordem causal temporal só possa ser aparente, fenoménica e não numénica. Mas que essa ordem numénica possa ser não causal, é algo que é, de facto, impensável. Porém, a honestidade intelectual pode passar por reconhecer que algo é não somente incognoscível, mas também impensável. Mas se é impensável, como pode ser referido no pensamento a não ser como um flatus vocis (ou voci, caso se prefira o dativo)? Outra possibilidade que pode não parecer incompatível seria pensar que o tempo do ser máximo é um eterno hoje e que a criação criou o próprio tempo para a ordem mundana. Mas tal possibilidade volta a cair na falta de explicação da própria criação do tempo e do mundo temporal. Dificilmente seria sustentável, a não ser que o ser máximo fosse criador por essência, desde sempre e para sempre. Mas isso implicaria uma coeternidade do mundo e não sei se superaria a redução ao absurdo da série causal infinita, desta vez sob a figura do tempo, e acabaria por requerer que a ordem temporal fosse meramente aparente. A reflexão platónica postuladora de universais na base de toda a realidade não altera o problema. Ao se afirmar que os sensíveis participam no inteligível, estabelece-se um laço causal entre a realidade e a aparência. Tanto assim é que o próprio Platão intenta imaginar essa relação no Timeu. Mas, tal como na possibilidade divina, não se compreende porque é que a realidade eterna das Ideias produz os reflexos distorcidos dos sensíveis. A figura demiúrgica só complica ainda mais a explicação. Com certeza que se deve compreender o devir como uma conjugação de ser e não ser relativamente a cada uma das coisas que, nele, aparecem, mas, se se opuser devir e ser, a que propósito ocorre o devir, o que lhe dá origem? Ou será antes o devir, no seu todo, a mais direta e cega manifestação do próprio ser? Sem pretender fornecer agora uma resposta, espero que estas questões mostrem como estão ligadas as questões da causalidade e da substância.

Intimamente ligada a todas estas questões, até mais diretamente que a versão causal, é a prova cosmológica modal. As coisas que vemos existirem podem existir, mas também podem não existir. De facto, é impossível que existam sempre, ou seja, necessariamente. Na verdade, já houve tempo em que qualquer delas não existiu e poderia ter havido tempo em que nenhuma existisse. Nesse caso, se apenas existissem coisas assim, nada existiria hoje, pois não poderia vir a existir a partir do nada. Logo, para que seja possível a existência contingente, requer-se o suporte da existência necessária. Uma existência necessária causada, porém, estaria dependente de outra existência necessária (e aqui reproduz-se exatamente o mesmo procedimento da versão causal – aliás, a ligação entre necessário e contingente pode ser vista também como causal). Dito de outra forma, tudo o que vemos existir, embora exista, poderia não existir, não tem em si qualquer necessidade de existência. Porém, o nada não poderia existir. Logo, parece ser necessária a existência. Porém, nenhuma das existências observáveis é necessária. Logo, tem que existir uma existência necessária que para ter em si mesmo a razão da sua existência, tem que ser sumamente perfeita. Outra forma, mais leibniziana, de expor o argumento é a seguinte: tudo tem que ter uma razão suficiente para ser assim em vez de outra forma e para existir em vez de não existir. Nada do que observamos tem essa razão em si mesmo. Logo, tem de existir algo que constitua a razão suficiente de todas as coisas, a sua causa, a existência necessária que subjaz a e de que dependem todas as existências contingentes. Como este argumento está intimamente ligado ao argumento central deste artigo, deixarei a sua crítica para mais adiante.

É, porém, o argumento ontológico que tem suscitado, desde Anselmo até hoje, as discussões mais acaloradas. É sabido que foi rejeitado por muitos teístas (como Aquino), para não falar de fideístas, agnósticos e ateus, visto estes também rejeitarem os outros. Talvez este artigo possa trazer alguma novidade ao ser aceite por um ateu. Quanto à sua rejeição, ainda hoje se refere a crítica de Gaunilo como sendo procedente, o que mostra bem o deficit de pensamento que por aí abunda. É inerente à noção de ilha a limitação. Logo, não poderia ser equiparada à noção de um máximo de ser. Muitas das pessoas que dão o aval à crítica seguem a tendência contemporânea de considerar apenas a estrutura formal superficial das proposições, não tomando atenção à interpretação conceptual. Uma ilha maior do que a qual nada pode ser pensado existe na mente (isto é, no entendimento) quando se ouve falar de uma tal ilha? Não, não existe, ou só existe sob a forma de sons sem significado, mesmo sendo a noção formada por noções com significado, como no caso do círculo quadrado. Podemos conceber um círculo, podemos conceber um quadrado, não conseguimos conceber um círculo quadrado. Podemos dizer “círculo quadrado”, mas não há qualquer significado que lhe possa ser atribuído. Leibniz viu bem que, porém, este argumento grosseiro mostrava que era preciso estabelecer a própria possibilidade da noção de Deus ou, o que talvez não seja a mesma coisa, daquilo maior do que o qual nada pode ser pensado. A partir de Leibniz (embora a versão hoje mais usualmente referida seja a de Gödel), a prova tem sido reforçada pelo recurso à lógica modal. Leibniz considera que, para se poder asseverar que Deus existe, é necessário estabelecer a sua possibilidade. De facto, há noções impossíveis, por implicarem contradições insolúveis, como um círculo quadrado, uma montanha sem encosta, uma ilha perfeita ou o pseudoparadoxo de Deus poder criar uma pedra que não possa erguer. Logo, para se poder concluir a primeira parte do argumento de Anselmo, é necessário provar a possibilidade da própria noção de Deus. Se esta for provada, então segue-se que Deus existe necessariamente pela segunda parte do argumento anselmiano. A noção de possibilidade de Leibniz é estritamente lógica, exigindo apenas a consistência, a sua não contradição. Leibniz considera que os predicados de Deus, sendo simples e positivos, ou seja, não sendo decomponíveis em predicados mais elementares e nada contendo de negativo, não podem entrar em contradição entre si. Sendo pois a noção de Deus possível, a existência pertence-lhe necessariamente, seguindo a prova anterior. A melhor objeção que conheço a esta versão incide, exatamente, sobre esta noção de possibilidade. A pedra referida há pouco era uma impossibilidade que não negava a omnipotência porque a omnipotência só pode o possível. Mas, como escreve Domingos Faria, “se Deus é omnipotente, então pode fazer tudo o que é logicamente possível; mas se é sumamente bom, então Deus não pode fazer tudo o que é logicamente possível (por exemplo, não pode pecar). Nesse raciocínio parece haver uma inconsistência entre omnipotência e suma bondade, colocando em causa a fundamentação de Leibniz.” Porém, o próprio Leibniz poderia responder que o que a suma bondade impede é querer pecar; ora, não querer não significa não poder. É verdade que, como Faria refere, se poderia afirmar aqui uma impossibilidade metafísica, mas, exatamente, a noção de impossibilidade usada por Leibniz é a lógica e não a metafísica.

É habitual considerar que a mais demolidora objeção ao argumento é a de Kant. Kant considera que a existência não é um verdadeiro predicado tal como o é uma propriedade que pode caracterizar uma coisa (ou seja, “existente” não é uma propriedade como “gordo”, “velho” ou “triste”). A existência não acrescenta nada ao conceito de uma coisa. Pelo contrário, a existência é apenas a instanciação de uma coisa, a constatação da ocorrência de algo que foi significado, não havendo algo mais do que 200 euros no meu bolso pelo facto de eles existirem. Os 200 euros pensados tinham exatamente o mesmo valor que os existentes. Neste caso, a existência não é um predicado que se acrescenta ao conceito de um ser maior do que o qual nada pode ser pensado. Não há diferença de propriedades entre o conceito de um Deus existente e de um Deus não-existente. Ora, se a existência não é um predicado, então um ser maximamente perfeito não é maior se existir do que se não existir. Porém, Anselmo não pretende provar, em absoluto, a existência. Uma das suas premissas, aceitável mesmo pelo bíblico insensato, é a de que Deus existe na mente, na medida em que é entendida a sua definição, aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado. O argumento pretende passar de um atributo (ser mental) para outro atributo (ser real fora da mente). Ser fantástico é um atributo dos unicórnios que, de facto, existe. Se se descobrisse um unicórnio físico, por exemplo, no Monsanto, ele teria um atributo, ser físico, que os unicórnios da ficção não teriam. Logo, não é verdade que o argumento não estabeleça um predicado adicional. Assim, não existe, quanto a mim, nenhuma objeção procedente ao argumento, a partir do momento em que se aceita a definição. Porém, no Proslogion, mais do que reduzir Deus à definição, defende-se, posteriormente, todos os atributos  tradicionais do Deus teísta. Ora, se é o Deus teísta que está em questão na prova, a grande questão volta a ser se se pode aceitar que esse Deus teísta seja o algo maior do que o qual nada pode ser pensado. De facto, mesmo aceitando a possibilidade da ideia de Deus seguindo a defesa de Leibniz, o que talvez também não possa ser correspondente ao Deus teísta, ainda não está garantido que isso corresponda ao máximo de ser da definição anselmiana.

Ora, mesmo considerados como puro pensamento sem conhecimento, os argumentos ontológico e cosmológico apenas parecem procurar estabelecer um máximo de ser, uma existência necessária e uma causa sui que se constituam como sustentação dos seres limitados, das existências contingentes e das cadeias causais. Como Kant procurou mostrar, mesmo os supostos argumentos cosmológicos acabam por não ser a posteriori, na medida em que têm de efetuar a passagem da existência necessária para Deus, o que Kant afirma acabar por se reduzir ao argumento ontológico.[1] Porém, no próprio argumento ontológico, existe um salto lógico, visto também se poder questionar se um máximo de ser ou se um ser soberanamente real correspondem à noção de Deus. Na verdade, parece-me que quer a noção de ser supremo, quer a de existência necessária não passam de paráfrases do poema de Parménides, assentes na inconcebilidade da existência do nada. Se o nada não pode existir, existe sempre necessariamente alguma coisa. O nada só é referível de forma relativa, por exemplo, quando quero dizer que não estou a agarrar nada sólido. O próprio vácuo não pode corresponder a nada visto que, mesmo supondo nada lá existir de material, tem dimensões suscetíveis, aliás, de serem medidas, ao passo que o nada não pode ter quaisquer predicados.[2] Se existe necessariamente alguma coisa e não vejo nada que exista senão contingentemente, a necessidade da existência dever-se-á situar a um nível não sensível. Da mesma forma, visto nada vir do nada e tudo ter de ter uma causa, dada a impossibilidade de uma regressão causal infinita, seria necessário supor uma causa primeira que só o poderia ser se fosse causa de si mesma ou, o que vai dar no mesmo, não requeresse por natureza qualquer causa, o que só poderia ocorrer se tal entidade fosse uma existência necessária. Isso mostra, aliás, como as versões causal e modal do argumento ontológico se encontram estreitamente associadas. A própria noção de um máximo de ser do argumento ontológico pode ser vista como decorrente da impossibilidade do nada: a causa sui é causa sui por ser existência necessária, a existência necessária é necessária por pertencer aos atributos do máximo de ser e este é máximo de ser por se excluir qualquer possibilidade de nada. Neste contexto, porém, a questão que me parece fulcral é, antes de toda a discussão do valor de tais argumentos, o que é que tais noções de um máximo de ser ou de uma existência necessária têm a ver com a noção de Deus.

Na noção de Deus, está sempre presente a conceção de um indivíduo, por muito infinito que seja considerado. Se já não se está a conceber um indivíduo, seria melhor, como já disse, recorrer a outra palavra. Mais ainda, na personificação que, de raiz, se encontra associada à noção de Deus, concebe-se um sujeito com uma consciência, entendimento e vontade. Penso que a própria noção de um sujeito e de um entendimento implicam necessariamente uma limitação incompatível com a noção de um máximo necessário de ser. Porém, a conceção de uma vontade é um caminho mais rápido para expressar a incompatibilidade aqui presente. Só se pode querer alguma coisa, se se precisa disso nem que seja como capricho. A vontade poderá ser a nossa faculdade de desejar quando submetida à deliberação racional, mas, por muito racional que seja, não deixa de ser faculdade de desejar. Que sentido tem um ser soberanamente perfeito desejar seja o que for, ter desígnios e procurar realizar um projeto? Tradicionalmente, afirma-se que Deus criou o mundo para manifestar a sua glória. Para que precisa um ser soberanamente perfeito de manifestar a sua glória ou ser glorificado? E como é que a criação de um mundo necessariamente menos perfeito do que ele poderia adicionar alguma glória a um ser perfeito ou mesmo tão-só manifestar essa glória eventualmente já pré-existente? Porque é que um ser perfeito não estaria satisfeito com a perfeição absoluta que já tinha? Precisava de outra coisa para quê? Criou por amor? Mas como poderia ele amar o que ainda não existia? E mesmo podendo amar o que já imaginava, supondo que faz sentido um ser necessário e perfeito se entregar a uma atividade tão limitada como imaginar, como se precisasse de se entreter, porque se poria a amar o menos perfeito que ele próprio? Estaria já a dar-nos um modelo do que deveríamos fazer, amar o mais imperfeito, por exemplo, o puro mal? Ou aquilo que faz sentido para nós, amar o que julgamos melhor, já não faz sentido para Deus que, aliás, seria infalível no seu juízo? Toda a personificação presente na ideia de Deus é incompatível com as noções que se pretendem provar nos argumentos ontológico e cosmológico: ser soberanamente perfeito, existência necessária e causa sui. E ainda mais seria se se considerassem aspetos mais específicos da conceção teísta, as revelações, as intervenções na história, a Encarnação no cristianismo, o pecado original, etc.

Os diversos argumentos teleológicos têm a vantagem de suporem claramente a noção teísta de Deus e, como tal, não suscitarem a crítica antes feita à sua incompatibilidade com as noções ontológicas genéricas dos outros argumentos. De facto, não é contraditório pensar um ser muito poderoso que pudesse fabricar este mundo segundo um desígnio insondável. Da mesma forma, também seria possível ter sido fabricado por uma família ou raça de seres muito poderosos, ou, como num jogo que em tempos joguei, este mundo ser um jogo com que se entretinham seres de uma dimensão superior. Isto significa que um tal argumento, mesmo que provasse um desígnio, não garantiria um Deus monoteísta (ao contrário do máximo de ser, caso fosse compatível com a noção de Deus). Além disso, todos os argumentos do desígnio se articulam da mesma forma: há uma ordem na orgânica dos seres vivos, há uma ordem na gravitação universal, há uma ordem neste universo em expansão; não sabemos qual a causa dessa ordem; logo, essa causa é Deus. Parece-me desnecessário dizer que se trata de uma falácia de apelo à ignorância. Para lá das causas poderem ser outros seres poderosos, também poderiam ser determinações necessárias que apenas não conhecemos ou ainda não conhecemos, assim, como no passado, quando o homem desconhecia os mecanismos geradores das tempestades, atribuía a sua origem a deuses, à sua raiva ou à sua providência, ou seja, a desígnios. Por outro lado, pode-se estar a ver desígnios simplesmente por o homem tender a ordenar mentalmente qualquer caos, tal como via no passado (e, para alguns, ainda no presente) uma ordem até simbólica, tributária de um pensamento mágico, determinadora das mais ínfimas ocorrências humanas, na disposição das estrelas em constelações que, hoje, sabemos só aparentemente estarem próximas. Leibniz via na possibilidade de fornecer uma ordem matemática a qualquer distribuição arbitrária de pontos uma prova da harmonia pré-estabelecida, quando tal facto pode ser visto apenas como demonstrativo da compulsão humana para encontrar uma ordem em qualquer caos. Ou seja, os argumentos teleológicos aproveitam-se da nossa ignorância para tirar conclusões, utilizando a estratégia exatamente inversa à que o teísmo usa ao lidar com o problema do mal.

A objeção do mal atinge o teísmo exatamente por este estipular um desígnio no universo que, eventualmente entre outras finalidades, prossegue uma finalidade moral. De facto, as religiões monoteístas prometem uma justiça além para os abusos aquém, considerando que Deus é um ser bom que redime cada qual que o mereça das provações por que passa nesta vida, castigando todo o mal renitente. Porém, o juiz e algoz é também o criador dos acusados e condenados. Além disso, é considerado omnipotente. Logo, esta objeção parece criar um paradoxo. Tal paradoxo parece, desde a versão original atribuída a Epicuro, demonstrar uma contradição insanável entre bondade e omnipotência (em versões posteriores, juntando-lhe a omnisciência), dada a realidade do mal. Ora, frente ao mal natural, o filósofo teísta (e não apenas Leibniz que, aliás, pouco o distinguia do moral) segue um caminho exatamente inverso a e contraditório com o que segue ao defender o argumento do desígnio. Neste último, perante uma qualquer orgânica de que desconhece a causa, pretende deduzir um artífice. Ao contrário, perante os mais avassaladores desastres, defende que não é possível avaliar como tais desastres se encaixam no conjunto de uma obra de tal grandiosidade, assim como não se avalia uma sinfonia por uma pausa ou uma pintura pelas manchas em que a pintura se transforma se nos aproximamos em demasia da mesma. À perfeição de uma figura geométrica como a do quadrado é inerente a imperfeição da incomensurabilidade da diagonal. Faria sentido, pergunta Leibniz, exigir à omnipotência divina que fizesse quadrados perfeitos sem a irracionalidade da diagonal? Ora, é isso que se exige quando se exige que a omnipotência divina criasse um mundo sem mal natural, o que seria tão absurdo como exigir que criasse música sem silêncios ou pintura sem sombras. Ora, o mesmo argumento sustentado nas nossas limitações serviria para rejeitar a pretensão em ver um desígnio em qualquer pormenor da natureza, visto não estarmos em condições de avaliar aquilo de que ignoramos o contexto mais geral.[3] Claro que as nossas limitações cognitivas refutam as pretensões epicuristas de demonstração da inconsistência conceptual de Deus, o que era o objetivo leibniziano e não o de demonstrar a existência de Deus – mas o mesmo argumento lança sérias dúvidas sobre uma das suas vias de demonstração dessa existência que supõe uma harmonia que só poderia ter por autor Deus. Além disso, Voltaire caricaturou muito bem o caráter vazio do argumento do melhor mundo possível inerente à criação por um ser maximamente perfeito. No Cândido, escrito exatamente na sequência do terramoto de Lisboa, em 1758, Voltaire imagina todo um imenso conjunto de circunstâncias extremamente negativas, sempre explicadas como pertencentes ao melhor mundo possível à maneira de Leibniz. De facto, o argumento de Leibniz permitiria considerar o mundo o melhor possível mesmo que se tivesse vivido toda a vida no próprio Inferno. Sendo assim, a própria afirmação do melhor mundo possível revela-se vazia e estéril, pois poderia ser feita no pior mundo possível. Da mesma forma, um argumento similar ao do fine-tuning levava Schopenhauer a tirar a conclusão exatamente inversa à leibniziana: vivemos no pior mundo possível, pois o mais ínfimo desvio às condições pelas quais este mundo existe faria com que este já não fosse possível. Ou seja, este seria o pior mundo que ainda consegue existir.

Quanto ao mal moral, considera-se tradicionalmente que advém de um poder excecional dado a um conjunto de criaturas, homens e porventura anjos, para desempenharem um papel superior na criação, onde, aliás, parece se jogar o desígnio fundamental da mesma, o livre-arbítrio. Por muitos desenvolvimentos que tenha tido posteriormente, considero, aliás, que o puro libertismo nasceu desta necessidade de absolver o divino e culpar o homem do mal. Mesmo numa versão compatibilista como a do mito de Er, já existia a preocupação de isentar o divino de qualquer culpa.[4] Sumariando a tese teísta e esperando não produzir um espantalho, Deus que é sumamente bom decidiu criar um mundo necessariamente mais imperfeito que ele, onde permitiu o mal na medida em que isso contribuía para realizar o melhor desígnio mundano possível. Nesse desígnio, figura em plano de destaque o homem, visto ser dotado de um poder miraculoso de escolher a sua ação independentemente da determinação natural. A permissão do mal resultaria inevitavelmente desse dom, não se podendo falar verdadeiramente de livre-arbítrio se não existir a possibilidade de escolha entre o ser – o bem – a liberdade divinos, e a aniquilação – o mal – o encarceramento pecaminosos. O objetivo seria, no final, eleger os justos nas suas escolhas para um futuro de eterna bem-aventurança onde não haveria lugar para o pecado e condenar os perversos a um sofrimento igualmente eterno, resultante da sua perseverança no pecado. Ou seja, apesar de, supostamente, ser um dom superior a existência de livre escolha entre o mal e o bem, afinal o objetivo é uma forma superior de vida onde, como em Deus, não se pode escolher o mal. Se assim é, para que decidiu Deus criar, primeiro, a forma de vida inferior (que antes se justificava como superior)? Para avaliar o mérito das suas criaturas ou, visto Deus possuir presciência e já saber qual irá ser o seu valor, para manifestarem o seu mérito pelas suas ações. Porém, Deus criou tais criaturas do nada, ou seja, de si próprio. É claro que se pode imaginar facilmente um poeta que vai produzindo diversos poemas e elegendo os melhores de entre eles. Porém, é isso concebível num ser soberanamente perfeito? Que vá produzindo criaturas defeituosas, que sabe defeituosas e que, visto possuir presciência, predestina logo na sua criação a uma condenação eterna por pecados, afinal, necessariamente, limitados? E que, por méritos limitados, conceda a graça da eleição final para uma felicidade eterna logo na sua criação? Os teístas, mais cedo ou mais tarde, remetem sempre as explicações para as limitações do nosso entendimento. Porém, não é muito mais sinal das conceções antropomórficas este Deus arbitrário que cria este espetáculo da perdição e da salvação para manifestar a sua glória, sem que se perceba o sentido de um ser perfeito criar algo mais imperfeito e isso o glorificar, um ser bom criar um ser capaz do mal que já sabe que praticará esse mal e que castigará por praticar esse mal a que ele o predestinou, e um ser justo castigar e premiar ações finitas com punições e prémios infinitos? As noções do teísmo que, supostamente, procura conciliar fé e razão, só parecem racionais se não forem analisadas até o fim. Inevitavelmente, acaba por cair nos mais diversos absurdos e, aí, recorre aos mistérios divinos para fugir de objeções, tanto quanto ocorria na era da razão preguiçosa, na Alta Idade Média.

Humano, demasiado humano é este Deus e não necessariamente naquilo que o humano tem de melhor. Nele se concentrou todo o desejo de proteção e todo o ressentimento contra os abusos mundanos. Para isso, lhe foi concedida a omnipotência e a preocupação com a justiça. Porém, sendo a sua raiz o ressentimento e não a simples razão, não houve grande preocupação em tornar consistente tal ser superior. Que a raiz seja o ressentimento, é algo que se evidencia pelo caráter eterno das penas e prémios. Do ponto de vista da justiça, trata-se de uma ofensa básica ao princípio da proporcionalidade entre a pena e o crime (ou entre o mérito e o prémio), mas, do ponto de vista do ressentimento, é a vingança ideal. Quanto a todos os absurdos aqui descritos e muitos outros que poderiam ser referidos, Deus não foi concebido para responder a problemas filosóficos, mas sim para trazer conforto e uma satisfação mental pela redenção anunciada para quem assim o imaginava. E em nada se evidencia mais este caráter irracional que na exigência de fé, considerada sempre como uma condição necessária para a salvação, chegando ao ponto de ser, em certas confissões, a condição humana única, à qual se junta eventualmente a condição divina da graça. Quem exige, entre os humanos, uma crença cega em si e nisso vê mérito por vezes exclusivo são os tiranos de todos os tipos. Da mesma forma, só um ditador considera que duvidar já é um pecado, quando não o princípio do pior dos pecados, o da apostasia. E tal como o déspota, só se exige tal fé, se se quiser eximir a qualquer escrutínio. Ora, um déspota vingativo que criou o mundo para se vangloriar e para castigar e premiar as suas criações que já sabia o que fariam, destinando-as, aliás, a fazê-lo, é uma noção absolutamente incompatível com um ser soberanamente perfeito. Como tal, uma noção que una as duas conceções é um absurdo lógico, um círculo quadrado, não podendo, como tal, existir em qualquer mundo possível. Pascal aposta num círculo quadrado e, por isso, não tem qualquer possibilidade de ganhar. Melhor seria apostar no bule de Russell ou na Grande Abóbora de Charlie Brown, se trouxessem alguma vantagem, como o pote de ouro dos duendes. Mas ainda melhor seria não decidir a sua vida e as suas convicções pelo medo do desconhecido (como ao se preferir usar um amuleto apenas para o caso de a realidade ser absurda e as superstições corresponderem à realidade), o que acaba por ser apenas uma manifestação de irracionalidade e, por isso, uma antítese da filosofia.



[1] Immanuel Kant, Kritik der Reinen Vernunft, Riga, Hartknoch, 1781, 2ª ed., 1787; trad. port. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, Crítica da Razão Pura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 19858, pp. 509-510. E, na verdade, mesmo o fundamento de uma experiência em geral não parte de qualquer experiência em particular, apoiando-se em simples conceitos puros, ibidem, p. 514.

[2] Daí Newton não só ter considerado o espaço como absoluto, mas, inicialmente, como um atributo imaterial e, mais tarde, como o modo de um atributo da própria divindade, pois o espaço mesmo vazio não só não seria um nada, muito embora fosse imaterial, como mostrava a impossibilidade da sua divisão material. Os relativistas, como Leibniz, não podiam ser senão plenistas porque, se não o fossem, isso significaria dar ao espaço um estatuto ontológico, isto apesar de Leibniz acabar por reconhecer ao menos a possibilidade ideal (geométrica) do vazio.

[3] Apesar de elogiar um artigo de Desidério Murcho de 2019, critiquei a sua conclusão (2020) nos seguintes termos: “Bom artigo que desliza no final para um argumento de todo improcedente, claramente motivado pela crença do autor que facilmente poderia ver que, em todo o conhecimento, é mais fácil verificar que algo existe do que descobrir aquilo que esse algo é ou as características de todos complexos (neste caso, infinitamente complexos). Eu verifico a existência do mundo e estou longe de o poder compreender em toda a sua complexidade espacial e temporal. Um homem das cavernas verificava a existência do fogo e podia nem sequer ainda saber usá-lo, quanto mais produzi-lo ou saber o que era. Eu posso ser capaz de demonstrar a existência de Deus e ser incapaz de penetrar na complexidade dos seus desígnios ou no destino preciso de cada pormenor da sua criação. Uma incapacidade não implica de todo a outra. Non sequitur.” Pode parecer que entro em contradição neste artigo. Mas não. O que Murcho equipara às limitações cognitivas referidas por Leibniz é a nossa capacidade de saber se Deus existe ou não, em geral. O que eu equiparo é a pretensão de inferir uma harmonia universal e eterna a partir da nossa consideração de ordenações no mundo inevitavelmente limitadas, o que é característico dos argumentos teleológicos e só destes – e, porventura, até menos de Leibniz. Isto porque Leibniz poderia pretender que essa via não era estabelecida analogicamente, mas por ser impossível explicar de outra forma, por exemplo, a comunicação entre o corpo e a alma ou a conservação universal da quantidade da força (eventual antepassado da mais recente noção de energia, como admito no meu trabalho sobre Leibniz e Clarke), o que, porém, pode ser visto como uma transformação da fraqueza da insustentabilidade do dualismo cartesiano em força e dos pressupostos cosmológicos em provas. Reconheço, porém, que a apreciação de um sistema em que todos os elementos conspiram uns com os outros, torna difícil decidir a ordem demonstrativa de forma linear. De qualquer forma, como muitos autores da época, Leibniz não rejeitava de todo a possibilidade de demonstrações analógicas, como ocorre no salto da vida verificável pelo microscópio para a presunção que o mesmo ocorreria sempre progredindo para o infinitamente pequeno. Noutros casos, porém, como o dos indiscerníveis, ele apenas exemplifica empiricamente o que já tinha concluído especulativamente, apesar de também aí se poder detetar um pensamento simultaneamente lógico, metafísico, analógico e indutivo: “C’est tout comme ici”.

[4] Platão, ed. J. Burnet, Platonis Opera, T. IV, Oxonii e typographeo Clarendoniano, 1949; tr. port. Maria Helena da Rocha Pereira, A República, 11ª ed., Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 200810, p. 490, 617 e..

25.1.24

A inclusividade pedagógica

 


            A generalidade dos professores já pouco ou nada reage às investidas doutrinárias das modernas inclusividades, transição digital, flexibilidades, etc. Se instados, em privado, a dar a opinião, é, porém, muito generalizada a rejeição quer através de trejeitos, quer com declarações relativas à sua absurdidade. Porém, existe um número amplo de comissários políticos e de professores carreiristas que estão dispostos a seguir qualquer orientação do poder momentâneo, mesmo que em completa contradição com a que seguiam também fervorosamente ainda há poucos anos, para tornar quase axiomáticas as maiores falácias ou simples falsidades através da estratégia mais usada pelos próprios políticos da repetição ad nauseam. Este período é bastante diverso de anteriores, por exemplo, o do consulado de Guterres, porque, para realizar os desígnios ideológicos que passam por ciências de educação, se criou uma guarda pretoriana própria. Esses comissários de política educativa foram colocados em número muito superior a qualquer grupo disciplinar, ano após ano dos anos deste consulado, aproveitando o grupo já existente do ensino especial – mas deixaram de ficar circunscritos ao tratamento dos casos desses alunos (muitas vezes até mais negligenciados que anteriormente), até por o seu número exceder em muito as necessidades do ensino especial. Muito embora possam proferir objetivos mais construtivos, na verdade, como iremos ver, nada mais têm a dizer quando se dá a positiva a todos os alunos. Por muito que digam o contrário, nunca os vi (nem eles, nem ninguém) ir verificar se uma determinada classificação positiva corresponde a algum tipo de aprendizagem, mesmo que ínfima. A partir do momento em que se atribui a positiva, deixam de existir considerações de tipo algum. Torna-se, por isso, claro que o objetivo central desses comissários é o de produzir a adulteração dos resultados educativos de forma a garantir estatísticas de pleno sucesso. Em termos públicos, não existe a consciência desta realidade. Ainda recentemente, ouvi um dos comentadores televisivos referir como um dos problemas do ensino a falta de professores do ensino especial. Não, apesar de poder haver falta de funcionários ou especialistas dedicados às NEE, esse é o único grupo que não tem falta de professores em lado algum, embora, como qualquer massa, busque sempre ter um ainda maior número. Ora, esse processo de ampliação do número de comissários começou exatamente na altura em que se anunciava para breve o início da falta de professores nas escolas.

O público em geral não tem consciência de que esse grupo é atualmente constituído por docentes dos mais diversos grupos disciplinares, na maioria dos casos, sem qualquer formação académica relacionada com as NEE, quanto muito uma das bem pouco sustentadas formações de professores, que estavam em situações mais ou menos precárias e viram no ingresso nesse grupo a possibilidade de estabilização da sua vida numa efetivação segura. Do ponto de vista governamental, tal decisão mostra uma opção inequívoca que tem sido muito pouco sublinhada, para não dizer ocultada. O governo sabia que, ao desviar tão grande número de docentes para esta função, estava a criar condições para uma aceleração vertiginosa da falta de docentes disciplinares. Porém, não tenho a mínima dúvida que o fez intencionalmente, visto ouvir, há décadas, da parte de professores alinhados e políticos, uma desvalorização sistemática do saber disciplinar e a defesa de que qualquer um pode “ensinar” seja o que for, sem necessitar de qualquer conhecimento especializado. Fê-lo porque lhe importava mais garantir que os professores martelassem resultados do que quaisquer aprendizagens reais. Na verdade, isso mostra que, ao governo, importa mais a aparência presente que os resultados futuros na sociedade – e, para ocultar tal facto, envolve todo o sistema numa nebulosa de considerações difusas destinadas a relativizar a avaliação e recusa todo o escrutínio rigoroso dos resultados das suas intervenções. Declara-se que os resultados são mais ou menos os mesmos com toda a desfaçatez, quando se veem as escolas que anteriormente se destacavam pela positiva a afundarem-se nos exames na direta proporcionalidade da implementação das inclusividades – ao contrário, exatamente, das escolas que resistem a ou moderam essa implementação. Por isso, procuram desesperadamente acabar com os exames, pela maior dificuldade de aí levar a cabo uma fraude equalizadora.

            Pior ainda, como existe falta de professores, muito agravada por esta migração para o comissariado, o número de alunos por turma tem que ser cada vez maior, não se importando a tutela de impor o ingresso em turmas já cheias, até perfazerem 32 alunos, quantas vezes com alunos estrangeiros “despejados” na escola que nem inglês sabem e que os docentes, à falta de melhor solução, apenas acrescentam ao número das fraudes educativas que já têm de cometer. Como os horários estão mais que preenchidos, existe um cada vez menor recurso ao instrumento tradicional do apoio pedagógico acrescido e são as próprias Direções que o desincentivam, apelando a meios mágicos alternativos.[1] E os comissários têm de continuar a transmitir a doutrina da diferenciação que requereria um ensino individualizado quando os docentes não privilegiados pelos arranjos feitos nas escolas têm que lidar com verdadeiras massas industriais, com os quais só é possível o ensino massificado universal ou a pura e simples desistência dos docentes, dando positivas a todos sem critério e sem aprendizagem, de forma a não serem incomodados. Não creio que os comissários sejam de tal modo alienados da realidade que possam crer que tais pedagogias diferenciadas possam ser implementadas sem esforço algum pelos docentes, como já os vi defender sem que ninguém levantasse a voz para lhes dizer que estavam a delirar. O seu objetivo é apenas o mesmo que orienta os ideólogos há muitas décadas, criar má consciência nos docentes, fazê-los crer que a culpa do insucesso é sempre sua e, assim, para se redimirem da culpa, forçá-los a apresentar resultados falsificados que, hipocritamente, se declara nunca terem sido pedidos. Se o governo tivesse a mínima intenção de aferir os resultados desta política, bastava-lhe ver se a percentagem de alunos do ensino público aumentou ou diminuiu no ingresso nos cursos mais procurados, as medicinas, certas engenharias, etc. Mas os dirigentes do partido que promove esta exclusão camuflada de inclusividade sabem bem o que estão a fazer e têm quase todos os filhos e netos nas escolas privadas de excelência. Perante este cenário, o que é fornecido nas escolas para mantê-las no caminho pretendido? Retórica falaciosa, reproduzida pelos comissários dos ideólogos pedagógicos e dos políticos alinhados.

Escalpelizando logicamente um exemplo recente, pode-se, por exemplo, apresentar como premissas de uma conclusão inicialmente apresentada a já velha distinção entre os estilos de aprendizagem. Poder-se-ia também ter ido buscar os tipos de inteligência e ainda várias outras teorizações psicológicas que os docentes bem conhecem há muito. Qualquer dessas abordagens é muito meritória e seria ótimo poder tê-las em constante consideração, mesmo tendo em conta a massificação já referida. Na verdade, tais premissas já ignoram um fator que é o da progressão entre os níveis de ensino, desde um ensino que deveria ser quase só lúdico, até à necessidade de uma aprendizagem muito mais formalizada que, por isso mesmo, se torna muito inapropriado adequar a qualquer estilo de aprendizagem. Mas, lá está, o mal aqui estará, do ponto de vista dos ideólogos, nas disciplinas, mesmo quando elas já são escolhidas e não são obrigatórias, de forma correspondente aos cursos superiores em que se pretende o futuro ingresso. Voltarei mais adiante a esta questão. Não chegando as limitações desta abordagem no contexto fornecido, nunca se apresentam tais premissas sem recurso a falácias grosseiras. No exemplo referido, qual era a conclusão a propósito da qual se apresentavam depois as justificações, ou seja, as premissas relativas aos estilos de aprendizagem? A conclusão era a relativização da avaliação das aprendizagens, procurando defender como aprendizagem de algo seja o que for que o aluno dissesse. Para isso, forneceu-se antes um exemplo edificante que ignorava por completo as diversas condições de aprendizagem e forçava um aluno que não tinha condições para fazer uma determinada aprendizagem a chegar a um resultado, exclusivamente, com os seus meios próprios, tudo envolvido num embrulho poético que convidava a desencadear emoções e não a pensar.[2] Mas tais exemplos narrativos servem para tudo e o seu contrário. Também há o filme da professora que se vê alvo de todo o tipo de processos por se atrever a considerar errado que 2+2=22. Ora, como se poderia considerar a discriminação dos estilos de aprendizagem justificação para a conclusão inicial, a de que se deveria considerar como aprendizagem qualquer resultado construído pelo aluno? Esta afirmação não se segue (non sequitur) daquelas premissas, para lá de se ignorar, deliberadamente, as condições que deveriam ser respeitadas ao adotar instrumentos adaptados aos diversos estilos de aprendizagem (ignoratio elenchi). De facto, quem for honesto intelectualmente e tiver condições para aplicar esses instrumentos, visa que o aluno atinja um determinado conhecimento pelas vias que forem mais adequadas para o aluno, em função do seu estilo de aprendizagem. Pode-se admitir, igualmente, a flexibilização da avaliação em função das várias vias seguidas pelo aluno ao construir o seu próprio conhecimento. Em lado algum, esta abordagem meritória implica que se aceite seja qual for o resultado que o aluno atinja, valorizando sempre positivamente a opinião do aluno. Mas é exatamente isso que todos os apaniguados da ideologia pedagógica governamental dizem, de forma mais ou menos clara, chegando a ter tal determinação nas grelhas destinadas a avaliar as aulas dos colegas, segundo os modelos de supervisão que não é por acaso que a maioria dos docentes rejeita.

            Há uns anos, lembro-me de um aluno que procurava defender que os norte-americanos nunca tinham ido à lua. Não sei se por ter visto isso em algum lado, se por originalidade própria (o que deveria ser muito valorizado segundo os nossos comissários), justificou a sua tese pelo facto de, nas imagens, os astronautas terem sombra. Segundo ele, se estivessem na lua, não a poderiam ter porque, sendo a lua uma estrela e irradiando luz, impediria a formação de sombras. Segundo os nossos brilhantes pedagogos, eu agi mal e fui um péssimo professor, visto lhe ter dito que o que ele estava a dizer estava errado, logo à partida pelo facto de a lua não ter luz própria e não ser uma estrela. Presumo que, em certas disciplinas, em que o que importa é o cultivo de um instrumento, por exemplo, uma língua estrangeira, pouco importe a falsidade ou verdade de outros conteúdos que podem ser abordados apenas como oportunidade de troca de ideias. Digo troca de ideias e não debate porque os docentes alinhados com estas ideologias relativistas se mostram extremamente avessos a qualquer forma de debate, tal qual os políticos e pedagogos se mostram hostis a qualquer forma de escrutínio. Na verdade, comportam-se nas escolas como uma seita que não admite contraditório. Consideram-se portadores da luz, consideram que estão a promover o progresso e distinguem apenas os docentes em termos da fidelidade aos seus ideais, tendo um declarado projeto de levar o conjunto dos docentes, a pouco e pouco, para o que consideram o bem. Deve-se dizer que, assim, se mostram bem mais honestos que os carreiristas que aplicaram, com o mesmo fervor com que seguem o Costa, as determinações do Crato, tendo já defendido tudo e o seu contrário, ficando sempre bem nas graças do poder instituído. Esta luta ideológica nada tem a ver com ciência, pois tudo está decidido antes de qualquer investigação científica, determinando, aliás, o teor da própria investigação. O que está em causa seria do âmbito da filosofia da educação e, mais amplamente, da filosofia política, isto é, se os agentes em causa permitissem algum tipo de filosofia. Mas não permitem. De facto, assumem uma atitude em tudo similar às religiões dogmáticas, mas sem sequer o seu sentido de transcendência, razão pela qual a atitude só revela uma ideologia política autoritária. O que está em causa é a finalidade da escola, para que serve a escola na sociedade, qual o serviço essencial da escola para a sociedade. Afinal, é logo aqui que se decide se a avaliação deve ser totalmente relativizada ou não, porque esta resposta depende daquilo que se pretende do sistema educativo.

            Antes de tratar essa questão, porém, gostaria de reafirmar uma tese que tenho já defendido em diversos textos e que está intimamente ligada com toda a circunstância relatada. Desde, pelo menos, os anos 90 que tenho ouvido os responsáveis, por exemplo, do Conselho Nacional de Educação a defenderem que a retenção dos alunos é, em todos os casos, contraproducente, levando à simples reiteração do insucesso. Embora ainda aí tivesse detetado diversas falácias, novamente devidas aos pressupostos que tratarei no fim, não tenho nenhuma razão para me opor à conclusão que decorreria dessas afirmações: o fim das retenções. Ora, os sucessivos governos socialistas, talvez com medo de serem acusados de facilitismo (como se fosse possível facilitismo maior do que aquele que têm promovido), têm optado não por tal medida que estaria na sua inteira responsabilidade, mas pela intimidação dos docentes, visando que cumpram o seu desígnio sem implementar o fim das retenções. Como consideraram que a intimidação das Direções e inspeções era ainda insuficiente, amplificaram enormemente um grupo dedicado a casos excecionais, pondo em causa as aulas disciplinares ordinárias por falta de professores, e fizeram desse grupo um grupo que vigiava a atribuição das avaliações de todos os alunos por todos os docentes, de forma a garantir, com recurso a ameaças diversas, que os docentes alterassem as suas classificações negativas. Como, ainda assim, não conseguiam cobrir todos os Conselhos de Turma (e até já se terem cansado de o tentarem) e nem todos os professores se deixavam intimidar, deu-se origem a uma sistemática arbitrariedade: alunos com desempenhos superiores a outros transitados por razão nenhuma que não a intimidação, podem ser retidos por estarem na turma errada com os professores errados – isto, considerando como errados os professores que insistem em fazer uma avaliação mais honesta (completamente honesta é coisa que já não existe) e não aceitam a ignomínia de outros exigirem que alterassem a sua avaliação, não por considerações suas, mas dos outros, sem que os outros, tal como o governo, assumam a responsabilidade pela adulteração dos dados. Os professores pedem respeito nas ruas, como se o respeito fosse medido pelo salário, e aceitam a desautorização e a imposição aviltante da fraude avaliativa, o que constitui uma absoluta falta de respeito aos docentes, de forma passiva. Mais ainda: os sindicatos tradicionais que falam em respeito colaboram empenhadamente nesta mistificação. E nada disto seria necessário se simplesmente tivessem acabado com as retenções. Os professores poderiam fazer uma avaliação honesta, os dados dessa avaliação seriam fiáveis, os alunos teriam uma informação fiável para os guiar nas escolhas que fariam de disciplinas e de exames de ingresso no superior. Não haveria ainda falta de professores, pois não teria sido necessária a ampliação desmesurada do grupo de ensino especial, mesmo se essa falta acabasse mais tarde por ocorrer. Mas como os docentes não seriam forçados a práticas aviltantes, a própria profissão seria mais atrativa e, sobretudo, atrativa não para demagogos relativistas, mas para profissionais ciosos do seu saber e da aprendizagem dos alunos.

            As falácias atrás identificadas no exemplo atual nada têm de especial. A falta de educação lógica ou a desonestidade intelectual parecem estar sempre presentes no discurso pedagógico. Ao longo de décadas, as falácias foram tão constantes que muitos se habituaram a elas até o ponto de as julgarem bons argumentos. Não vou repetir a denúncia do caráter falacioso do mantra dos responsáveis socialistas dos 80% das profissões que, desde os anos 90, iriam desaparecer nos próximos 10 anos, usado para relativizar os cursos orientados para a formação académica que, exatamente, não pretendem formar ninguém profissionalmente (sendo bem mais provável que a especificidade dos Cursos Profissionais os torne obsoletos, como já ocorreu em muitos casos passados, a curto prazo); nem a linguagem das competências transversais que foi, por sua vez, desenvolvida para atacar as disciplinas tradicionais, quando são exatamente essas disciplinas (Matemática, Português, Filosofia, Inglês, etc.) que permitem aprendizagens que serão sempre úteis em qualquer profissão; nem as sistemáticas estatísticas relativas ao ensino tradicional, descredibilizadoras do mesmo, sem nenhuns números, nem sequer martelados, sobre as experiências educativas que defendem, apenas as envolvendo em declarações holísticas, sem se admitir o mais ínfimo dos escrutínios reservados apenas para o ensino tradicional; nem a pretensão de aplicar a massas de alunos modelos de diferenciação desenvolvidos para pequenos grupos, etc. Tudo isto é do domínio do mesquinho que será esquecido sem deixar rasto. Mesmo estes argumentos que se prolongam durante décadas só parecem persistentes para a curta vida humana, acabando por vir a ser descartados como inutilidades absurdas e nocivas, como ocorreu com os precursores destas correntes do início do séc. XX. São citados pelos realinhados, mas sem nunca explicar porque é que algo tão perfeito foi desprezado. A verdade é que, ontem como hoje, os revolucionários ideologicamente motivados estão tão convencidos da verdade absoluta do que defendem que se consideram justificados para aldrabar todos os dados e olhar de viés para as mais óbvias objeções, sem nunca seriamente as considerar. Por isso, aliás, criaram as mistificações recentes à custa da falta de professores para os grupos disciplinares. Por isso, também, desenvolvem todo um discurso que visa acabar de vez com o saber disciplinar. Por isso, tentam, também, tornar obsoletos os professores pela sua substituição, cada vez maior, por formadores, dinamizadores e meios digitais.

É adequado denominar pedagogos aos profissionais que estes partidários defendem. O pedagogo, na Antiguidade clássica grega, não era o professor, mas sim o escravo que levava as crianças e que procurava que elas se comportassem devidamente. Esse é o papel que se mantém reservado, segundo estas gentes, para o professor, acompanhar e vigiar as crianças, ocupar-lhes o tempo na melhor das hipóteses. O professor era o didáskalos que procurava transmitir da melhor forma o que era considerado saber na sua época. Ora, das mais diversas formas, os responsáveis governamentais e os pedagogos fazem de tudo para relativizar o saber, de forma a considerar qualquer opinião saber, ficando, depois, muito surpreendidos com os Qanon deste tempo que ameaçam diretamente os seus efetivos criadores, visto terem transformado todo o disparate em opinião legítima que não se podia qualificar de errada e ignorante. Sempre houve maluquinhos, a diferença da nossa época é a de terem sido legitimados pelas instituições supostamente educativas. Ora, se já é discutível que se possa aceitar tudo no presente para não frustrar as crianças, para não macular a felicidade imediata que estes pedagogos consideram que é a única coisa por que devem zelar numa escola, para lisonjear as famílias todas satisfeitas com o êxito do seu rebento, quando se tenta pensar na finalidade de uma instituição assim para a sociedade, sobretudo para o seu futuro, a gravidade do que se está a fazer é verdadeiramente avassaladora. Tal processo é solidário do processo de mecanização mental que eu trato noutro artigo ainda deixado incompleto, que prepara o futuro triunfo da inteligência artificial (não aquela que por aí se propagandeia e que é apenas o desenvolvimento da anterior estupidez artificial). O objetivo que resulta dos atos destes pedagogos e não das suas palavras enganosas é muito simplesmente alienar o ser humano mediano do seu saber, do seu fazer e da sua vontade. Pretende-se ensinar empatia e pensamento positivo para criar um ser conformado e disposto a aceitar tudo, ou seja, sem vontade. Fala-se de pensamento crítico, mas o que defendem está nos antípodas da filosofia e é completamente contrário ao debate. O saber é sistematicamente considerado dispensável e defendem-se apenas as competências transversais, uma espécie de florescimento indeterminado de capacidades holísticas, o aprender a aprender nem se sabe bem o quê, pois se deve estar aberto às possibilidades futuras. Finalmente, entregar-se-á todo o fazer às máquinas e à inteligência artificial, realizando plenamente o sonho do preguiçoso e cancelando definitivamente o humano, o humano que sempre foi o homo faber, o animal cuja essência se realizava por aquilo mesmo que fazia. E para toda esta aniquilação do homem enquanto homem não faltam demagogos a conduzirem a massa para o abismo. Teme-se o colapso ambiental, mas eu pergunto-me, sobreviver, para quê? Para uma distopia técnica em que o homem já não terá lugar a não ser como um ser amorfo ou, o que até é preferível, um escravo?

            Os demagogos, sejam eles pedagogos ou não, apresentam essa distopia como a utopia que realizará plenamente a história humana, visto permitir aos homens realizarem plenamente a sua criatividade. Ora, em todos os homens se pode desenvolver a capacidade de fazer, ou seja, de trabalhar, mas é sempre uma ínfima minoria que se mostra criativa. O que se vê na vasta população que, nos países privilegiados, já nada é obrigada a fazer, é o cultivo de uma indolência brutal de que os meios digitais bem mostram a natureza, sobretudo, mas não só, nas redes sociais. Os defensores dos amanhãs que cantam sempre foram precursores não de sonhos, mas de horríveis pesadelos. Todos os maiores crimes já cometidos pela humanidade e contra a humanidade foram cometidos devido a uma promessa de um futuro, aquém ou além, radiante. Mesmo o atual colapso ambiental, resulta do sonho simultaneamente democrático e industrial, da satisfação sem limites dos desejos de todos. O utilitarismo surgiu como a filosofia adequada a esse sonho, o da maximização do prazer e da eliminação da dor, e hoje todo o discurso político, consciente ou inconscientemente, é dominado por esse ideal. O que torna impossível escapar ao colapso ambiental é que todos tentam tornar o futuro sustentável sem prescindir dos seus níveis de consumo ou até, no caso dos países ditos em vias de desenvolvimento, aumentando tais níveis. Com toda a tendência a aldrabar todos os dados e a falsear todas as estatísticas, arranja-se sempre maneira de fazer um discurso de aparência onde se diga estar a fazer exatamente o contrário daquilo que se faz. Portugal ou a própria Europa diz-se defensora do meio ambiente, recorrendo à sujidade dos outros. Os jovens consomem sem controlo e vão para manifestações culpar os mais velhos do estado do planeta. Na verdade, são ainda mais estimulados a consumir pelos adultos e seus programas de intercâmbios, de digitalização e de ludicidade. Os defensores da paz são, quase invariavelmente, promotores da guerra. Os meios de comunicação que se declaram fidedignos são máquinas de propaganda que constantemente transmitem juízos de valor como notícias. As escolas tornam-se, cada vez mais, instituições certificadoras de saberes inexistentes, de atitudes conformistas em vez do espírito crítico e da autonomia que dizem promover, de habituação à indolência que tornam os nossos jovens cada vez mais incapazes de resistirem às exigências de um mercado de trabalho. Um país clientelar do Estado, seja sob governos de esquerda, seja sob governos de direita (apenas de modos diferentes), enche a boca constantemente com o empreendedorismo – de facto, cheguei a ver políticos que fizeram toda a sua carreira no Estado a defender que era melhor a precariedade da construção do currículo na iniciativa privada. Aquilo que se declara é constantemente negado pelas ações e a denúncia das ações é constantemente negada por linguagem eufemística e/ou mistificadora. A mentira só não tem plenos direitos de cidadania porque não agrada aos poderes toda a mentira, mas apenas aquela que camufla aquilo que estão a fazer. De resto, não se pode dizer nada de forma clara, tudo é tratado de viés, as realidades não são chamadas pelos nomes, o que ocorre é sempre camuflado por um qualquer volteio retórico considerado aceitável. A honestidade intelectual é tratada como um crime e a malícia é considerada manifestação de inteligência emotiva.

            É verdade que existem tendências por toda a Europa que infletiram o rumo no âmbito da educação. Não creio que se enraízem longamente devido à tendência democrática para a lisonja e o facilitismo, para nem falar da alienação artificial. Porém, a questão que será sempre a central enquanto ainda existirem seres humanos é se o saber ou o conhecimento são ou não negligenciáveis na escola. Na verdade, se forem negligenciáveis, não se percebe para quê os rios de dinheiro que se gastam no sistema educativo. Pior ainda, criar-se-á sempre tensão enquanto se mantiver o recrutamento docente ancorado nos saberes académicos, os tais ligados às disciplinas que os demagogos dizem que são irrelevantes e onde se sediam os diversos saberes. Enquanto esta for a sua origem, haverá sempre docentes reacionários que resistirão na medida das suas possibilidades ao aviltamento a que é sujeito o saber que os formou. É verdade que já há modelos de certificação que premeiam financeiramente quem não se predispuser a aprender mais nada, ao passo que nada é dado a quem ainda busca aprender algo. Mas, talvez com medo das repercussões políticas, insistem em manter um recrutamento académico que cada vez mais desprezam, ao menos, para os outros, os jovens que não têm acesso a escolas de excelência. Mas, se o objetivo for apenas uma qualquer forma de animação de algum tipo para ocupar os meninos e fazê-los produzir algo sem qualquer exigência objetiva, para quê pagar a tantos docentes formados nos mais diversos saberes? De facto, para quê professores se 2+2 pode ser 3, 5 ou 22? Para quê materiais didáticos se tudo pode ser tudo, se a lua pode ser uma estrela, queijo ou um portal interdimensional? E mesmo a própria fantasia, não bastará sonhá-la, visto que tão-pouco farão sentido regras de gramática e escrever histórias fantásticas dá trabalho demais, acabando por ser pouco inclusivo? Aliás, como poderão os outros entender a história, se cada qual desenvolver as suas próprias regras? Os sofistas de hoje são os mesmos de sempre, visam o sucesso fácil e pouco se importam com o bem comum, apenas em fazer vingar como bem comum o seu relativismo e a sua arbitrariedade. Dispensar como objetivo último da escola o saber é retirar-lhe a razão da sua existência. Poderá continuar a chamar-se escola, mas não se distinguirá da creche e do lar. E se se dispensasse assim o saber por toda a parte, seria a sociedade que acabaria por colapsar. Mas não se dispensa em toda a parte. Em breve, a escola pública e uma parte das escolas privadas serão apenas para as grandes massas. Aqueles que não tiverem grandes ambições para os filhos, não os querendo, apenas, sujeitos a ambientes de exclusão social, procurarão algumas situações intermédias. Mas, além disso, manter-se-á um ensino privado de excelência que assegurará a quase totalidade dos futuros quadros que dominarão a sociedade. Isto nem sequer é futurismo, é o que já está a acontecer, promovido pela escola da inclusividade presente e da exclusão futura.

            O mundo nunca foi o simples sítio onde se encontram as coisas. O cosmos grego era uma ordem instaurada pelos deuses em oposição ao caos. No mundo judaico-cristão, sempre viram teólogos e filósofos o sinal de um desígnio devido à ordem que se manifestava no todo e na parte (por exemplo, na orgânica dos seres vivos). Vivendo, hoje, sob o signo da morte de Deus, tornou-se evidente que a ordem cósmica sempre foi uma arquitetura da própria mente humana. Essa arquitetura é a do pensamento, mas ganha expressão, eficácia e partilha na linguagem. Aliás, não há pensamento sem linguagem. O pensamento estrutura-se pela lógica, várias lógicas, conforme as limitações do seu estudo. Essa lógica fundamenta a matemática, tornando possível o estudo do real; desdobra-se em aplicações, como a gramática, todas as gramáticas, qualquer gramática; e como a metodologia, a lógica aplicada que torna possíveis as diversas disciplinas. Com as ferramentas matemáticas, linguísticas e metodológicas, toda a arquitetura do mundo se orienta por essa filha da lógica, tantas vezes considerada por tantos bastarda, a causalidade, que não admite, logo a nível formal, que algo possa surgir do nada, mesmo que só tortuosamente ou nunca, sempre sem dispensar apoio empírico, se possa descobrir de que, concretamente, proveio isto ou aquilo. Nada se pode considerar explicado se não se conseguir determinar uma razão, um motivo, uma causa. E mesmo que não se encontre alguma causa, nunca se concluirá a sua não existência, mas apenas a própria ignorância, seja fenoménica, seja numénica, seja mesmo existencialmente, por muito que se tenha iludido uma geração com a afirmação contrária. Pela causalidade, por todas as ordens causais, se entretece o mundo. Sem causalidade, não se tem qualquer mundo, mas o caos. E o conhecimento a cada momento possível das múltiplas causalidades identificáveis, conhecimento transitório e sempre limitado pelas condições cognitivas da subjetividade, é a linha através da qual se tece, paulatinamente, o mundo. Quem o tece poderá ter uma espontaneidade que não se deixa explicar desta forma, a não ser de forma imprópria, inadequada. Há um mistério na raiz deste mesmo entretecer que só se pretende apreender por formas ilusórias e manipuladoras. Mas esse mistério não poderá sequer mostrar-se a florescer se não lhe for permitido sequer entretecer o mundo.

As disciplinas são, de facto, arrumações de conveniência. Permitem, porém, fazer chegar às consciências as linhas que lhes permitem tecer mundos. A conveniência tão pouco é arbitrária. Ninguém pode saber tudo de tudo. Ninguém pode saber tudo de tudo, sobretudo numa determinação cada vez mais específica de cada uma das sequências causais e de cada perspetiva de as conceber. Assim, a arrumação artificial das disciplinas, se pode ser um obstáculo à criação de um verdadeiro mundo, devido à rigidez e unilateralidade com que é encarado cada saber, devido à redução à operatividade técnica, devido ao dogmatismo que facilmente habita cada tradição, é uma forma bem adequada de fornecer linhas e tijolos e argamassa e terreno e capacidades para erguer a arquitetura da consciência que torna possível o mundo. O relativismo pedagógico apenas dissolve materiais e capacidades até tornar o sujeito incapaz da mais ínfima construção. Receitas associadas de conformismo, o condicionamento da empatia e da positividade, apenas garantem mais completamente essa dissolução numa entidade amorfa, apenas capaz de reagir de formas estereotipadas ao ambiente. Claro que a maioria dos seres humanos acaba sempre por ter este destino, a inclusão na massa indiferenciada das competências transversais. Mas não só, pelo ensino disciplinar, pôde ter consciência de poder existir algo mais, como esse ensino lhe dá a efetiva possibilidade de ser mais. Dessa possibilidade depende a própria capacidade das sociedades responderem aos mais diversos desafios, possibilidade propiciada por poucos seres humanos, mas de que beneficiam muitos, talvez todos. Ao se cancelar tal possibilidade para vastas classes sociais, cancela-se a possibilidade mais especificamente humana das possibilidades humanas, a possibilidade de criar mundo – não para todos, como já salientei, elites socioeconómicas e mesmo políticas garantem todas as possibilidades aos seus rebentos – mas para aqueles que já à partida tinham condições mais difíceis, assim tornadas quase intransponíveis.

            A construção pelo próprio aluno da sua própria aprendizagem não é um objetivo futurista a atingir, mas uma inevitabilidade de qualquer aprendizagem. Não há aprendizagem que não seja autodidata, por muito que muitos professores promovam as mais diversas e criativas oportunidades de aprendizagem. É isso, aliás, que os melhores professores fazem, seja através de aulas de questionação provocatória, mesmo que tradicionais, seja através de debate que busque a sustentação argumentativa das teses, seja através da organização de trabalhos de projeto, seja através da dinamização de atividades em clubes, seja através da organização dos mais diversos eventos, etc. – os docentes procuram assim criar condições para o florescimento da pessoa a partir da gente indiferenciada, a gente dos preconceitos que toda a gente tem, das banalidades que toda a gente diz, dos comportamentos estereotipados que toda a gente segue, do ostensivo copianço que se parte do princípio que toda a gente faz. Porquê e para quê? Porque só a pessoa permite encontrar novas respostas e não o mero eco do ambiente social. Para que o mundo seja fecundado de novo sentido capaz de superar o caos que as gentes espalham pelo planeta. O mundo precisa de ser renovado e recriado porque a mensagem do passado se mostra incapaz de o manter mundo, visto ser perpetuada apenas sob as formas anquilosadas, unilaterais e acéfalas da gente que apenas se mostra capaz de seguir pouco importa ao certo o quê. Para essa gente, incapaz de criar, de dizer, de pensar, a não ser reproduzindo de forma deformada e estulta o já dito, é também fundamental o que as novas pessoas possam trazer, mesmo que, quase invariavelmente, sacrifiquem esses criadores sagrados à imolação pelos coletivos e à profanação posterior da sua apropriação desfigurada pelas gentes. Ora, travestida de construção pelo aluno do seu próprio saber, aquilo que os pedagogos e comissários promovem, é a reprodução do caos das gentes, cancelando qualquer possibilidade de escrutínio do que fazem, hiperbolizando os produtos de copy/paste, sacrificando a diferença individual ao serviço ao coletivo para garantir pseudoresultados a quem nada sabe ou quer saber, apresentando como espírito cooperativo o trabalho de uns para a indolência de outros e obrigando a uma constante adulação da ignorância, do desleixo e da completa ausência de verdadeira criatividade. Uma tal glorificação da mediocridade nos seus piores aspetos só pode contribuir para a deterioração e decadência social, para lá da já referida estratificação cultural que redunda, rapidamente, em estratificação económica e social, ainda mais extremada que aquela que apenas reproduz.

Pelo contrário, um ensino sólido que forneça modelos mais consistentes para as gentes imitarem, aquilo afinal que acabam sempre por fazer, não só torna os indivíduos capazes de um serviço profícuo à sociedade, como fornece uma plataforma de sentido suscetível de ser criticada e superada, no florescimento antagónico da pessoa. O sistema educativo deve procurar garantir a transmissão do saber consolidado para todos e estar sempre aberto para a possibilidade do florescimento raro e minoritário da individualidade, mesmo nos meios excluídos cultural, social e economicamente. E ele ocorre. Mesmo neste pórtico do sistema educativo entre um modelo de saber e um modelo de bem-estar imediato que já não cumpre qualquer função quer académica, quer técnica, quer social, ainda continua a haver alunos que manifestam a sua criatividade individual de formas verdadeiramente surpreendentes. São uma minoria, mesmo em turmas com elevados níveis de desempenho, e ainda são mais ínfima minoria no conjunto do sistema, mas é importante que não sejam esquecidos ou castrados, como tantas vezes acontece, quer pela reprodução tradicional do saber, quer pela defendida, atualmente, reprodução do caos das gentes. Poderá parecer um objetivo secundário visto só ser concretizado por alguns, mas, na verdade, não deveria ser perdido de vista pelo sistema, até porque um sistema que não seja castrador da individualidade é um sistema que está preparado para o florescimento da individualidade de qualquer um – e que recusa que tal possibilidade seja restringida aos meios cultural, social e economicamente privilegiados. Um sistema que nivela por baixo, que não avalia rigorosamente as aprendizagens, que força os professores a adotar práticas fraudulentas para não serem humilhados com anterior ou posterior ameaça e intimidação, que se satisfaz com a produção de qualquer porcaria e valoriza ou até sobrevaloriza declarações objetivamente erradas, que declara aos sete ventos que todos podem aprender tudo por não exigir a ninguém que saiba coisa alguma, que desvaloriza a herança dos conhecimentos consolidados, trocando-os por declarações holísticas que tudo e nada podem significar, que exige justificações sistemáticas e exaustivas do trabalho sério, enquanto toma decisões arbitrárias sem a menor justificação, ofendendo não só o sentimento de justiça, mas a própria lei, que não cria o menor problema a quem não ensina coisa nenhuma por apresentar um sucesso que não corresponde a nada, mas que persegue sem descanso quem cumpre o seu dever, que equipara tudo e, por isso, dissolve no oceano da nulidade cada contributo discente realmente individual, que certifica a ignorância e a equipara ao saber, que castra o desenvolvimento de um saber verdadeiramente sustentado, mostrando, incessantemente, a cada aluno que não vale a pena se esforçar, pois os seus esforços trarão o mesmo resultado que a ausência total dos mesmos, é um sistema que condenará a sociedade à regressão, incapaz de confiar numa ponte que seja feita por quem proviria de um tal sistema, incapaz de investir numa empresa promovida pelas vítimas da desresponsabilização e estímulo à apatia característicos do caos que passaria por sistema, incapaz de dar crédito aos técnicos que lhe comunicariam uma solução política, incapaz de aderir a algo a não ser por inércia e ausência de alternativa.

Esse sistema, na sua forma final, ainda não existe, fundamentalmente devido à resistência dos próprios docentes, muitas vezes até por maus motivos, por inércia, preconceitos e até preguiça, mas que têm sido a garantia que a distopia defendida acriticamente por pedagogos, comissários e carreiristas não se realiza plenamente. Por essa ou outra resistência, também os meios do Ensino Superior impediram que se acabassem com os exames nacionais, contra a vontade inequívoca do Costa idolatrado pelos pedagogos. Naturalmente, essa extinção seria a condição necessária para que não se efetuasse o menor escrutínio, para lá de tornar prática corrente os sistemas de favorecimento no acesso ao Ensino Superior (mais generalizados do que os que já existem). Assim, a falsificação sistemática de todos os resultados poderia ocorrer sem que ninguém desse por isso e sem que os políticos tivessem que assumir o ónus de acabar com as reprovações, a única coisa que já há muito tempo seria decente e justo fazer, dada a intencionalidade manifesta e constante das chamadas políticas educativas. Dizem os nossos comissários que, a pouco e pouco, se vão eliminando os resistentes e se vai conseguindo que cada vez mais gente esteja quase lá, presumo que na luz. Quando isso acontecer, não só aqui, mas por toda a parte, a única coisa que será garantida será, a médio prazo, o aceleramento da decadência das sociedades ocidentais, cada vez mais obsoletas e incapazes de competir com outros blocos, pois não chegará a educação das elites para fazer face à concorrência. A razão porque tantos docentes ainda resistem e protegem o seu saber das investidas é um sentido de justiça elementar e a consciência que a realização dos objetivos educativos é diacrónica e não sincrónica, não está reduzida à satisfação imediata, mas pretende criar condições para a realização de vidas. E esses docentes que zelam pelo saber como se fora um tesouro têm imensamente mais razão que os aduladores de massas, que os pedagogos dos amanhãs que cantam e que os comissários que venderam o saber pela efetivação, desfalcando os grupos disciplinares de profissionais. Nem refiro os carreiristas porque esses seguirão sempre quem detiver o poder, seja ele qual for. E assim esses docentes vão garantindo que haja uma nesga de possibilidade para a inclusividade atual não resultar sempre na exclusão futura, garantida a uma maioria cada vez maior. Estes pedagogos e comissários ainda não mataram, por completo, a possibilidade de pessoa nos meios menos favorecidos. Ainda não conseguiram persuadir todos que as suas indiscutíveis boas práticas sejam, de facto, boas, até por parecer suspeito a sua recusa de qualquer debate e aposta exclusiva na doutrinação. Ainda não conseguiram condicionar todos para não verem os resultados nefastos que cada uma das suas medidas provoca imediatamente. É preciso uma verdadeira disciplina marcial de desonestidade para conseguir interpretar sempre os resultados mais negativos como sucessos das boas práticas. Ainda não conseguiram generalizar nenhuma das novilínguas sucessivas para tentar alcançar o objetivo de uma escola inteiramente conformada com os seus modelos, de uma escola que não consegue pensar qualquer crítica àquilo que defendem, de uma escola que já não encontra palavras que se considerem adequadas para dizer, tão simplesmente, “o rei vai nu”.[3] Ainda não. E nada há com que mais sonhem do que cancelar a petulância inocente da criança dessa história…



[1] E para que é que se estaria a desgastar um aluno com horas adicionais, se é suposto toda a gente ser aprovada no final, em qualquer caso?

[2] Não sei se a intenção dos autores do filme era a mesma dos nossos comissários políticos. Tratava-se de uma criança cega de nascença que era forçada a dizer o que eram as cores, sem qualquer apoio alheio.

[3] Tendo ficado recentemente surpreendido com o desconhecimento da história por parte dos alunos, devo mencionar que esta é uma referência a um conto de Hans Christian Andersen.