11.11.22

O mundial do Qatar e a noção de pessoa

            Uma das teses polémicas defendidas no livro que recentemente publiquei sob outra assinatura, ao menos numa forma preliminar (https://www.amazon.es/-/pt/dp/B0BHKGL3LP?psc=1&smid=A1L8AUWF5E7W59&ref_=chk_typ_imgToDp&fbclid=IwAR1gyjawTdASLaJY7Hqmk3VRbcVDeNfOmr2wNRYvVxvjRQXCvgWYLiCwhnA), é a de que, se a pessoa contém uma dignidade especial (e, no livro, são examinadas diversas possibilidades para fundamentação deste pressuposto constante da nossa linguagem) que a torna merecedora de uma consideração especial, fazendo, por exemplo, com que as pessoas não se considerem meros animais, mas, seguindo a tradição aristotélica, seres racionais, então, mesmo que se pudessem tornar pessoas, os seres humanos, na sua imensa maioria, não são, de facto, pessoas. Tem se tornado habitual, nomeadamente no âmbito das discussões sobre o aborto e sobre a consideração ética relativa a outras espécies animais, sublinhar que a mera potencialidade abstrata da racionalidade, se não efetivada, não constitui condição suficiente para que se possa considerar algo como pessoa. Tal restrição mantém-se mesmo quando se buscam conceções mais abrangentes, como as relativas à temporalidade (memória/projeção), que até conseguem incluir certos outros animais, mas não os seres humanos antes postos em causa. Deixo a consideração mais detalhada da tese para o livro. Aqui, só pretendo considerar a tradicional conceção da racionalidade, aquela que faz muitos continuarem a sustentar uma espécie de primado ético do humano em relação a outros animais. Ora, entre os vários projetos de abordagem que tive de cancelar, dado o porte que o livro estava a tomar, tenho pena de não ter desenvolvido mais a consideração do dito mundo do futebol, um âmbito onde, exatamente, a mais irracional das entidades desenvolve toda uma articulação de explicações causais como seria de esperar na projeção do mundo pelo mais racional dos seres, sem que isso tenha qualquer efeito na maior racionalidade de toda a sua restante vida. De facto, isso até mostra que a racionalidade pode ser efetivada de um modo de tal forma distorcido que serve para uma das mais globais formas de irracionalidade. Tal como a racionalidade técnica da gigantesca ordenação do extermínio nazi não pode permitir a sustentação de uma dignidade superior, visto estar ao serviço da mais absoluta irracionalidade, também a racionalidade unilateral referida não o devia permitir.

            Muitos dos entusiastas de futebol, figuram entre os envolvidos nos recentes debates sobre a guerra da Ucrânia. Disse debates, mas, na verdade, não são debates. Quase nenhum dos envolvidos é capaz de reconhecer a mínima razão adversa e, no melhor dos casos, resume-se a apresentar unilateralmente as supostas razões da sua propaganda. Não vou entrar aqui nessa discussão, na qual muitas irracionalidades haveria a apontar de parte a parte, porque fazê-lo seria uma perda de tempo. É absolutamente inútil argumentar num ambiente em que ambas as partes estão absolutamente convencidas de estar a realizar uma cruzada do bem angélico contra o mal demoníaco. Porém, algo que ambos os lados gostam de fazer sobressair são as ofensas aos direitos humanos, as atrocidades cometidas sempre só pelo outro lado, em relação às quais fazem todo o tipo de proclamações tonitruantes, incluindo o metafórico rasgar de vestes.

            Ora, no Catar, não há lados, cada qual convencido das supostas razões que os suportam. Num ambiente de absoluta ostentação de riqueza, procurou-se realizar tudo com o menor gasto possível com aqueles que garantiram o evento,[1] para poder assegurar posteriormente os maiores gastos possíveis com o espetáculo. Trata-se de uma nova versão da racionalidade técnica e económica ao serviço da completa irracionalidade. Sabe-se, há muito, por relato de apenas alguns dos países de onde são oriundos os trabalhadores imigrantes, que muitos milhares de trabalhadores morreram vítimas de condições inomináveis. É possível que, se alguma vez for possível a contabilidade total, se chegue aos cinco dígitos. Volto a dizer: isso é sabido há muito. A FIFA que deixou tudo acontecer e, de certo modo, até provocou que acontecesse, procura fazer uma limpeza na imagem, só agora se lembrando de algumas fiscalizações e investigações. Até já reconheceu 3 mortes, o que é simplesmente hilariante. De resto, está em marcha a campanha de lavagem da imagem (quem já se lembra das suspeitas de corrupção, tal como aconteceu em edições anteriores?) que tenta mostrar este evento como exatamente o contrário do que é, uma apoteose de inclusividade global. Algumas seleções de consciência pesada preparavam ações simbólicas ou faziam exigências de última hora, mas até isso a FIFA veio proibir, com o argumento de não se misturar política com o futebol, coisa que a própria FIFA tem feito constantemente sempre que julga ter alguma coisa a ganhar com isso. Porém, as seleções que preparavam esses protestos são piores que seleções como a nossa, cuja desfaçatez é completa. São apenas colaboracionistas que queriam disfarçar a sua colaboração, quando só o boicote seria admissível. Em certos casos, aliás, só se lembraram das ofensas aos direitos humanos que não implicam e/ou implicaram a morte – que também são muitas. As televisões proclamam o sucesso de terem conseguido a transmissão de tantos jogos. As marcas esfregam as mãos de contentes com o negócio garantido com tantos milhares de mortes. E já tudo se concentra nas peripécias da disputa do troféu.

Pessoalmente, eu recuso-me a ver um único desses jogos, mas sei que o efeito dessa decisão, mesmo que acompanhada por muitos outros que já a tomaram, será absolutamente nulo. A esmagadora maioria daqueles defensores dos direitos humanos só em guerras televisionadas não hesitará um segundo em seguir o campeonato. Mas cada um dos desconhecidos mortos no Catar só morreu para o deleite futuro desses espetadores. Cada qual dos espetadores será um cúmplice em gigantescos crimes contra seres humanos e, desta vez, não existem argumentos, mesmo que muito rebuscados, para defender a legitimidade do Catar. Pouco importa, regressamos ao tempo em que a carne do trabalho estava barata, sobretudo se for de condições sociais e nacionalidades desprezadas, e se podia realizar grandes obras à custa de dezenas de milhar de vidas. Foi o que aconteceu, por exemplo, nas duas tentativas de construção do canal do Panamá e em muitos outros empreendimentos dessa época. Mas aí, ainda se podia evocar um objetivo utilitário – neste caso, a utilidade resume-se ao deleite de uma massa privilegiada que só se preocupa com direitos humanos se isso não interferir com o seu prazer. Nada há que possa minorar a vergonha da colaboração. E, porém, muitos dos rasgadores de vestes nem a sentirão enquanto se envolvem em entusiásticas camisolas, bandeiras e cachecóis. Por muitas vozes que se juntem no protesto, tenho a certeza que este Mundial será o que terá maior sucesso financeiro de todos os tempos e, assim, quando alguém vier defender que, na própria atualidade, a generalidade dos homens são pessoas por serem seres racionais, só terei como resposta o riso. QED.



[1] Fala-se muito, a este propósito, de trabalho escravo. Trata-se de uma velha distorção tipicamente burguesa das relações de produção envolvidas. No início da revolução industrial, a burguesia promoveu, sob o manto da liberdade, a ideia da dignidade superior do trabalho assalariado em relação ao trabalho escravo ou servil. Na verdade, o trabalho assalariado pode ser a pior forma de exploração do homem pelo homem quando não existe a menor imposição de qualquer responsabilidade social e apenas o mercado dita o preço e as condições do trabalho.


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