O mundial do Qatar e a noção de pessoa
Uma das teses polémicas defendidas no livro que
recentemente publiquei sob outra assinatura, ao menos numa forma preliminar (https://www.amazon.es/-/pt/dp/B0BHKGL3LP?psc=1&smid=A1L8AUWF5E7W59&ref_=chk_typ_imgToDp&fbclid=IwAR1gyjawTdASLaJY7Hqmk3VRbcVDeNfOmr2wNRYvVxvjRQXCvgWYLiCwhnA),
é a de que, se a pessoa contém uma dignidade especial (e, no livro, são
examinadas diversas possibilidades para fundamentação deste pressuposto
constante da nossa linguagem) que a torna merecedora de uma consideração
especial, fazendo, por exemplo, com que as pessoas não se considerem meros
animais, mas, seguindo a tradição aristotélica, seres racionais, então, mesmo
que se pudessem tornar pessoas, os seres humanos, na sua imensa maioria, não
são, de facto, pessoas. Tem se tornado habitual, nomeadamente no âmbito das
discussões sobre o aborto e sobre a consideração ética relativa a outras
espécies animais, sublinhar que a mera potencialidade abstrata da
racionalidade, se não efetivada, não constitui condição suficiente para que se
possa considerar algo como pessoa. Tal restrição mantém-se mesmo quando se buscam
conceções mais abrangentes, como as relativas à temporalidade
(memória/projeção), que até conseguem incluir certos outros animais, mas não os
seres humanos antes postos em causa. Deixo a consideração mais detalhada da
tese para o livro. Aqui, só pretendo considerar a tradicional conceção da racionalidade,
aquela que faz muitos continuarem a sustentar uma espécie de primado ético do
humano em relação a outros animais. Ora, entre os vários projetos de abordagem
que tive de cancelar, dado o porte que o livro estava a tomar, tenho pena de
não ter desenvolvido mais a consideração do dito mundo do futebol, um âmbito onde,
exatamente, a mais irracional das entidades desenvolve toda uma articulação de
explicações causais como seria de esperar na projeção do mundo pelo mais
racional dos seres, sem que isso tenha qualquer efeito na maior racionalidade
de toda a sua restante vida. De facto, isso até mostra que a racionalidade pode
ser efetivada de um modo de tal forma distorcido que serve para uma das mais
globais formas de irracionalidade. Tal como a racionalidade técnica da
gigantesca ordenação do extermínio nazi não pode permitir a sustentação de uma
dignidade superior, visto estar ao serviço da mais absoluta irracionalidade,
também a racionalidade unilateral referida não o devia permitir.
Muitos dos entusiastas de futebol, figuram entre os
envolvidos nos recentes debates sobre a guerra da Ucrânia. Disse debates, mas,
na verdade, não são debates. Quase nenhum dos envolvidos é capaz de reconhecer
a mínima razão adversa e, no melhor dos casos, resume-se a apresentar
unilateralmente as supostas razões da sua propaganda. Não vou entrar aqui nessa
discussão, na qual muitas irracionalidades haveria a apontar de parte a parte, porque
fazê-lo seria uma perda de tempo. É absolutamente inútil argumentar num
ambiente em que ambas as partes estão absolutamente convencidas de estar a
realizar uma cruzada do bem angélico contra o mal demoníaco. Porém, algo que
ambos os lados gostam de fazer sobressair são as ofensas aos direitos humanos,
as atrocidades cometidas sempre só pelo outro lado, em relação às quais fazem
todo o tipo de proclamações tonitruantes, incluindo o metafórico rasgar de
vestes.
Ora, no Catar, não há lados, cada qual convencido das
supostas razões que os suportam. Num ambiente de absoluta ostentação de riqueza,
procurou-se realizar tudo com o menor gasto possível com aqueles que garantiram
o evento,[1] para poder assegurar posteriormente
os maiores gastos possíveis com o espetáculo. Trata-se de uma nova versão da
racionalidade técnica e económica ao serviço da completa irracionalidade. Sabe-se,
há muito, por relato de apenas alguns dos países de onde são oriundos os
trabalhadores imigrantes, que muitos milhares de trabalhadores morreram vítimas
de condições inomináveis. É possível que, se alguma vez for possível a
contabilidade total, se chegue aos cinco dígitos. Volto a dizer: isso é sabido
há muito. A FIFA que deixou tudo acontecer e, de certo modo, até provocou que
acontecesse, procura fazer uma limpeza na imagem, só agora se lembrando de
algumas fiscalizações e investigações. Até já reconheceu 3 mortes, o que é
simplesmente hilariante. De resto, está em marcha a campanha de lavagem da
imagem (quem já se lembra das suspeitas de corrupção, tal como aconteceu em
edições anteriores?) que tenta mostrar este evento como exatamente o contrário
do que é, uma apoteose de inclusividade global. Algumas seleções de consciência
pesada preparavam ações simbólicas ou faziam exigências de última hora, mas até
isso a FIFA veio proibir, com o argumento de não se misturar política com o
futebol, coisa que a própria FIFA tem feito constantemente sempre que julga ter
alguma coisa a ganhar com isso. Porém, as seleções que preparavam esses
protestos são piores que seleções como a nossa, cuja desfaçatez é completa. São
apenas colaboracionistas que queriam disfarçar a sua colaboração, quando só o
boicote seria admissível. Em certos casos, aliás, só se lembraram das ofensas
aos direitos humanos que não implicam e/ou implicaram a morte – que também são
muitas. As televisões proclamam o sucesso de terem conseguido a transmissão de
tantos jogos. As marcas esfregam as mãos de contentes com o negócio garantido
com tantos milhares de mortes. E já tudo se concentra nas peripécias da disputa
do troféu.
Pessoalmente,
eu recuso-me a ver um único desses jogos, mas sei que o efeito dessa decisão,
mesmo que acompanhada por muitos outros que já a tomaram, será absolutamente
nulo. A esmagadora maioria daqueles defensores dos direitos humanos só em
guerras televisionadas não hesitará um segundo em seguir o campeonato. Mas cada
um dos desconhecidos mortos no Catar só morreu para o deleite futuro desses
espetadores. Cada qual dos espetadores será um cúmplice em gigantescos crimes
contra seres humanos e, desta vez, não existem argumentos, mesmo que muito
rebuscados, para defender a legitimidade do Catar. Pouco importa, regressamos
ao tempo em que a carne do trabalho estava barata, sobretudo se for de
condições sociais e nacionalidades desprezadas, e se podia realizar grandes
obras à custa de dezenas de milhar de vidas. Foi o que aconteceu, por exemplo,
nas duas tentativas de construção do canal do Panamá e em muitos outros
empreendimentos dessa época. Mas aí, ainda se podia evocar um objetivo
utilitário – neste caso, a utilidade resume-se ao deleite de uma massa
privilegiada que só se preocupa com direitos humanos se isso não interferir com
o seu prazer. Nada há que possa minorar a vergonha da colaboração. E, porém,
muitos dos rasgadores de vestes nem a sentirão enquanto se envolvem em entusiásticas
camisolas, bandeiras e cachecóis. Por muitas vozes que se juntem no protesto, tenho
a certeza que este Mundial será o que terá maior sucesso financeiro de todos os
tempos e, assim, quando alguém vier defender que, na própria atualidade, a
generalidade dos homens são pessoas por serem seres racionais, só terei como
resposta o riso. QED.
[1]
Fala-se muito, a este propósito, de trabalho escravo. Trata-se de uma velha distorção tipicamente
burguesa das relações de produção envolvidas. No início da revolução
industrial, a burguesia promoveu, sob o manto da liberdade, a ideia da
dignidade superior do trabalho assalariado em relação ao trabalho escravo ou servil. Na
verdade, o trabalho assalariado pode ser a pior forma de exploração do homem
pelo homem quando não existe a menor imposição de qualquer responsabilidade
social e apenas o mercado dita o preço e as condições do trabalho.