11.11.22

O mundial do Qatar e a noção de pessoa

            Uma das teses polémicas defendidas no livro que recentemente publiquei sob outra assinatura, ao menos numa forma preliminar (https://www.amazon.es/-/pt/dp/B0BHKGL3LP?psc=1&smid=A1L8AUWF5E7W59&ref_=chk_typ_imgToDp&fbclid=IwAR1gyjawTdASLaJY7Hqmk3VRbcVDeNfOmr2wNRYvVxvjRQXCvgWYLiCwhnA), é a de que, se a pessoa contém uma dignidade especial (e, no livro, são examinadas diversas possibilidades para fundamentação deste pressuposto constante da nossa linguagem) que a torna merecedora de uma consideração especial, fazendo, por exemplo, com que as pessoas não se considerem meros animais, mas, seguindo a tradição aristotélica, seres racionais, então, mesmo que se pudessem tornar pessoas, os seres humanos, na sua imensa maioria, não são, de facto, pessoas. Tem se tornado habitual, nomeadamente no âmbito das discussões sobre o aborto e sobre a consideração ética relativa a outras espécies animais, sublinhar que a mera potencialidade abstrata da racionalidade, se não efetivada, não constitui condição suficiente para que se possa considerar algo como pessoa. Tal restrição mantém-se mesmo quando se buscam conceções mais abrangentes, como as relativas à temporalidade (memória/projeção), que até conseguem incluir certos outros animais, mas não os seres humanos antes postos em causa. Deixo a consideração mais detalhada da tese para o livro. Aqui, só pretendo considerar a tradicional conceção da racionalidade, aquela que faz muitos continuarem a sustentar uma espécie de primado ético do humano em relação a outros animais. Ora, entre os vários projetos de abordagem que tive de cancelar, dado o porte que o livro estava a tomar, tenho pena de não ter desenvolvido mais a consideração do dito mundo do futebol, um âmbito onde, exatamente, a mais irracional das entidades desenvolve toda uma articulação de explicações causais como seria de esperar na projeção do mundo pelo mais racional dos seres, sem que isso tenha qualquer efeito na maior racionalidade de toda a sua restante vida. De facto, isso até mostra que a racionalidade pode ser efetivada de um modo de tal forma distorcido que serve para uma das mais globais formas de irracionalidade. Tal como a racionalidade técnica da gigantesca ordenação do extermínio nazi não pode permitir a sustentação de uma dignidade superior, visto estar ao serviço da mais absoluta irracionalidade, também a racionalidade unilateral referida não o devia permitir.

            Muitos dos entusiastas de futebol, figuram entre os envolvidos nos recentes debates sobre a guerra da Ucrânia. Disse debates, mas, na verdade, não são debates. Quase nenhum dos envolvidos é capaz de reconhecer a mínima razão adversa e, no melhor dos casos, resume-se a apresentar unilateralmente as supostas razões da sua propaganda. Não vou entrar aqui nessa discussão, na qual muitas irracionalidades haveria a apontar de parte a parte, porque fazê-lo seria uma perda de tempo. É absolutamente inútil argumentar num ambiente em que ambas as partes estão absolutamente convencidas de estar a realizar uma cruzada do bem angélico contra o mal demoníaco. Porém, algo que ambos os lados gostam de fazer sobressair são as ofensas aos direitos humanos, as atrocidades cometidas sempre só pelo outro lado, em relação às quais fazem todo o tipo de proclamações tonitruantes, incluindo o metafórico rasgar de vestes.

            Ora, no Catar, não há lados, cada qual convencido das supostas razões que os suportam. Num ambiente de absoluta ostentação de riqueza, procurou-se realizar tudo com o menor gasto possível com aqueles que garantiram o evento,[1] para poder assegurar posteriormente os maiores gastos possíveis com o espetáculo. Trata-se de uma nova versão da racionalidade técnica e económica ao serviço da completa irracionalidade. Sabe-se, há muito, por relato de apenas alguns dos países de onde são oriundos os trabalhadores imigrantes, que muitos milhares de trabalhadores morreram vítimas de condições inomináveis. É possível que, se alguma vez for possível a contabilidade total, se chegue aos cinco dígitos. Volto a dizer: isso é sabido há muito. A FIFA que deixou tudo acontecer e, de certo modo, até provocou que acontecesse, procura fazer uma limpeza na imagem, só agora se lembrando de algumas fiscalizações e investigações. Até já reconheceu 3 mortes, o que é simplesmente hilariante. De resto, está em marcha a campanha de lavagem da imagem (quem já se lembra das suspeitas de corrupção, tal como aconteceu em edições anteriores?) que tenta mostrar este evento como exatamente o contrário do que é, uma apoteose de inclusividade global. Algumas seleções de consciência pesada preparavam ações simbólicas ou faziam exigências de última hora, mas até isso a FIFA veio proibir, com o argumento de não se misturar política com o futebol, coisa que a própria FIFA tem feito constantemente sempre que julga ter alguma coisa a ganhar com isso. Porém, as seleções que preparavam esses protestos são piores que seleções como a nossa, cuja desfaçatez é completa. São apenas colaboracionistas que queriam disfarçar a sua colaboração, quando só o boicote seria admissível. Em certos casos, aliás, só se lembraram das ofensas aos direitos humanos que não implicam e/ou implicaram a morte – que também são muitas. As televisões proclamam o sucesso de terem conseguido a transmissão de tantos jogos. As marcas esfregam as mãos de contentes com o negócio garantido com tantos milhares de mortes. E já tudo se concentra nas peripécias da disputa do troféu.

Pessoalmente, eu recuso-me a ver um único desses jogos, mas sei que o efeito dessa decisão, mesmo que acompanhada por muitos outros que já a tomaram, será absolutamente nulo. A esmagadora maioria daqueles defensores dos direitos humanos só em guerras televisionadas não hesitará um segundo em seguir o campeonato. Mas cada um dos desconhecidos mortos no Catar só morreu para o deleite futuro desses espetadores. Cada qual dos espetadores será um cúmplice em gigantescos crimes contra seres humanos e, desta vez, não existem argumentos, mesmo que muito rebuscados, para defender a legitimidade do Catar. Pouco importa, regressamos ao tempo em que a carne do trabalho estava barata, sobretudo se for de condições sociais e nacionalidades desprezadas, e se podia realizar grandes obras à custa de dezenas de milhar de vidas. Foi o que aconteceu, por exemplo, nas duas tentativas de construção do canal do Panamá e em muitos outros empreendimentos dessa época. Mas aí, ainda se podia evocar um objetivo utilitário – neste caso, a utilidade resume-se ao deleite de uma massa privilegiada que só se preocupa com direitos humanos se isso não interferir com o seu prazer. Nada há que possa minorar a vergonha da colaboração. E, porém, muitos dos rasgadores de vestes nem a sentirão enquanto se envolvem em entusiásticas camisolas, bandeiras e cachecóis. Por muitas vozes que se juntem no protesto, tenho a certeza que este Mundial será o que terá maior sucesso financeiro de todos os tempos e, assim, quando alguém vier defender que, na própria atualidade, a generalidade dos homens são pessoas por serem seres racionais, só terei como resposta o riso. QED.



[1] Fala-se muito, a este propósito, de trabalho escravo. Trata-se de uma velha distorção tipicamente burguesa das relações de produção envolvidas. No início da revolução industrial, a burguesia promoveu, sob o manto da liberdade, a ideia da dignidade superior do trabalho assalariado em relação ao trabalho escravo ou servil. Na verdade, o trabalho assalariado pode ser a pior forma de exploração do homem pelo homem quando não existe a menor imposição de qualquer responsabilidade social e apenas o mercado dita o preço e as condições do trabalho.


10.3.22

Os media

             Putin é um criminoso de guerra (e não só), Putin é um autocrata e a sua república é uma fraude, é uma vergonha que alguém não condene uma invasão de um outro país. Na verdade, nada disse de preciso sobre os objetos em causa, mas apenas sobre a forma como me (nos) afetam. Mas, com tais juízos de valor redundantes (só na Rússia e uns poucos países alinhados não o seriam), talvez me seja permitido dizer algumas outras coisas.

            Mantenho-me em algumas redes sociais sobretudo como uma forma de usar os métodos umas vezes da observação participada, outras vezes da observação naturalista. Para um conhecimento mais abrangente do comportamento da fauna, deveria estar em todas, mas a idade já não me permite demasiados esforços, até por isso implicar que teria de integrar, mesmo que passageiramente, os diversos ecossistemas. Mas a pertença à fauna a que estou habituado chega para tirar algumas conclusões. Os órgãos de comunicação social tradicionais gostam de apresentar as redes sociais como uma selva onde não existem garantias de uma informação séria, subordinada a rigorosos critérios jornalísticos. Trata-se de uma estratégia que visa garantir um maior domínio dessas redes. E lá que resulta, resulta. Pessoas supostamente cultas e com alegada capacidade crítica podem passar, por exemplo, de uma fundamentalista exigência de cumprimento de uma rigorosa ética das máscaras, com discussões infindas acerca de se devem ser duplas, com os fios cruzados ou não, com viseira ou sem viseira, como se estivesse em causa o imperativo categórico ou pelo menos uma ameaça crucial à existência da própria espécie, para a vituperação do referido como único império que, nas últimas décadas, fez uma invasão e bombardeamentos e alegou defesa de minorias étnicas ou políticas com uma narrativa aldrabona, completamente esquecidas do anterior fundamentalismo (esse e outros correlacionados) sem que houvesse nenhum motivo para isso como eu posso facilmente verificar nas minhas turmas reduzidas a metade dos alunos. Porquê esta mudança quase de um dia para o outro? Porque as televisões encontraram uma forma de condicionamento das emoções mais forte que a anterior, sobretudo agora que o cansaço das questões sanitárias estava visivelmente a erodir as audiências antes recuperadas pelos confinamentos e pela promoção do pânico. Aliás, é característica da existência inautêntica (ver Ser e Tempo) a ânsia de novidades. Porém, isso não chega para explicar os fenómenos mediáticos de cancelar toda a referência a outros assuntos para tudo ser concentrado, nos canais ditos noticiosos, quase durante 24 horas por dia (ainda restam uns minutos para o futebol), numa única campanha. Já lá irei. O que mais impressiona é como se passa nas redes sociais de uma vociferação para outra, sem uma partícula quântica de atividade crítica, não só através de grunhos e tacanhos, mas através de pessoas supostamente educadas, tornando-se meras caixas de ressonância das campanhas mediáticas. E, se se consegue alegar motivos justos para a referência a um assunto ou até mesmo uma causa, como justificar o que fica na obscuridade do holofote mediático? Por exemplo, as mulheres no Afeganistão estarão a passar por um alívio na perseguição que lhes foi movida? Ou só merecem a vozearia nas redes sociais quando o holofote mediático nelas incide? E muitos outros casos há que nem foram nunca, ao menos por aqui, objeto da atenção mediática.

A verdade é que as pessoas supostamente educadas só supostamente o são e a sua cultura, após umas leituras forçadas nas escolas frequentadas, se resume ao que os media lhes vão fornecendo. A maioria reproduz tudo, tal qual, as tais caixas de ressonância, na exata medida das chamadas agendas mediáticas, outra forma de referir as campanhas da teletela, só encontrando motivo para debates acirrados nas alternativas fornecidas pelos mesmos media, reality shows, rivalidades clubísticas, etc., assuntos em que são capazes quase de se matar, apesar de poder apenas estar em causa um jogo de putos jogado e seguido por adultos que nunca conseguiram amadurecer. Mas quando ocorrem as campanhas gerais dos media – e elas estão constantemente a ocorrer – apenas refletem seja o que for que digam, por mais disparatado que seja, mesmo a miss guerrilheira que já estaria na linha da frente. Uma ínfima minoria, face às manifestas contradições dos media, adota a atitude inversa e desconfia de tudo, mesmo dos factos mais manifestos, isto quando não elabora teorias da conspiração tão disparatadas (entre as quais incluo as rebuscadas explicações de como um inequívoco agressor pode ser apresentado como  estando a defender-se de uma agressão, o que é mais contrafactual do que os supostos chips do Bill Gates) que constituem uma excelente forma de reforçar a absoluta e exclusiva verdade das campanhas que, assim, disfarçam os seus próprios e evidentes disparates. E assim, quase todos, ao menos entre os que habitam as redes sociais, apenas refletem o condicionamento elementar levado a cabo pelos media, nada pensando ou de nada falando senão do assunto (e da tese) do dia. A campainha toca e salivam, só se alterando o objeto da desejada digestão.

Mas estas caixas de ressonância não se resumem às chamadas notícias, o seu próprio pensamento acerca de tudo é determinado pelo que se diz nos media. As mesmas pessoas, aliás, podem ter opiniões absolutas em diversas fases da sua vida acerca dos mesmos assuntos totalmente divergentes – e a única base para essa divergência é o que se passou a dizer nos media. Isso é facilmente verificável em qualquer discussão, os únicos argumentos que são trazidos por essas pessoas são retirados dos programas televisivos e as mais sofisticadas talvez consigam encontrar alguma coisa na internet. Nunca referem um livro, mas, se o referirem, será resultado das suas antigas leituras escolares. E é claro, o seu poeta preferido é sempre Fernando Pessoa que subscrevem num lugar comum boçal de autoajuda que nunca foi escrito por ele. É difícil descrever a indigência intelectual que passa por cultura no meio público e, por isso, por tal tão absoluta falta de espírito crítico, se revela tão fácil implementar políticas educativas de condicionamento socioemocional que só tendem a agravar cada vez mais esta situação (ou a melhorar, pois nada convém mais a quaisquer poderes que a fácil manipulação emocional e a incapacidade de formular um argumento consistente). Há uns anos, entretinha-me, até para ter exemplos nas aulas sobre retórica (entretanto, não por acaso, banidas), a ver, primeiro, os espaços de determinados líderes de opinião, como o Marcelo, e depois os espaços de opinião pública. A esmagadora maioria dos intervenientes reproduzia ou fragmentos do que o Marcelo tinha dito, ou, em menor grau, fragmentos do que outros líderes de opinião tinham dito. E isto passava e passa por manifestação da opinião própria. Mesmo as alternativas de opinião não passam de ressonância do que é inculcado pelos media e a esmagadora maioria nada pensa sobre nenhum assunto que não seja evocado pelos mesmos media. Mas pior ainda é aquilo que é estimulado por esses órgãos. Os órgãos de comunicação social pegam nos piores aspetos da existência inautêntica, o seu primarismo emocional, o seu dogmatismo, a estimulação da fé cega, o imediatismo descontextualizado, o comodismo, a covardia perante as realidades fundamentais da existência, o conformismo, a falta de sentido histórico, a redução ao já dado, a falta de sentido de problema, a recusa de elaboração intelectual, o sistemático recurso a falácias, etc., e amplificam-nos até não ser possível dizer seja o que for que não esteja subordinado à sua chancela. É, aliás, a única forma que conhecem de recuperarem o domínio que sentiam perder para outros media, como o streaming e as redes sociais.

É isto novo? Não, não tem nada de novo. Os entusiastas das novidades tecnológicas concentram-se em quão diversos são os meios, rádio, televisão, internet, e pode haver mesmo pessoas com algum sentido crítico que julguem que houve uma alteração não só de grau, mas de natureza, nas campanhas mediáticas. Ainda no séc. XIX, embora mesmo no final, uma campanha mediática, levada a cabo por nomes até hoje muito conceituados, levou à guerra que garantiu um fácil império aos Estados Unidos sobre os despojos do espanhol, podendo manter um discurso anticolonialista porque eles só estavam a garantir o direito à autodeterminação dos povos oprimidos. As campanhas sucedem-se ao longo da Idade Contemporânea e, se, por vezes, há uma reação pública significativa, como houve no caso Dreyfus, aliás liderada por alguns dos maiores intelectuais da época, levada a cabo também por imprensa de sinal oposto, inúmeros são os casos de campanhas opressivas, sem ou quase sem contraditório, levadas a cabo não só em regimes ditatoriais, mas também nas democracias representativas. Que nada mudou, a não ser eventualmente para pior, é o que mostra o entusiasmo com os que os media recebem as sucessivas censuras ou cancelamentos de pessoas ou movimentos nas redes sociais ou de órgãos de comunicação social alinhados com o inimigo. Se ocorrer uma revolução instauradora de um regime oposto, só se notará a diferença por serem os atualmente sancionados, os censurados e cancelados, como, aliás, já se passa em diversos outros países. Até podem acontecer revoluções opostas nos diversos países e eles continuarem a opor-se, mas instalados nas posições inversas. E, em todas essas alterações, os media continuarão a cumprir as suas funções que nada têm a ver com liberdade de expressão, garantia do estado de direito ou objetividade factual.

Nem vou sublinhar os aspetos mais caricatos do jornalismo nacional porque este é sempre preguiçoso, incompetente e, por isso, reduz-se aos piores aspetos dos media internacionais, aqueles que estão mais à mão. Se têm uma campanha em curso, nem se dão ao trabalho de noticiar seja o que for para lá disso (isso foi bem visível em várias fases da pandemia em que um telespetador que ligasse os canais estrangeiros descobria de repente um mundo que aqui parecia ter deixado de existir). As reportagens são sempre feitas em lugares ou eventos já agendados como se se tratasse de uma versão burocrática do jornalismo: mostram durante horas traseiras de autocarros, vão para a entrada de uma dada instituição onde nada se passa noticiar não se sabe o quê, entrevistam as pessoas nas ruas encostadas ao estúdio de televisão, ficam de plantão nos aeroportos ou noutros pontos onde chegam meios de transporte, mostram as reações de convidados a um jogo que não estão a transmitir e muitos outros comportamentos absurdos a que se habituaram de tal forma os portugueses que já não os estranham. Já nem falo do ridículo boçal provincianismo de tanto só ser noticiado por envolver um qualquer português no estrangeiro, ao ponto de, por exemplo, uma equipa ser a dele mesmo sem ter sido convocado. O jornalismo neste país é uma anedota e poderia passar horas a exemplificar a anedota sem que isso cumprisse qualquer fim para lá de provar o óbvio. Porém, essa anedota não passa de uma caricatura de uma realidade internacional que igualmente reflete. Se, de facto, os media não cumprem nenhuma das funções que dizem cumprir, qual exatamente a sua função?

É evidente que os media são poderosos meios de condicionamento e manipulação da população, sempre ao serviço de interesses mais ou menos ocultos. Os menos ocultos são os que já se expressam nos governos – não os próprios governos, mas aqueles para quem eles fazem os decretos-leis e, caso tenham maiorias parlamentares, leis, muitas vezes elaborados diretamente por esses mesmos interesses como, vez em vez, é denunciado por algum político ou profissional mais desenquadrado. A evidência de não existir imprensa livre é dada pela unanimidade dos media em múltiplas campanhas governamentais ou em campanhas que forçam os governos numa dada direção, ao contrário do que ocorria noutras épocas. Quando existe um outro lado na imprensa internacional, há sempre, aqui e ali,  referência às suas notícias que são sempre referidas como pura manipulação, exatamente quando estão a fazer exatamente isso mesmo, e o mesmo se pode ver ser feito pela outra parte, apresentando juízos de valor como informação (por exemplo, os terroristas de um lado podem ser os mártires do outro e cada um dos lados apresenta uma das qualificações como factual). Esses mesmos interesses, os que forem mais poderosos, podem mover campanhas contra os governos se, por alguma razão, não se sentirem satisfeitos – e aí os governos não duram muito, como até neste país já se viu acontecer. A chamada opinião pública é sempre formatada por essas campanhas, se não na totalidade, ao menos na maioria, e a sua orientação é tão elementar como a de uma manada, não tendo as razões nenhum papel que não seja o de servir de incentivo, um pouco à semelhança das palavras de ordem nas manifestações. Se as razões tivessem algum papel, poder-se-iam confrontar com contra-argumentos, mas só o conseguem fazer de forma falaciosa, por exemplo, com espantalhos, ignorância das condições, apelos à ignorância ou a autoridades indeterminadas ou não qualificadas (por exemplo, “o que se diz”), analogias vagas, tirando conclusões que não se seguem das premissas, etc. Na verdade, reproduzem apenas o que ouvem nos media até nos recursos falaciosos e sentem ter sempre razão por dizerem aquilo que outros dizem, sendo absolutamente incapazes de avaliar o valor de um argumento por si, independentemente da vozearia associada a uma tese. Mas todos estes processos bem conhecidos de condicionamento das massas ainda apenas afloram a função dos media.

Os media servem para formar e dar consistência à gente, qualquer gente, desde que com esse termo se expresse um coletivo disseminado contraditório e hostil a ser pessoa, ou seja, um indivíduo que pensa com base em argumentos por si articulados e que é capaz de projetar o mundo, quer dizer, estabelecer por si uma arquitetura de compreensão e de sentido para aquilo que para a gente não passa do ambiente a que reage. Os media até podem dar audiência a um representante de outra gente, até de gente inimiga, sobretudo se for caricatural, mas, se por acaso se enganam e convidam uma pessoa, alguém que não usa os termos esperados, que não se subordina à forma estulta e estereotipada como põem as questões, que não diz algo que possa ser identificado como representante de uma das manadas, que se interroga sobre aquilo que os media não querem que ninguém se interrogue, não voltará a ser convidado – a não ser que atinja, por exemplo, o estatuto de escritor consagrado e aí é tratado de forma muito paternalista como uma curiosidade folclórica. Os media servem, em todas as épocas, para dizer às manadas como agir, o que e como pensar, o que e como sentir, como viver e, sobretudo, como e o que sonhar. Podem ir mudando as tecnologias, que não se alterará o papel dos media, variando mesmo pouco com os regimes políticos, havendo apenas uma preocupação acrescida no nosso em fazer crer aos membros da gente que o que estão a pensar, a fazer ou a dizer é uma manifestação da espontaneidade pessoal que só está em concordância com o ambiente social envolvente porque se trata de uma evidência indiscutível – a maioria nem repara que tudo o que diz apenas papagueia o que antes foi estimulado ou até transmitido tal qual pelos media. Nada se diz ou se faz que não no quadro pelos media predeterminado, muitas vezes admitindo alternativas, mas apenas aquelas que forem sancionadas, assim formatando gostos, preferências, crenças que, como as modas de vestuário, depois cada qual julga resultarem da sua escolha espontânea. Nas épocas devidas, pois existe condicionamento diversificado para cada escalão etário, cada qual faz aquilo para que mais foi condicionado, diz o que ouviu dizer nas seitas a que se sente pertencer e tem o seu pensamento exclusivamente dominado pela concretização dos desejos que lhe foram inculcados, em muitos casos desde a mais tenra infância. Não sendo capaz de explicar o que faz a não ser como sendo o normal ou sendo especial e rebelde apenas por conformadamente imitar um ídolo pop qualquer, não há membro da gente que se preze que não se considere livre. E sê-lo-á plenamente quando ridicularizar, perseguir, difamar ou cancelar um outro por ser de outra fação ou, pior, por ser um embrião de pessoa, isolado e, por isso, frágil, a coberto do consenso coletivo que mostra como é natural atacar uma tal aberração.

Na atual situação, os diversos meios competem a tentar encontrar uma plataforma que ainda possa condicionar a gente a um nível mais primário, com a menor elaboração intelectual possível. Do condicionamento do entretenimento televisivo e do alinhamento enviesado das notícias, progrediu-se para a exploração emocional como único conteúdo dito informativo, depois para a provocação deliberada de situações que possam provocar reações extremadas, depois para as redes quase reduzidas à reprodução ilimitada de lugares comuns, depois para redes com limitação da quantidade do que pode ser dito para tudo ser reduzido ao meme, à palavra de ordem, à piada ou ao discurso de enjoativo amor e de boçal ódio, depois para redes onde já quase não há texto mas diminutas performances ou imagens – e, presumo, que já devem haver redutos em que a máxima elaboração que é possível será a do urro ou do grunhido. Parece, de facto, tratar-se de uma verdadeira regressão evolutiva, mas não tenho uma visão tão grosseira dos nossos antepassados hominídeos. Que os media tradicionais só consigam responder limitadamente a esta progressão, multiplicando as campanhas de manipulação emocional, sobretudo aquelas que induzem pânico coletivo, o mais poderoso aglutinador da gente, não é de admirar – e só conseguem algum efeito significativo para lá das velhas audiências se concentrarem todos os seus esforços nesse único objetivo, seja a demonização de uma qualquer personagem pública, seja o colapso de um regime, seja um movimento de contestação, seja uma crise humanitária, seja uma questão sanitária, seja uma guerra ou revolução, o que importa é produzir um efeito de conformação exponencial do coletivo até seja quem for que se atreva à mínima tese ou até problematização divergente ser imediatamente anatematizado, ostracizado e excomungado da sã convivência no meio ambiente da atmosfera gregária. E a única forma de não ser esmagado por essas chamadas tendências que são, na verdade, enxurradas que não admitem a mínima dissonância, é integrar uma outra tribo oposta, outro coletivo onde se possa integrar o exército de inimigos, anulando de forma idêntica a individualidade. A pessoa enquanto pessoa, sem pertencer a qualquer seita ou partido, está condenada ao fracasso total.

Tenho estado (menos nos últimos tempos por diversas razões) a elaborar uma obrazita, sob outra assinatura, cujo tema central é o conflito mortal entre pessoa e gente que tem percorrido toda a história pelo menos do Ocidente. Como a gente nada é capaz de criar que não diferentes vozearias pelas quais ganha a força para impor o seu totalitarismo, nunca teria sido possível qualquer evolução na civilização se não fosse o contributo de pessoas que são invariavelmente sacrificadas pela gente. A gente funciona, a gente reage, a gente impõe o seu funcionamento e reações como naturais, a gente asfixia qualquer possibilidade de verdadeira diferença bombardeando constantemente todos com os seus lugares comuns, as suas palavras de ordem, os seus chavões, os seus ditados, os seus gestos estereotipados, as suas emoções primárias, a sua banalidade que pouco importa que seja do mal ou seja do bem ou de seja o que for, pois o que importa é não admitir alternativa à sua atmosfera, até fornecendo uns simulacros de diferenciação numas batidas diversas para abanar a carola ou em alternativas rebeldes de vestuário para se julgar que a gente é constituída de pessoas. Os media, nas suas campanhas, potenciam esse totalitarismo ao paroxismo, anulam as diferenças superficiais, produzindo uma massa única cujos componentes são indiscerníveis, com o poder de arrasar, obliterar, desintegrar qualquer singularidade, apenas podendo ser contida por uma massa com uma força equivalente. É verdade que podem estar a servir interesses sejam políticos, religiosos ou empresariais (são diferentes sequer?), mas isso são as funções superficiais que servem as fundamentais. O fundamental é dar força e consistência aos coletivos para melhor os poder continuar a dominar. O objetivo do poder é o poder (sim, estou a citar Orwell). Os media são uma emanação da gente para garantir o seu domínio e que esse domínio não permita a emanação de qualquer ameaça significativa, arrasando o mínimo embrião de individualidade que não se resuma a um estilo ou qualquer outro registo superficial. Os media são, pois, inimigos de todo o pensamento, toda a verdadeira criatividade, toda a decência no respeito pelos outros, toda a isenção no tratamento dos dados, todo o respeito pelo estado de direito, toda a verdadeira pluralidade. Macaqueiam julgamentos em campanhas de ódio, macaqueiam pluralidade em espetáculos de entretenimento, macaqueiam denúncias a abusos e ofensas em que ocultam os seus intencionais silenciamentos. Declaram hoje abertamente a impossibilidade de isenção para poderem à vontade ser totalmente facciosos e apresentam como inevitável a sua caricatura atroz da objetividade factual. E são assim porque é assim que a gente quer que sejam. A cidadania responsável dá muito trabalho, o espírito crítico é coisa de filósofos do passado, as obras que criavam mundos de sentido são coisas de génios que já não existem, reduzidos, aliás, a ícones de consumo fácil e imediato para animar os chavões da gente. Mas, ainda assim, há pessoas nesse mar, nesse oceano, nesse firmamento avassalador de gente – e essas pessoas dever-se-iam opor, como seus inimigos, como alienígenas hostis, senão à gente, o que é impossível por ser todos e ninguém, ao menos ao seu braço armado, os media.

É preciso identificar os inimigos de toda a afirmação pessoal e lutar, muito embora esteja garantida a derrota, como sempre aconteceu e como sempre nunca impedindo Sócrates, Jesus ou Bruno, sempre os poderes agindo como meros avatares da gente que nem teria dado oportunidade a Galileu para se retratar. Os media devem ser denunciados como aquilo que são, uma evolução muito mais insidiosa da teletela que impõe o conformismo até aos poucos que a eles se opõem por ditarem os assuntos que serão o objeto da sua oposição. A possibilidade de ser pessoa depende, em parte, de se recusar a tratar esses assuntos que os media dizem que são os assuntos do dia e tornar alvos os próprios media. Será sempre uma precária e efémera afirmação, mas a alternativa é o afogamento da individualidade no mar da gente. É preciso recusar por toda a parte a conformação, é preciso pensar o que não é oportuno ser pensado, é preciso recusar usar apenas os conceitos que se consideram os adequados, é preciso navegar proposições inesperadas, desvendar contextos olvidados, inventar articulações reflexivas indesejáveis, é preciso dizer não. Não vale a pena a ilusão, a gente ganhará sempre, mas, entretanto, teremos filosofia, ciência, arte, mística, projeção de mundos de sentido, tudo aquilo que se diz ser próprio do homem e que emergiu sempre de uma ínfima minoria. E só por isso já vale a pena lutar.

                                                                        7/3/22