21.8.21

O horror

           É bom que todos tenham alguma consciência do horror, mas o horror não nasceu repentinamente num dia de verão em Kabul. Existem inúmeras boas almas nos recantos privilegiados do mundo que podem encher a boca de pensamento positivo e manterem uma vida resguardada de qualquer aflição e tomam consciência do horror como se fosse uma minissérie televisiva, esquecida depois pela próxima produção da Marvel. Outras passam a vida a queixar-se das dificuldades e a comparar-se com as Suécias do mundo, não tendo consciência de pertencerem aos 10% da população mundial mais privilegiada – e julgam que o horror só pode ocorrer no sítio remoto para onde apontam os holofotes dos media mais pelo descalabro do Império, do que pela situação do país. A maioria não tem consciência que o horror é uma constante, que abrange a maioria da população do mundo de várias formas e que a maioria das vítimas nem como números é referida nos nossos media. E não tem consciência porque não quer ter.

Quantos Afeganistões se espalham por todo o Sahel e se estendem já para outras partes de África? Quantas atrocidades nas guerras civis espalhadas pela Ásia e África? E quantas minorias e maiorias oprimidas por ditaduras até contra os radicais islâmicos que gostamos de demonizar (Egito, Argélia, Filipinas, Birmânia, China, etc.)? E quantos recantos onde a Sharia impera que não ficam no Paquistão, mas em ghettos na Europa? E as vítimas esquecidas do narcotráfico ou de outros esquadrões da morte na América latina, em África e na Ásia? E o horror do tráfico humano, dos gangues que controlam os caminhos do deserto e as precárias rotas do mar que buscam a miragem de uma redenção longínqua da miséria? E os abusos silenciados por países que disfarçam as vítimas particulares por parecerem ter uma regular ordem estabelecida (Rússia, Índia, Angola e tantos, tantos outros, de diversas formas)? E as perseguições movidas contra minorias sexuais, sejam oficiais ou não? E até muitos infernos dos subúrbios ocidentais que se referem sob a neutra designação de problemas sociais, mas cujas vítimas vivem tanto o horror quanto noutras partes do mundo? E quantas mais, muitas mais situações se poderiam referir?

O horror não é uma programação dos media para entreter momentaneamente a vida entre a “Casa dos Segredos” e o “Quem quer casar com o agricultor?” (lamento se os nomes dos programas estão desatualizados ou incorretos, não estou muito ao corrente). O horror é uma condição geral inerente a uma espécie que é melhor definida pela violência que por uma apenas suposta e muito longe de provada racionalidade. E enquanto os media empolam a violência o mais que podem nestes dias, oculta-se toda a violência que se espraia pelo mundo, incluindo aquela que se seguirá à retirada americana e que já pouca atenção atrairá. E porque os media reduzem o horror permanente a um espetáculo momentâneo? Porque é isso que os consumidores querem. Depois de saciados pelo momentâneo espetáculo, a momentânea notícia, novidade horrível, querem outra notícia, outro tipo de novidade, para irem entretendo as suas existências aborrecidas. Mas abrem muito os olhos e a boca se os holofotes mediáticos mostrarem execuções públicas num estádio, lapidações de mulheres consideradas adúlteras por terem sido violadas, decapitações de jornalistas, etc., como se estivessem a ver uma aberração extremamente rara, nunca vista, para, logo em seguida, esquecerem tudo no uso de um novo produto, uma nova distração, um novo entretenimento – ou apenas nas preocupações quotidianas, no diz que diz, naquele, no outro e em toda a gente, tricas e trucas, intrigas e malícias, aquilo que importa a toda a gente até uma aurora em que acordem para o horror aqui mesmo nas nossas ruas. E quando o horror aqui chegar terá sido trazido, de diversas formas, ação ou omissão, pela mesma gente, os mesmos consumidores, as mesmas audiências.

É, por isso, que importaria uma consciência contante e também histórica do horror, para perceber a sua ameaça constante mesmo nos recantos privilegiados que por aqui se julga que são o mundo a sério, a consumir produtos provenientes do horror da escravização infantil e a viver à conta da dívida a todo o trabalho que está a ser feito em condições aqui inaceitáveis no não-mundo que é quase todo o planeta. Em vez dela, temos a dispersão pelas inconsistentes e alienantes ficções da Netflix ou outro streaming qualquer, ou a grande razão para alegadas pessoas quase se matarem umas às outras, a transmissão de um jogo de putos a dar pontapés numa bola a que gente dita adulta que faz questão de mostrar grande seriedade dedica todo o seu interesse, entusiasmo e até elaborada argumentação. E este jornalismo que ocupa horas com as traseiras de autocarros ou as especulações sobre contratações, de vez em quando transmite um especial vindo de uma cadeia televisiva estrangeira dedicado ao horror algures porque até o maior exemplar da fauna futebolesa se enfastia com o vazio desta comunicação social pacóvia. E assim, entretidos, cada qual no seu casulo tecnológico atulhado de engenhocas para todo o tipo de distrações, talvez não precisem tanto de antidepressivos, ansiolíticos, antipsicóticos, etc., que inundam este recanto de privilégio e indolência. 

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