O horror
É bom que todos tenham alguma consciência do horror, mas o horror não nasceu repentinamente num dia de verão em Kabul. Existem inúmeras boas almas nos recantos privilegiados do mundo que podem encher a boca de pensamento positivo e manterem uma vida resguardada de qualquer aflição e tomam consciência do horror como se fosse uma minissérie televisiva, esquecida depois pela próxima produção da Marvel. Outras passam a vida a queixar-se das dificuldades e a comparar-se com as Suécias do mundo, não tendo consciência de pertencerem aos 10% da população mundial mais privilegiada – e julgam que o horror só pode ocorrer no sítio remoto para onde apontam os holofotes dos media mais pelo descalabro do Império, do que pela situação do país. A maioria não tem consciência que o horror é uma constante, que abrange a maioria da população do mundo de várias formas e que a maioria das vítimas nem como números é referida nos nossos media. E não tem consciência porque não quer ter.
Quantos
Afeganistões se espalham por todo o Sahel e se estendem já para outras partes
de África? Quantas atrocidades nas guerras civis espalhadas pela Ásia e África?
E quantas minorias e maiorias oprimidas por ditaduras até contra os radicais
islâmicos que gostamos de demonizar (Egito, Argélia, Filipinas, Birmânia,
China, etc.)? E quantos recantos onde a Sharia impera que não ficam no
Paquistão, mas em ghettos na Europa? E as vítimas esquecidas do
narcotráfico ou de outros esquadrões da morte na América latina, em África e na
Ásia? E o horror do tráfico humano, dos gangues que controlam os caminhos do
deserto e as precárias rotas do mar que buscam a miragem de uma redenção
longínqua da miséria? E os abusos silenciados por países que disfarçam as
vítimas particulares por parecerem ter uma regular ordem estabelecida (Rússia, Índia, Angola e tantos, tantos outros, de
diversas formas)? E as perseguições movidas contra minorias sexuais,
sejam oficiais ou não? E até muitos infernos dos subúrbios ocidentais que se
referem sob a neutra designação de problemas sociais, mas cujas vítimas vivem
tanto o horror quanto noutras partes do mundo? E quantas mais, muitas mais
situações se poderiam referir?
O
horror não é uma programação dos media para entreter momentaneamente a
vida entre a “Casa dos Segredos” e o “Quem quer casar com o agricultor?”
(lamento se os nomes dos programas estão desatualizados ou incorretos, não
estou muito ao corrente). O horror é uma condição geral inerente a uma espécie
que é melhor definida pela violência que por uma apenas suposta e muito longe
de provada racionalidade. E enquanto os media empolam a violência o mais
que podem nestes dias, oculta-se toda a violência que se espraia pelo mundo,
incluindo aquela que se seguirá à retirada americana e que já pouca atenção
atrairá. E porque os media reduzem o horror permanente a um espetáculo
momentâneo? Porque é isso que os consumidores querem. Depois de saciados pelo
momentâneo espetáculo, a momentânea notícia, novidade horrível, querem outra
notícia, outro tipo de novidade, para irem entretendo as suas existências
aborrecidas. Mas abrem muito os olhos e a boca se os holofotes mediáticos
mostrarem execuções públicas num estádio, lapidações de mulheres consideradas
adúlteras por terem sido violadas, decapitações de jornalistas, etc., como se
estivessem a ver uma aberração extremamente rara, nunca vista, para, logo em
seguida, esquecerem tudo no uso de um novo produto, uma nova distração, um novo
entretenimento – ou apenas nas preocupações quotidianas, no diz que diz,
naquele, no outro e em toda a gente, tricas e trucas, intrigas e malícias,
aquilo que importa a toda a gente até uma aurora em que acordem para o horror
aqui mesmo nas nossas ruas. E quando o horror aqui chegar terá sido trazido, de
diversas formas, ação ou omissão, pela mesma gente, os mesmos consumidores, as
mesmas audiências.
É,
por isso, que importaria uma consciência contante e também histórica do horror,
para perceber a sua ameaça constante mesmo nos recantos privilegiados que por
aqui se julga que são o mundo a sério, a consumir produtos provenientes do horror
da escravização infantil e a viver à conta da dívida a todo o trabalho que está
a ser feito em condições aqui inaceitáveis no não-mundo que é quase todo o
planeta. Em vez dela, temos a dispersão pelas inconsistentes e alienantes ficções da Netflix
ou outro streaming qualquer, ou a grande razão para alegadas pessoas quase
se matarem umas às outras, a transmissão de um jogo de putos a dar pontapés
numa bola a que gente dita adulta que faz questão de mostrar grande seriedade
dedica todo o seu interesse, entusiasmo e até elaborada argumentação. E este
jornalismo que ocupa horas com as traseiras de autocarros ou as especulações
sobre contratações, de vez em quando transmite um especial vindo de uma cadeia
televisiva estrangeira dedicado ao horror algures porque até o maior exemplar
da fauna futebolesa se enfastia com o vazio desta comunicação social pacóvia. E
assim, entretidos, cada qual no seu casulo tecnológico atulhado de engenhocas para todo o tipo de distrações, talvez não precisem tanto de antidepressivos, ansiolíticos,
antipsicóticos, etc., que inundam este recanto de privilégio e indolência.