28.2.08

Concepções de justiça distributiva (segundo Perelman)

1. A cada qual a mesma coisa. – Sendo absolutamente equitativa, esta fórmula poderia ser considerada como a que melhor expressa um dos valores centrais dos ideais políticos modernos e contemporâneos. Porém, ao ignorar as diferentes condições das diferentes pessoas, acaba por ser injusta, na medida em que não castiga comportamentos inadequados, não premeia esforços meritórios e não considera necessidades diferenciadas. Além disso, pode ser nefasta para a sociedade pois não estimula a competição e, logo, a tendência natural da maioria dos homens para alguma preguiça e inércia leva a uma redução global da produtividade. Nos regimes socialistas do leste europeu, quando o entusiasmo revolucionário e a repressão estalinista extrema passaram, essa tendência revelou-se de tal forma que a URSS se mostrou incapaz de acompanhar a competição directa com os EUA. O mesmo se tem criticado, por exemplo, na nossa Função Pública (onde, em geral, apenas o tempo de serviço servia de factor diferenciador), servindo tal situação de argumento governamental para as recentes reformas.
2. A cada qual segundo seus méritos. – Embora esta seja uma fórmula diferenciadora, o facto de seguir um princípio universal permite que se possa considerar uma fórmula de justiça e até uma das mais tradicionais. Parece justo a distribuição depender das capacidades e esforços desenvolvidos por cada qual, o que, aliás, estimula a competição e a produtividade. Porém, como se define o mérito? Em cada profissão ou estatuto existem muitos elementos a ser considerados. Quais são os mais relevantes? Ou deverão ser todos considerados por igual, fazendo uma espécie de média? E dever-se-á considerar o empenho e o esforço mesmo que frustrado ou só as realizações? A determinação do mérito, sendo extremamente subjectiva à partida, pode acabar por se tornar completamente arbitrária. Além disso, exactamente por ser tão obscura pode permitir, com facilidade, a camuflagem de favorecimentos sem fundamento em qualquer concepção de justiça.
3. A cada qual segundo suas obras. – Contrariamente às restantes fórmulas que são inteiramente contraditórias entre si, esta pode ser considerada uma especificação da anterior. A diferença consiste em retirar as considerações mais subjectivas, centrando-se unicamente nos desempenhos e resultados observáveis. Porém, mesmo neste caso, se já não se está a referir o domínio interno do sujeito visado, mantém-se a subjectividade da apreciação. Quaisquer obras podem ser consideradas de forma diversa por diversos sujeitos e onde um vê uma bela ou útil obra, outro poderá ver um desperdício de recursos. Além disso, poderão existir discrepâncias em relação aos desempenhos que se consideram mais importantes, levando a uma situação idêntica à anterior. Por fim, poder-se-á considerar que o facto de não se considerar o esforço e o empenho dá origem a uma avaliação fria e desumana, beneficiando aqueles que já são afortunados pela natureza, dotados de capacidades que lhe permitem realizações fáceis sem grande dispêndio de energias.
4. A cada qual segundo suas necessidades. – Contrariamente à frieza e desumanidade da fórmula anterior que poderia deixar morrer quem, por exemplo, pelas suas deficiências, se mostrasse incapaz de apresentar uma obra competitiva, esta fórmula é animada pela compaixão pelos mais incapazes e, por vezes, até mais necessitados. Além disso, todos os homens na infância e, potencialmente, na velhice, vêem-se numa situação em que não estão em condições de competir em pé de igualdade com os restantes, tendo, porém, ainda por cima, necessidades acrescidas pela sua fragilidade ou doença. No entanto, o prosseguimento desta fórmula, como concepção geral de justiça, é extremamente nefasto para a sociedade, na medida em que estimula a competição pela demonstração das necessidades. Alguém que queira mais, como o egoísmo humano quer normalmente, perante tal critério, tentará exagerar, senão mesmo inventar, todo o tipo de deficiências, maleitas e situações sociais adversas (como a dificuldade de arranjar emprego) para convencer as autoridades a concederem-lhe maiores proventos. Ora, isso leva a que se generalize a competição por fazer o menos possível, levando à diminuição da riqueza global na sociedade. Embora tal prática seja injusta à luz da fórmula em causa, que os homens o fazem naturalmente é bem provado pelas múltiplas fraudes na nossa segurança social que, apesar de não ser das mais desenvolvidas, chega para criar cobiça, desviar recursos e fazer com recursos não sejam criados, para aqueles que verdadeiramente são mais necessitados.
5. A cada qual segundo sua posição. – Aparentemente, esta fórmula, devido ao seu aspecto aristocrático, parece contraditória com os ideais de justiça da modernidade. Faz depender a distribuição da categoria social a que o indivíduo pertence, o que, parecendo injusto à partida, corresponde à realidade ainda hoje predominante na nossa sociedade. Porém, a não consideração desta fórmula em absoluto provoca, também, situações que, do ponto vista racional, são injustas. Se pensarmos a posição do ponto de vista do estatuto profissional, este deve efectivamente ser diferenciado nos seus direitos porque não pode deixar de ser diferenciado nos seus deveres. Funções distintas, obrigações diversas e responsabilidades diferenciadas, devem corresponder a condições diferentes, regalias variadas, subsídios especificados e até a honorários escalonados. Para fornecer um exemplo, se alguém, devido à sua profissão ou devido à posição adquirida nessa profissão, corre muito mais riscos que as restantes pessoas, é justo que receba um subsídio de risco ou que seja compensado nos seus honorários. O mesmo se diga para múltiplas outras situações, profissões de desgaste rápido, de exposição pública, de responsabilidade extrema, etc.
6. A cada qual segundo o que a lei lhe atribui. – Sendo provavelmente a mais popular das fórmulas de justiça, visto ser a justiça que as pessoas e os seus advogados exigem nos tribunais, como critério geral de justiça é viciosa. De facto, estas fórmulas, ao definirem a justiça, devem servir para enunciar as próprias leis. Ora, esta fórmula faz depender da lei a enunciação da própria lei, o que é obviamente absurdo. O facto de ser tão popular advém da maioria das pessoas não se conceber a si própria como co-legisladora, visto os deputados que formulam as leis não serem mais do que representantes. Assim, contentam-se em exigir que as leis que existem, mesmo que injustas segundo outros critérios, sejam, pelo menos, cumpridas. E têm uma certa razão porque a maior doença das sociedades, repetida de diversas formas ao longo da história, não reside na aplicação de um critério em detrimento de outros, mas no facto de, até mesmo leis injustas segundo qualquer critério, não serem aplicadas universalmente como é próprio das leis. Continuamos a ver que as mesmas leis são aplicadas de forma muito diferenciada conforme aqueles a quem são aplicadas, senão nas decisões finais, pelo menos nos procedimentos que, por exemplo, levam uns a serem julgados sumariamente, ao passo que outros, recorrendo a inúmeros expedientes, invariavelmente são ilibados por prescrições e anulações por motivos formais. De facto, as condições de acesso ao sistema judicial (assim como o administrativo) são de tal ordem que a maioria nem a ele recorre (suporta apenas, passivamente, as suas decisões) mesmo que seja gravemente prejudicada. Quando as pessoas se queixam de não existir justiça na nossa sociedade, na maior parte dos casos nem se estão a referir a grandes ideais de justiça, mas ao facto de ela nem sequer formalmente ser cumprida.

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