Aposentação
Hoje, pela manhã, a
janela ofereceu-me a visão de uma massiva queda de folhas. Ontem, ao fim da
tarde, recebi a notícia definitiva da minha aposentação. Chegou o outono.
Chegou o ocaso da vida. Há uma certa tranquilidade em ter decidido antecipá-lo,
um pouco como alguém que decidiu o suicídio e só lhe resta viver os últimos
minutos, os últimos segundos, os últimos instantes, a serenidade de caminhar
para o seu próprio patíbulo. Vou receber menos de 29% do que ganhava, talvez um
pouco mais quando puder fazer as contas à remuneração líquida. Em breve,
subiria, aliás, para o último escalão da carreira e a diferença seria ainda
maior. Porquê, então, ter escolhido fazer o que fiz?
Uma razão preliminar
prende-se com o caminho para o abismo que alegremente continuamos a percorrer.
A agressão global do planeta nunca se irá infletir enquanto os indivíduos
busquem sempre ter cada vez mais. Não são os capitalistas malvados que são as
causas desta predação dos recursos, mesmo se a executam e potenciam. Eles
fornecem o que os indivíduos desejam, muitas vezes sem sequer saberem à partida
que o desejavam, pois a raiz desse desejo é a desesperada fuga de cada qual à
sua condição finita através do entretenimento. Por isso mesmo, uma das
características inerentes à existência inautêntica é a ânsia de novidades. Nada
há pior e mais insuportável para os indivíduos privados de autenticidade do que
a falta de novidades que os consiga efetivamente distrair, quer pelo deslumbramento,
quer pela intensidade, quer pelo espanto, seja lá o que for desde que garanta
que o indivíduo não fica repentinamente despojado do que o atraia para fora de
si e reste reduzido ao confronto consigo mesmo, em toda a sua impotência,
indigência e vazio. Mas tais momentos são extremamente raros porque todo um
imenso mercado planetário oferece ininterruptamente novidades que impedem
constantemente que os indivíduos fiquem nus perante si mesmos. Para garantir o
fornecimento contínuo de produtos e serviços, todo o planeta é devassado em
busca de recursos que garantam a prossecução e crescimento do consumo. A orbe é
totalmente redesenhada para acomodar a distopia tecnocientífica da urbe global
em que não haverá lugar para qualquer biodiversidade que não a que servir a
busca cosmopolita de lazer em reservas diligentemente preservadas para o
turismo e os ecossistemas que o homem secretamente arrasta consigo ocultos nas
fundações dos seus edifícios e nos seus esgotos. A hipocrisia do ambientalismo
atual, quer o dos ativistas, quer o dos políticos que dizem defender o
desenvolvimento sustentável, só é minorada pelo facto de serem muito poucos os
indivíduos que ainda conseguem pensar de forma complexa, contextualizada e
rigorosa. Na verdade, quase é preferível a atitude dos trumpistas desta vida
que se estão a borrifar para quaisquer preocupações ambientais. Os ativistas supostamente
preocupados são dotados de uma verdadeira arte marcial do pensamento
unilateral, pois são capazes, na mesma frase, de exigir o fim do uso dos
combustíveis fósseis e o fornecimento de energia grátis ou, ao menos, muito
mais barata – para quê? Naturalmente, para poderem consumir à vontade, sem
constrangimentos de qualquer tipo. O mesmo se diga das medidas simbólicas ou
cosméticas dos nossos políticos supostamente empenhados no desenvolvimento
sustentável. Todas as medidas não passam de paliativos concentrados na única
questão do aquecimento global que, naturalmente, de forma alguma evitam,
sobretudo no ambiente marcial recente. Mas imaginemos que os Trumps até tinham
razão, sabe-se lá como, e não existia aquecimento global antropogénico nenhum.
Por acaso, deixariam de existir problemas ambientais, deixaria de estar em
curso uma agressão global ao planeta, deixaria de estar a ocorrer a maior
extinção da biodiversidade do decurso deste astro, ao menos num tão curto
período?
Só existe uma forma de
infletir o caminho para o abismo, embora a reconheça inexequível a não ser
eventualmente num cenário apocalítico. Sobretudo nos antros de privilégio do
planeta, é necessário viver com muito menos, ter um estilo de vida muito mais
modesto, decrescer economicamente de forma drástica. Mesmo isso, se fosse
exequível, seria moroso e deveria ser acompanhado de medidas draconianas de
controlo da natalidade em todo o planeta. O consequente envelhecimento
temporário da população até contribuiria para o arrefecimento económico, mas só
se houvesse uma aceitação generalizada de uma forma bem mais humilde de viver.
Foi exatamente o que decidi fazer ao decretar um corte de mais de 71% aos meus
rendimentos, apesar de ainda ter um filho dependente, como se estivesse a
dizer, para quem me quisesse ouvir, que é possível viver com muito menos do que
atualmente se vive. Não é a primeira vez que o faço. Durante mais de 20 anos, toda
a minha juventude, recusei tirar a carta por não querer contribuir para a poluição
global. Quer uma, quer a outra atuação foi e será totalmente inútil. Mas não
deixa de ser um marcar de posição contrária à absurdidade do caos atual a que
se chama, habitualmente, mundo. Naturalmente, tal corte só é suportável por não
ter uma casa para pagar, se se excetuar o IMI. Uma filha minha está a comprar
uma casa mais pequena que a minha por quase 8 vezes maior preço do que aquilo
que paguei – e certamente a inflação não explica a imensa diferença. Fá-lo
porque a sua renda ia aumentar para um valor igual ou superior à obscena
prestação que terá de pagar a partir de agora ao banco. Que governos ditos
socialistas tenham criado ou permitido esta situação incomportável para as
novas gerações entra no topo das traições iníquas que políticos executaram
contra os seus supostos, mas alegados ideais. Que ex-governantes diretamente
responsáveis pela área em causa durante muitos anos tenham a desfaçatez de vir,
agora, criticar os responsáveis atuais entra também para o topo da mais
completa falta de vergonha. Mas, sobretudo, tal distorção aberrante das
condições de vida sobretudo dos mais jovens (mas não só) é consequência direta
de um dos mais nefastos fenómenos do nosso tempo para a sustentabilidade
planetária, um setor económico de puro consumismo que não satisfaz qualquer
necessidade primária, que gasta recursos sem fim, que desvia força de trabalho
de setores essenciais (colmatada com imigração maciça que, depois, serve de
pretexto para os movimentos xenófobos) e que destrói todos os recantos em que
se lembra de tocar. Estou a referir, naturalmente, o turismo, sobretudo o
turismo de massas internacional praticado por tanta gente que se considera
ambientalista. O turismo, a par com o desporto de alta competição, constitui o
símbolo por excelência da nossa época perdulária, capaz de gastar oceanos de
recursos só para garantir o entretenimento custe o que custar. O mais
inacreditável nesse turismo de massas não é, porém, o seu impacto predatório,
mas sim o facto de os indivíduos estarem dispostos a suportar situações
absolutamente excruciantes para poderem tirar uma foto mentirosa, para poderem
dizer aos conhecidos que estiveram em tal sítio, para poderem desesperadamente
fugir do seu vazio existencial. Os indivíduos sujeitam-se às condições mais
aviltantes só para ganharem o prémio de ter estado em Massai Mara nas migrações
ruminantes que prejudicam gravemente, num suposto recanto paradisíaco tailandês
ou polinésio infestado de gente, em Petra, no Taj Mahal, em Machu Picchu, em
Gizé, em Paris, no Pártenon, na Sagrada Família ou nos Jerónimos – em todo o
lado sofrem longas esperas amassados na multidão, multiplicam o stress
do frenesim das deslocações, alimentam-se em manjedouras massificadas que não
frequentariam na sua terra, fotografam-se apressadamente em todo o lado sem
viver em lado algum, tudo isso e muito mais para garantir uma muito precária
fuga a si próprio. Se há um paralelo possível para tal absurdidade, só me vem à
cabeça os junkies que se sujeitam aos sofrimentos mais ignominiosos só
para garantir a próxima dose. E, se este negócio satisfaz a voracidade de uma
ínfima minoria, assim como fornece o rendimento a muitos trabalhadores, tem um
fortíssimo impacto em todas as sociedades onde ocorre, provocando enormes danos
ao nível de vida da maioria. As populações são expulsas das suas localidades
originais e, ainda assim, têm de suportar, mesmo na periferia, condições
extremamente onerosas. Toda esta busca do exótico massificado apenas garante
danos absolutamente colossais ao meio ambiente, sem resolver em nada o
desespero humano que a motiva. No regresso, apenas se avolumaram as situações
familiares de que se procurava fugir e há que garantir mais consumos
diversificados para poder suportar o insuportável. E lidar-se-ia com tudo muito
melhor se apenas se ouvissem os conselhos dos Antigos e se procurasse viver uma
vida frugal, moderada e modesta – é essa vida que me proponho a viver, visto
não estar sujeito aos efeitos mais nefastos dos preços exorbitantes atingidos
devido ao consumismo desenfreado.
Para lá desta razão
preliminar, mais colocada pela negativa, há, porém, três conjuntos de razões principais e muitas adicionais
acessórias para esta aposentação tão penalizadora em termos de rendimento.
Penso que chega referir as principais.
Em primeiro lugar, o
meu estado de saúde. Não vou aqui descrevê-lo, pois isso pertence a um domínio
que me parece demasiado privado. Porém, sempre que o menciono, ouço
invariavelmente a mesma pergunta: porque não arranjo um atestado? Durante a
minha carreira, já a caminho das quatro décadas, vi muitos sinais da putrefação
da vida social, mas poucos me pareceram tão corruptos como o recurso aos
conhecimentos e/ou ao dinheiro para forjar atestados fraudulentos de longa
duração. O que pensar de professores cujas baixas se prolongam até por anos,
com alegadas lesões que não aceitariam de alunos como justificativas sequer de
uma semana, mesmo quando aqueles beneficiavam de muito maiores facilidades de
transportes? A falta de vergonha era diretamente proporcional à importância
longamente cultivada na comunidade e/ou nos estabelecimentos de ensino. O certo
é que passavam por juntas médicas com tanta facilidade como arranjavam os
atestados. E o que é espantoso é que tais indivíduos continuassem a ser tidos
em consideração pelas instâncias que prejudicaram de forma descarada. Porém,
pensando bem, é natural que se tivesse em conta quem tinha mostrado tanto poder
ao ponto de executar as fraudes à vista de toda a gente. Aliás, muitos outros
casos de tipos diversos, não envolvendo alegadas questões de saúde, mostrariam
esse mesmo arbitrário direito do poder. Como a “gente” não tem princípios e só
reconhece a força, seriam de estranhar outros desenlaces. Mas pior ainda é a,
em geral, inquestionada atuação corrupta da classe médica, muitas vezes nem
agindo com o dolo associado legalmente ao crime de corrupção, ou seja, nada
recebendo por isso, mas emitindo, de qualquer forma, atestados a pedido. A
noção de corrupção está longe de se restringir ao crime tipificado no código
penal, correspondendo a toda a atuação que contribui para a putrefação do
tecido social, nomeadamente através da efetivação da desigualdade de
tratamento, do sacrifício daqueles que têm sentido de dever em favor daqueles
que não têm quaisquer princípios ou só têm códigos morais convencionais e/ou
para os outros, do prejuízo das instituições e empresas, assim contribuindo sem
cessar para o prejuízo global do todo social. Claro que nem se sente a
diferença numa sociedade toda infetada pelo tráfico de influências e pela
gestão constante do comércio de favores. E isto é algo que toda a “gente” sabe,
embora nunca o diga explicitamente – mas estava implícito em cada vez que me fizeram
a sugestão de arranjar um atestado. E, se bem que considero infundadas as
pretensões de valores éticos intrínsecos, não posso deixar de repudiar as
atuações que não podem deixar de agravar a saúde social, âmbito de onde sempre
vieram os referidos valores, mesmo quando foram, como sempre, mal pensados em
termos de vantagens para o tecido social. Não, não fui, nem vou “arranjar”
nenhum atestado e considero a própria sugestão insultuosa, considerando-me,
implicitamente, um dos deles.
O meu estado de saúde
fornece o primeiro conjunto de razões não propriamente porque veja grande
problema na morte, mas porque essa morte ocorreria sem sequer me ter libertado,
por fim, do ambiente kafkiano dito da educação. Mas isso será tratado nas
motivações seguintes.
Em segundo lugar, a
deterioração assustadora das minhas capacidades cognitivas. Este motivo deve
também ser associado ao primeiro conjunto. O ambiente a que se chama sistema de
ensino é dos mais corruptos que conheço, no sentido em que tratei a noção de corrupção
no parágrafo anterior, ou seja, sem que, em geral, na maioria dos casos, ninguém
receba dinheiro por nada. É verdade que, no passado, cheguei a suspeitar que
muitos professores eram especialmente rígidos a “dar notas” para criar clientes
para o negócio das explicações que transacionavam com professores idênticos de
outras escolas (e, por vezes, da própria escola). Alguns chegaram mesmo a
confidenciar-me ser essa uma sua prática perfeitamente consciente, muito embora
certamente o negassem em público. Esse negócio, porém, reduziu-se muito
significativamente com a multiplicação de medidas inclusivas. Considero mesmo
este o único aspeto inequivocamente positivo de tais medidas. Claro que ainda
se vai fazendo o negócio, mas muito mais vocacionado para as pretensões de pais
e alunos atingirem classificações superiores às que normalmente atingiriam para
conseguir ingressar em certos cursos. Sendo assim, como posso considerar que o
ambiente do ensino é extremamente corrupto? A maioria das vezes a razão para
tal ambiente é simplesmente a preguiça. Imagine-se um docente que faz o mesmo
teste para todas as turmas. Obviamente, a primeira turma a que é aplicado o
teste é extremamente prejudicada, pois as outras já vão saber o que “sai”. Não
deveria a mínima decência fazer com que o professor assim não procedesse? Qual
quê. Alguns obrigam os alunos a entregarem o enunciado, com uma esperança
mágica que assim a informação não chegue aos outros. Nunca lhes passa pela
cabeça terem um pouco mais de trabalho. Já nem falo das ótimas condições para a
cópia que esta única versão propicia. Muitos são os professores que declaram que
este e aquele aluno copiou por um outro. Nem circula uma aragem entre os
ouvidos a sugerir-lhe ser sua a responsabilidade de criar as condições para que
isso não aconteça. Ou melhor, circular, já circulou, mas habituaram-se à
prática e até podem arranjar argumentos esfarrapados para a justificar – por
exemplo, alegam ser injusto que umas versões possam ser mais difíceis que as
outras e que nos exames também só há uma versão ou duas com apenas trocas das escolhas
múltiplas. Nem referem a distância bem maior dos alunos nos exames, para lá da
simultaneidade. Podem até, frente à possibilidade de verdadeiras múltiplas
versões, como os alunos cábulas (que querem o colega do lado a fazer uma versão
igual) ou os da eterna galinha da vizinha que é sempre melhor que a minha,
isolarem uma questão no meio de 15 ou 20 e dizerem que é mais difícil que a
outra da outra versão, em vez de considerarem o todo do teste. Mas, sobretudo,
nunca referem o abismo que separa uma pequena eventual diferença de dificuldade
e a corrupção do tecido social que representa alguém que não sabe nada e nem
quer saber ter uma boa classificação que um aluno esforçado, mas isolado ou
honesto, não consegue ter. E o facto de não referirem algo tão óbvio evidencia
o verdadeiro motivo por trás das práticas, a fiel preguiça.
Alguns, tendo
consciência das múltiplas injustiças criadas por estas práticas, dizem
antecipadamente as perguntas que sairão e as respostas devidas, chegam mesmo a
ditar as respostas durante os testes e obtêm assim classificações muito
inclusivas. Escusado será dizer que assim que tal sistema se instala, toda a
aprendizagem cessa, como se pode verificar nos resultados se ocorrerem exames
externos, contra os quais estes professores são naturalmente os primeiros a
insurgirem-se. Claro que podem simplesmente acabar com quaisquer testes para
que não exista qualquer verdadeiro meio de escrutínio da aprendizagem, o que é
o que as Direções “modernas” defendem até por pressão das tutelas. Os outros
instrumentos de avaliação até podem ser, se fossem concretizados como foram
concebidos, bem mais exigentes, mas todos os docentes sabem que a sua
introdução se destina a alcançar o sucesso e não a aprendizagem. Bem me recordo
de como a bem exigente introdução dos portefólios se tornou rapidamente numa
grosseira avaliação da arrumação dos dossiers, deixando, a muito curto
prazo, de ter qualquer sentido. Mas arranja-se sempre novas formas de executar
fraudes do ponto de vista educativo e há sempre palhaços gurus da educação que
as sancionam todas, mesmo recorrendo aos piores sofismas como o de que, ao
levar a cabo verdadeiros testes e exames, se está a ensinar as crianças, como
se precisassem de tal ensino, “bons selvagens” dos tempos modernos, a serem
desonestas. Porém, caso nenhuma destas práticas forje o sucesso exigido, existe
uma miríade de outras práticas que não vou detalhar para forçar aprendizagens
fictícias, decisões arbitrárias de aprovação e de melhoria das classificações,
iniquidades múltiplas dentro dos mesmos estabelecimentos para satisfazer
interesses bem conectados e, finalmente, caso nada mais resulte, extorsões
autênticas sob ameaças veladas ou até explícitas. E a corrupção do tecido
social presente e, sobretudo, futuro não cessa de crescer, sempre sob a pressão
de políticos sem escrúpulos que sabem que a grande arma da demagogia desde a
antiga Grécia é a lisonja.
E o que tem tudo isto a
ver com a minha primeira afirmação? Ao longo de toda a minha carreira, procurei
ser decente. É difícil tal a indecência reinante. Para garantir a equidade,
multipliquei o meu trabalho cada vez mais, não só nos famigerados testes, mas
através de múltiplos outros instrumentos de avaliação. Se acabava por
inflacionar as classificações, fazia-o sempre segundo critérios universais.
Tendo em conta que a minha lecionação era invariavelmente mais exigente que o
habitual na disciplina em que sou formado, nem me parece que beneficiasse assim
muito os alunos com a referida inflação. Assim, porém, garantia aprendizagens
significativas a quem estivesse disposto a aprender. Isso tornou, durante
bastante tempo, menos absurda a atividade docente. Por outro lado, durante a
maior parte da minha carreira, na verdade a esmagadora maioria, fui sempre
diligente nos cumprimentos administrativos, até porque a incúria, o desleixo,
quando não a prevaricação em tais funções, é um terreno fértil para
proliferarem outras práticas corruptas. Porém, isso garantiu-me uma ainda maior
multiplicação do meu trabalho com inúmeras tarefas adicionais. Tal execução dessas
tarefas obrigou-me a não ter dias de descanso, a estar sempre ocupado e nunca
ter disponibilidade mental para mais nada. E assim desperdicei as minhas
capacidades cognitivas, diluídas neste ambiente tóxico em que apenas procurava
preservar a minha decência, cumprindo o que julgava serem os meus deveres.
Sobretudo, sinto-me sufocado por toda a atmosfera de inutilidade e absurdo que
pesou sobre todo esse exercício de longos anos. Estou longe de ser o único, em
menor ou maior grau, mas se quem assim age e assim se sente fosse a maioria, há
muito que o sistema de ensino seria algo mais decente. Porém, a maioria vai
apenas reagindo indolentemente ao ambiente e assim vai durando, ao passo que
alguns poucos se encarregam de mudar de crenças e princípios a cada mudança na
ideologia governamental, sempre garantindo a prossecução de todos os desígnios
do poder, sempre pensando em quais os argumentos que poderão ser carreados para
os defender e nunca revelando qualquer integridade ideológica própria que
persista para lá dos consulados, nem sequer procurando disfarçar com uma
aparência de articulação as mudanças sucessivas. Admito que também esta possa
ser uma tarefa árdua, mas é sempre mais fácil não ter espinha e assim se moldar
aos propósitos alheios e politicamente superiores. Sinceramente, não tenho
dúvidas que, se continuasse até ao fim da carreira, sobretudo tendo em conta
algumas circunstâncias adicionais mais recentes e que tratarei no terceiro
conjunto de razões, caso persistisse vivo, perderia as poucas faculdades que
ainda me restam. Quero tentar usá-las, por fim, em alguma coisa que valha a
pena e mesmo que já não o consiga fazer, ao menos libertarei deste teatro do
absurdo do sistema de ensino o que me restar de lucidez.
Em terceiro lugar, suponhamos
que, numa civilização extraterrestre longínqua, um jovem se licenceia em, por
exemplo, engenharia civil e que concorre a um emprego que exige, como condição
necessária, a licenciatura em engenharia civil e só em engenharia civil. É
aceite e começa a laborar, mas, desde o primeiro instante, é sistematicamente
censurado por usar até os mais elementares conceitos de engenharia. De facto, tudo
o que lhe é solicitado tem pouco ou nada a ver com engenharia civil: tem de
organizar eventos, elaborar relatórios relativos ao funcionamento da
organização, preencher infindos formulários, participar em atividades de
animação, etc., mas nem é requerido que faça, por exemplo, uma verificação da
planta de um edifício. Como a sua formação é aquela, não pode evitar recorrer a
ela aqui e acolá, mas fá-lo cada vez mais clandestinamente. A pouco e pouco,
perde as competências de engenharia que tinha e só lhe resta pensar em sair ou
olvidar a sua formação. Acontece que acaba por perceber que a hostilidade à
engenharia é generalizada no seu país e embora também perceba que inúmeros
desastres estavam a acontecer devido à negligência de tais competências, a
maioria não tem sequer competência para perceber que o caos nas construções e
outros empreendimentos advém desta atitude dessa mesma maioria. De facto, em
vez de reverem a sua atitude, culpam os meios académicos e exigem que eles se
tornem mais simples e acessíveis, em vez de se perderem em intrincadas
complexidades que julgam não servirem para nada. E, por muito óbvia que seja a
absurdidade, ninguém se questiona porque exigiam competências específicas no
acesso aos empregos, se depois as desprezavam ou menosprezavam.
Ora, essa é cada vez
mais a situação do nosso sistema dito educativo. Desde o início da minha
carreira, senti essa hostilidade generalizada ao saber académico. Grande parte
dos docentes e até dos responsáveis das escolas fazia gala de nunca mais ter
pegado num livro da sua área após o curso, se excetuarmos os manuais escolares.
Há já uns valentes anos, lembro-me de uma mestre de Geografia que passou uma
vergonha num concurso televisivo por não saber qual o estreito que separava a
Ásia da América. Isso não é nada de especial. A ignorância nas próprias áreas
dos docentes é verdadeiramente pandémica. Poderia dar muitos exemplos concretos
disso, mas o que é mais impressionante é que essa ignorância está muitas vezes
associada ao maior poder no seio das escolas, mantendo-se os docentes mais
conhecedores em posições discretas, a não ser que não haja alternativa. Não é
só nos regimes totalitários que o mérito é liquidado e se busca,
sistematicamente, valorizar a mediocridade, a ausência de princípios e o
servilismo. De facto, para poder contemporizar neste ambiente, assim como para
descer a bitola para a tornar compatível com o nível de conhecimento e de
linguagem requerido, o docente deve se tornar cada vez mais ignorante, quando
não mais estúpido. Não vale a pena fingir, será descoberto. Se quiser
sobreviver, terá de regredir e muito. Por outro lado, desde há muito que
qualquer valorização académica na área específica é menosprezada no Ensino
Básico e Secundário e o próprio impacto na carreira tornou-se cada vez menor. A
tentativa contrária de exigir a maior parte da formação contínua docente na
área específica foi rapidamente escamoteada, sendo considerada formação
específica tudo e mais alguma coisa que se enquadrasse nos desígnios
ministeriais, sobretudo a propaganda pedagógica e o desenvolvimento de
competências digitais. Há muito que ouvi responsáveis das escolas a defender
que qualquer professor poderia ensinar (já foi há tanto que ainda se dizia
ensinar) qualquer assunto. Presumo que hoje com a alegada inteligência
artificial e com as DAE ainda seria mais fácil. Na verdade, ao longo de muitos
anos, bem antes das DAE, o cumprimento programático já tinha sido reduzido a
uma superfície esquemática em que se considerava um mal aprofundar fosse o que
fosse. O ataque ao conhecimento pelo conhecimento foi e é constante,
pretendendo com tal ataque visar todo o saber disciplinar. Na verdade, os
ideólogos educativos defendiam e defendem a dissolução das disciplinas e o
próprio fim do ensino. O sistema educativo deveria, apenas, propiciar condições
para os alunos desenvolverem os seus projetos autónomos. Em todos os casos em
que se desenvolveu tal prática, esses projetos autonomamente desenvolvidos
eram, na maioria dos casos (claro que houve casos contrários e até brilhantes),
miseráveis. O papel dos docentes era, no fim, mascarar os resultados, dando
ideia de que tinha ocorrido uma grande aprendizagem. Nos casos em que não
existiam exames, podia-se inventar os resultados que se quisessem. De resto, os
entusiastas de tais práticas lutavam, invariavelmente, contra os exames, pelos
motivos mais que óbvios.
Essa tendência
generalizada teve um incremento muito significativo nos últimos anos. Até o
último consulado de centro-esquerda, apesar da atitude hostil para com o saber
académico, sempre senti poder dar contributos relevantes com base no meu
conhecimento quer entre pares, quer para os alunos. Isso mudou radicalmente. A
cartilha é a mesma que vinha desde o governo do virar do século, mas a
implementação muito mais forçada. Segundo essa cartilha que vou enunciar tão
mal explicada como chega aos professores, na sua forma mais primária, defendida
como modelo de indiscutíveis boas práticas, conhecer por conhecer é mau, o
saber académico disciplinar é péssimo (claro que se excetuam as ditas ciências
da educação), estamos a preparar os alunos para profissões que em breve
deixarão de existir, devemos é prepará-los para as profissões futuras. Há uns
tempos vi um cartoon (também há um vídeo) em que uma mãe se
gabava de ter um filho que não queria saber do que habitualmente se ensinava,
pois só queria estudar para profissões que ainda não tinham sido criadas (como
os sofistas da área da educação e da política repetem à exaustão). Questionada
acerca do que estudaria ou das profissões, respondia que não sabia porque,
afinal, ainda não teriam sido criadas. Mas, deixando a piada, o que pretendem
estes ideólogos em concreto defender? Já múltiplas vezes chamei a atenção para
o facto de que o argumento é sistematicamente usado contra os cursos
vocacionados para o prosseguimento de estudos, onde não se está a preparar
ninguém para nenhuma profissão específica, e não contra os cursos profissionais
que se tornam obsoletos a um ritmo alucinante – isto porque nestes já se
“passa” toda a gente há muito sem grande exigência (por vezes, nem pequena), o
que nem sempre acontece nos cursos alvos do ataque, o que mostra bem qual o
verdadeiro ideal prosseguido. Mas supondo que não se trataria de uma falácia do
espantalho, qual o objetivo destes ataques? O objetivo é diluir as exigências
disciplinares, promovendo as ditas competências transversais. Qualquer pessoa
sensata julgaria que as disciplinas de Matemática, Português, até mesmo
Filosofia ou Inglês, desenvolveriam competências transversais. Não é o que
estes ideólogos defendem. Todas estas disciplinas são obsoletas e deverão ser
dissolvidas, as profissões do futuro não precisam fazer operações matemáticas
complexas ou elaborar textos bem estruturados, devem saber comunicar de forma
clara e concisa, operativa, resolver problemas particulares, trabalhar em
equipa, ter capacidade de liderança e planificação e, sobretudo, inteligência
emocional. Ou seja, segundo os nossos ideólogos, as profissões do futuro serão
todas mais ou menos semelhantes aos nossos atuais políticos. Como os criticados
por Platão, não têm de saber nada de nada, mas têm de parecer saber perante a
multidão dos ignorantes, serão mestres de retórica e de manipulação coletiva,
adaptar-se-ão a todas as circunstâncias e farão eventos em que parecerão
imensamente inovadores enquanto dura a performance publicitária. Quanto ao que
ocorra depois, como consequências na sociedade, nunca os retóricos assumirão
qualquer responsabilidade. Se forem acusados, saberão se livrar com elegância
da situação apenas com mais retórica.
Reconheço até que a
recente viragem à direita aliviou um pouco a saturação ideológica que passava
por conhecimento dos assuntos nos anteriores responsáveis políticos. Porém,
esta direita só pode fazer isso, atenuar um pouco os efeitos mais nefastos da
política dita educativa. Além disso, a alternativa que pode surgir à direita é
ainda pior, como o mostrou bem o consulado de Crato ou as recentes declarações
sobre o assunto de deputados fascistas. A única alternativa que lhes passa pela
cabeça é a do mestre-escola e a reprodução dos modelos industriais de ensino,
razão, aliás, porque Crato não via nenhum problema no aumento muito
significativo do número de alunos por turmas. Afinal, as fábricas de produção
intensiva podiam juntar centenas de trabalhadores num pavilhão gigantesco a
executar quer as mesmas tarefas, quer as tarefas especializadas da produção em
série. Ao delírio do inferno da produtividade industrial, o partido de
centro-esquerda opôs o delírio do paraíso da felicidade imediata que garante a
escravização futura. Estas são as únicas alternativas que os nossos políticos e
ideólogos admitem, ou a memorização mecânica, ou a completa ausência de
exigência no saber. O verdadeiro desenvolvimento da autonomia intelectual,
alicerçado num conhecimento sólido e contextualizado, capaz de interpretar e
criticar, em suma, a formação iluminista do cidadão é-lhes completamente
estranha. O que chamam de crítica nas competências transversais é uma anedota,
um sucedâneo técnico redutor e simplista, sem que se julgue necessário, aliás,
qualquer conhecimento à partida. Ora, neste modelo que se mantém vitorioso,
mesmo se atenuado, deve-se abandonar os saberes disciplinares, desenvolver umas
místicas competências transversais hostis ao saber especializado, promover
eventos de dinamização dita cultural a todo o instante e reduzir as exigências
a um esqueleto ínfimo e indiferente. Mas, nesse caso, porque se continuam a
contratar professores por grupos disciplinares? Aquilo que é requerido no atual
sistema pode ser satisfeito por qualquer um, de forma tão indiferenciada como a
formação que se está a propiciar aos próprios alunos (naturalmente, nestas
periferias desfavorecidas, as elites não têm esta formação). Porque razão me
contrataram a mim, há mais de 36 anos, licenciado em Filosofia? Ou teria sido
contratado pela posterior licenciatura no Ramo Educacional?
Obviamente, não. Não só
esse Ramo Educacional também estava ligado à disciplina, como até mesmo os
partidários no sistema desta dissolução disciplinar nunca quiseram ou souberam
aplicar modelo pedagógico nenhum. Quando me formei, ainda se seguia a pedagogia
por objetivos, nomeadamente a chamada pedagogia da mestria. Tratava-se de um
modelo temporal em que se admitia a existência de ritmos diferentes de
aprendizagem conforme os conteúdos ou atividades. Um aluno poderia só alcançar
determinado objetivo mais tarde que outro, ao passo que o outro poderia levar
mais tempo a alcançar um outro objetivo. Os alunos mais adiantados eram
estimulados para servirem de monitores aos que revelavam maior dificuldade num
dado objetivo, isto para lá da simples diferenciação do próprio ensino.
Associada a esta pedagogia da mestria estava a preponderância da avaliação
formativa contínua. Apesar deste modelo ser na altura já clássico, ainda hoje
parece revolucionário para muitos professores, quando sequer o compreendem.
Lembro-me de, em pleno Conselho Pedagógico, ainda nos anos 90, estarem a
elogiar planificações apenas por usarem infinitivos que expressavam objetivos
apenas do professor ou que eram tão vagos ou psíquicos que eram inobserváveis,
mostrando claramente não terem a mínima ideia da taxonomia de Bloom e muito
menos do seu fundamento comportamentalista. Ainda hoje, pelo menos um quarto de
século depois de todos os programas e documentos oficiais do ministério
transmitirem a ideia de que a avaliação discente deveria ser predominantemente
formativa, muitos desses documentos defendendo que a única avaliação sumativa
deveria ser a do final de períodos ou semestres e anos letivos, ainda a maioria
dos docentes continua a defender que a avaliação formativa não pode contar para
nada. Que alguém tente mostrar a contradição entre considerar a avaliação
predominante formativa e a avaliação formativa não contar para nada a esta
gente – é inútil, não consegue incorporar o mais elementar dos argumentos.
Pessoalmente, desde os anos 90 e até ser explicitamente proibido, apliquei este
modelo temporal, não só para atingir os níveis mínimos, mas também mais altos,
conforme os diferentes projetos de vida dos alunos, defendi-o nos relatórios,
todos sabiam que o fazia, tendo até consciência do enorme trabalho que isso me
dava (basta dizer que os testes e outros instrumentos eram sempre diferentes).
Porém, houve alunos de um outro docente com suficiente poder na instituição que
se atreveram a dizer-lhe que prefeririam ter-me a mim como professor. Não
demorou muito tempo a vir uma proibição do Conselho Pedagógico (outro que não o
anteriormente referido) a exigir que não fizesse quaisquer testes de
recuperação (o que não era exatamente o que eu fazia), que reduzisse toda a
avaliação a 5 exames sem sequer 2ª chamada a valer 90%. Em grupo, a única razão
aceitável que foi apresentada (para lá de uma confusa avaliação de atitudes que
já eram avaliadas numa outra rubrica, como se fosse uma componente adicional
oculta) foi a de se ter de uniformizar e, como o meu modelo dava muito
trabalho, teria de se adotar o tradicional (como se o de Bloom não fosse já
tradicional…). A decisão foi, na verdade, totalmente ad hominem.
Inúmeros outros docentes faziam testes de recuperação e continuaram a fazer, sem
o menor problema, a proibição aplicou-se apenas a mim. Mas foi possível ser
decidida como se fosse geral. Ora, resta perguntar, para que serviram nesse
caso as competências do referido Ramo Educacional?
Inúmeros exemplos
poderia trazer de atropelos equivalentes, contrários aos conteúdos mais
elementares em termos pedagógicos (diferenciação pedagógica trocada pela exigência
de uniformidade, diversificação dos instrumentos de avaliação sacrificada à
redução da avaliação a testes rigidamente formatados, projetos
interdisciplinares considerados irrelevantes, clubes extracurriculares desprezados,
etc.), nomeadamente levados a cabo por muitos dos mais tarde defensores da
dissolução do saber disciplinar. É verdade que as disciplinas são repartições
artificiais, mas muito mais o são estas competências transversais desencarnadas
que ensinam a comunicar sem ter nada para dizer ou reduzem a crítica a um
esquema técnico simplista de consideração de prós e contras. Aliás, este
enfoque, já com alguns anos, nestas competências transversais tem produzido um
aumento da capacidade comunicativa, crítica, problemática ou de adaptação?
Obviamente, não, antes pelo contrário. Reduzir essas atuações a um esqueleto
técnico torna incapaz a maioria dos indivíduos de qualquer crítica ou
autonomia, apenas cumprindo mecanicamente tarefas elementares que os
entusiastas poderão depois tentar sobrevalorizar, ao passo que uma minoria as
desenvolve como sempre fez, mas com muito menos instrumentos para o fazer que
no passado. Porquê? Porque quem fornecia estes instrumentos, pior ou melhor,
eram as disciplinas agora desprezadas e reduzidas, elas próprias, a um esqueleto
rudimentar (as DAE) onde, por vezes, já quase não se consegue dar sentido ao
que ainda é dito. Não se aprende a dizer nada não tendo nada para dizer. Claro
que isto é programa para a inclusividade das periferias mais excluídas, porque,
aqui como talvez em toda a Europa, já para não falar do império, existem
escolas de excelência para os filhos das elites. Nestas periferias, só
interessa formar pessoal indiferenciado, capaz de se adaptar a qualquer
emprego, desde que implique muito poucos ou nenhuns conhecimentos. E assim a
inclusividade é a melhor garantia que muito poucos, de preferência ninguém,
ascende pelo seu saber e vai incomodar as elites. Quase ninguém aplica modelos
pedagógicos nenhuns, por muito que digam o contrário e às vezes até tentem
fingir, porque se sabe que o único objetivo é apresentar sucesso, mesmo sem
aprendizagem nenhuma, como acontece na maioria dos casos do ensino especial. Os
alunos do Ensino Especial são despejados, sem qualquer enquadramento, até em
turmas científicas, e perante as evidências da absoluta ausência de
aprendizagem dos conteúdos mais elementares, o que os comissários do Ensino
Especial fazem é forçar os docentes a darem positivas. São até capazes de
defender a diversificação da avaliação, a consideração dos diferentes estilos
de aprendizagem ou dos diversos tipos de inteligência, alegar procurar garantir
que alguma aprendizagem de algum tipo se realiza, mas assim que o docente dá a
positiva, mesmo dizendo explicitamente que o aluno não sabe nada, imediatamente
se deixa de falar no assunto, ninguém do Ensino Especial vai verificar se houve
a mais ínfima aprendizagem – o que prova que pouco importa se o aluno aprende
alguma coisa ou não, o que importa é fingir que aprendeu. Mas o que isso
significa é que estes alunos, com muito poucas exceções, estão simplesmente
abandonados nas escolas e todos, em primeiro lugar a tutela, estão a se
borrifar para eles. Assim, os governos poupam muito em relação ao que seria um
verdadeiro Ensino Especial e a lisonja democrática apraz em geral ao povo. A
multiplicação de docentes do Ensino Especial não visou, em geral, apoiar estes
alunos, nem sequer foi dada aos docentes uma formação adequada a tal desígnio.
Sabe-se hoje, aliás, que mesmo as poucas exigências dessa formação não foram em
muitos casos cumpridas. Os docentes encontraram aqui um expediente para se
efetivarem, desfalcando, aliás, os seus grupos originais de recrutamento
disciplinar, o que é uma das razões da atual rápida falta de professores. A
tutela procurou criar um corpo de comissários cuja missão era garantir o pleno
sucesso que não foi garantido em tentativas anteriores, como a do governo
Guterres.
Visto a aprendizagem
não importar, nem no Ensino Especial, nem fora dele o objetivo dos governos se
encontra nela: o que importa é arranjar instrumentos contra os professores que
ainda mantêm alguma exigência para impedir que eles maculem a imagem de
sucesso. Para isso, estão dispostos a gastar muito dinheiro, mas não para a
aprendizagem, porque, tal como para os sofistas da Idade Antiga e os políticos
de todas as eras, o que importa é parecer conhecedor perante a multidão de
ignorantes e não ser, de facto, conhecedor. Se se exigisse a aprendizagem, era
sempre possível verificar a não aprendizagem. O melhor é acabar com tal
exigência espúria sobretudo para as classes baixas e garantir, em qualquer
caso, o sucesso. Porém, como já tive a oportunidade de defender inúmeras vezes,
se estes políticos e os responsáveis, por exemplo, do Conselho Nacional de
Educação se insurgem desde o século passado contra qualquer retenção,
considerando-as sempre como nefastas, porque é que não acabam com elas? Caso
não houvesse retenções, não seria necessário recorrer a uma constante fraude
avaliativa e os dados teriam um mínimo de fiabilidade que hoje não têm. Então,
porque não o fazem? Porque não querem ficar com o ónus da medida. Preferem
criar um corpo de comissários destinados a forçar que os professores
falsifiquem as avaliações, preferem aviltar a dignidade profissional docente,
forçando-os a mentir sistematicamente, preferem culpabilizar os docentes,
instilando constantemente má consciência sobre as suas práticas e exigindo o
cumprimento de práticas impossíveis, cujo único objetivo é forçar os mais
resistentes professores a aderirem à bem mais fácil fraude – do que assumir
frontalmente o que desejam. E os Institutos de Educação vão inovando
constantemente a retórica gongórica não para levar a cabo novas práticas
educativas, mas para intimidar os docentes até eles se convencerem a efetuar a
fraude requerida que, nos últimos tempos, já não é só a das aprovações, mas a
dos níveis atingidos, procurando garantir uma esmagadora maioria de Bons e
Muito Bons. Quando nas manifestações os sindicatos tradicionais faziam os
docentes exigir respeito, traduzindo-se isso apenas na tabela salarial, eu não
podia deixar de me insurgir. Nunca ninguém faltou ao respeito a ninguém por o
salário ser mais baixo que um outro, nem ninguém mostrou qualquer respeito por
ter dado um maior salário. Mas estas práticas que aqui descrevo e que os
sindicatos tradicionais subscrevem, não só faltam ao respeito, como são
verdadeiramente aviltantes dos docentes. E embora eu tivesse sido
suficientemente flexível para quase nunca tais práticas me terem atingido
(apenas uma vez no segundo ano da carreira), isso não significa que eu não as
tivesse visto inúmeras vezes em execução e só muito raramente com boas razões
(porque, na verdade, também há casos de puros abusos de docentes).
Mas o desrespeito é
muito mais amplo. Exige-se a todos os docentes a rigorosa planificação das suas
aulas ao longo do ano e até aula a aula. As maiores planificações têm que ser
burocraticamente depositadas em várias instâncias. Porém, qualquer político sem
qualquer conexão com a escola pode decidir boicotar as aulas e atividades
previstas porque hoje é o Dia da Poupança, amanhã o Dia da Paz, depois da
amanhã tem de se receber o senhor ministro, talvez devido a uma outra
comemoração qualquer, num outro dia o senhor presidente da Câmara, quem sabe
depois vem o Marcelo, de seguida parte da turma vai para Erasmus, deputados
apresentam-se para sessões do Parlamento Jovem, visita de estudo aqui, ali,
acolá, almoço do Dia da Filosofia, peça de teatro hoje, amanhã ou depois, numa
outra semana, um torneio de voleibol, em seguida decide-se fazer não um
simulacro da proteção civil, mas uma preparação de um simulacro, depois vem uma
enfermeira no âmbito da Educação Sexual, na sequência o próprio simulacro, ou
melhor, dois, um de incêndio, noutra semana de sismo, segue-se o Dia do
Patrono, outro é dedicado às apresentação de projetos dos cursos profissionais,
depois um desfile de modelos, mais além o dia aberto para as instituições de
Ensino Superior, adiante o Dia do Agrupamento, mais um corta-mato e outro
torneio, desta vez de futebol, quermesse para arranjar fundos para o passeio de
fim de ano, e assim por diante sem parar – e então para que é que se planificou
o desenvolvimento curricular? Importa sequer o que se faz na sala de aula? O
desprezo pelo trabalho letivo tornou-se tão ordinário que os professores já nem
se indignam perante o constante boicote da sua atividade, sabem bem que a aula
está em último lugar na lista das prioridades – e, se algumas dessas atividades
alternativas estavam programadas com antecedência, muitas não estavam (sobretudo
as políticas) ou são tantas que não é possível tornar exequível qualquer
planificação da lecionação. E isto porque se considera que a essência da Escola
hoje está em todo esse caos de atividades e de forma alguma nas aulas, por mais
dinâmicas que estas sejam. Estas tornaram-se quase obsoletas por todas estas
periferias que vão parar ao fundo dos rankings dos exames e os
responsáveis nem querem ouvir falar numa diminuição destas dinamizações, até
por serem estas que têm visibilidade e, tal como em relação aos políticos,
afere-se o valor das escolas por esta ostentação tantas vezes vazia. Muitas
vezes se sublinha que o desrespeito se evidencia antes de mais na indisciplina
discente. Mas porque razão os alunos manifestariam grande respeito por quem é
de forma tão generalizada desrespeitado? Não será mais natural que reflitam o
menosprezo ambiente e, como tal, pouco se preocupem em cumprir orientações
docentes? Porque deveriam respeitar alguém que foi contratado por um saber do
qual, depois, ninguém quer saber, exigindo-lhe, ao contrário, que cumpra
tarefas indiferenciadas, quando não ridículas? O que é surpreendente é que
ainda tantos alunos não se deixem influenciar por tal ambiente e tentem levar a
cabo as atividades dinamizadas pelos docentes. Ainda mais surpreendente é que
ainda haja alunos, nestas periferias, que tentem verdadeiramente aprender. E
verdadeiramente espantoso é que, entre estes, ainda haja alunos que aprendam
alguma coisa… Aprendem apesar da Escola e não por causa da Escola. Pela Escola
atual, pouco importaria que aprendessem ou não.
O que se passou nos últimos anos convenceu-me que já nada tinha a dar ao sistema dito educativo. Muitíssimo mais haveria a dizer e muito tenho dito noutros artigos. Mas julgo ter apresentado, de forma elementar, alguns dos motivos mais imperiosos. Aguentei o suficiente até poder garantir a sobrevivência com a aposentação. Pela primeira vez na vida, poderei ter uma espécie de bolsa para levar a cabo verdadeiro trabalho na minha área. Infelizmente, temo já não ter as capacidades para o fazer. Mas vou tentar.
(Nota: comecei o artigo em 17/10)