Inteligência Artificial II
A inteligência artificial. Não uma, não um esboço, mas a
completa e a definitiva. As ferramentas denominadas inteligência artificial
generativa foram apresentadas como o advento, enfim, da inteligência
artificial. Há muito que se falava de inteligência artificial nos jogos, na
medicina, na engenharia, etc., assim como se distinguia essas IA fracas da
possibilidade e ameaça de uma IA forte, mas todas essas noções foram rapidamente
esquecidas e, hoje, se um aluno fizer um trabalho sobre IA, já nem considera
quaisquer outras possibilidades que não as aplicações referidas. A IA foi
inventada há dois anos e meio e nada existia antes, nem existirá depois a que
seja adequado chamar IA. Quanto muito, existirão versões mais avançadas desta
mesma IA. É assim que se apresentam esses instrumentos nos media e,
logo, é a verdade indiscutível, até por exatamente nem ser já apresentado como
informação, mas referência contextual constantemente suposta ou que acompanha
os dados alegadamente relevantes de mera forma adverbial. Tratou-se de um golpe
publicitário executado de forma magistral, apesar de ser um disparate e nem por
isso ser menos ameaçador e desastroso.
Há poucos meses fiz uma pequena experiência. Pediam-me,
na escola em que sou funcionário, para arranjar citações de filósofos
relacionadas com a alimentação. Fui à mais conhecida plataforma do género e
solicitei tais citações, com a exigência adicional que fossem indicadas as
obras de que eram extraídas. Quando cheguei às 30 citações, dei-me por
satisfeito. Uma parte delas nem sequer era de filósofos, o que já é sinal da
forma solta como na net e nas gentes se usa a palavra. Essas nem as
considerei. Muitas das obras referidas eram bem familiares. Porém, mesmo destas,
descarreguei versões digitais em diversas línguas e fiz buscas sistemáticas,
não só com as palavras das citações, mas com inúmeras palavras próximas.
Demorei dois dias a certificar-me, mas valeu a pena: nem uma das citações era
verdadeira. Nem uma. Nem sequer eram paráfrases de frases próximas. Muitas (não
todas) nem tinham qualquer relação com o pensamento do autor. E assim alcancei
a minha primeira revelação: estas aplicações não eram sequer de IA mesmo num
sentido muito fraco de IA; eram sim aplicações de AA: aldrabice artificial. A
explicação para o facto é deveras simples e nem requer muita imaginação ou
especulação. Há muito me insurjo, em diversos textos, até sob outra assinatura,
contra a falsa atribuição de frases a autores que se tornaram icónicos. Cheguei
mesmo a denunciar a utilização de múltiplas dessas atribuições por professores
em instâncias públicas e/ou educativas. É chocante como professores de uma área
não são capazes de ver que determinados lugares-comuns ou frases de autoajuda
não poderiam ser de determinado autor que tinham a obrigação de conhecer. Já tentei
explicar noutros textos, de forma mais aprofundada, como isto pode chegar a
acontecer. Aqui bastará uma referência factual elementar. A verdade é que a
generalidade dos professores já não lê ou não lê senão o que vem nos manuais,
com soluções e tudo dos exercícios, ou ainda só lê os livros pimba que se
vendem ao lado das couves nos hipermercados. Alguns nunca leram os autores que têm
de ensinar, limitando-se a recolher informações de livros generalistas ou, mais
recentemente, das wiki espalhadas pela net. Ora, a suposta IA não
faz algo diverso: toma como referência o que apanha na internet,
basicamente uma imensa Babilónia de lixo da gente que apenas reflete aquilo que
a gente pode entender, e produz múltiplas combinações de tais fontes, forjando
novos textos incapazes de ir além daquilo que é fornecido pelas wikipedias
deste fluxo massivo.
Já no artigo de há um ano eu me referia, lateralmente, ao
início do recurso discente para tudo a estas ferramentas. Um ano depois, o
fenómeno tornou-se avassalador. Pelo menos, 90% dos alunos recorre a estas
ferramentas para todos os trabalhos em que as podem usar (“poder” da lógica
modal, não estou a usar o sentido legal) e a maior parte fá-lo sem a menor
adaptação crítica, transpondo diretamente as respostas. Isto poderia dizer
muito ao guru pedagógico que dizia que era o sistema de ensino que ensinava,
com os testes, os alunos a serem desonestos, mas, provavelmente, ainda consideraria
o facto uma confirmação, mesmo se se está a incluir modalidades de ensino em
que, praticamente, já nem há testes (cursos profissionais). A desonestidade da
gente, o grosso dos indivíduos existentes, só é limitada pelo medo de ser
apanhada. Aliás, isto é algo que o guru referido bem sabe, embora diga o
inverso, por exercício próprio da mais desavergonhada desonestidade que muito
se preocupa a não ver escrutinada. Um meio de se ser desonesto que não deixa
traço, com recurso a muito pouco esforço, é o ideal para a maioria dos alunos
que os pais condicionaram a conseguir classificações, mas não qualquer
motivação para conhecer seja o que for por intrínseco valor do conhecimento. Porém,
significa isto que a qualidade dos trabalhos subiu dramaticamente? Não,
aconteceu o inverso, a qualidade diminuiu. Mesmo em trabalhos anteriores em que
a maior parte dos trabalhos era constituída por informações recolhidas na net,
assim como em trabalhos com análises e reflexões retiradas da mesma net,
os resultados anteriores eram bem superiores na diversidade dos dados, análise
dos factos e aprofundamento das reflexões a partir desses factos. Apenas
estavam um pouco melhores na explicação de teorias filosóficas a que os
trabalhos recorriam, embora muitas vezes sem estabelecimento de conexão com o
assunto tratado, mas isso apenas por essa ser a parte pior de trabalhos
anteriores e não por grande qualidade das abordagens.
Comuniquei isto aos alunos, tal menor qualidade
refletiu-se nas classificações obtidas, logo, seria de esperar que pelo menos
haja um uso discente menos acéfalo da próxima vez que usarem estas ferramentas.
Errado. Já é difícil que o uso desta suposta IA aumente e que ele seja muito
mais acéfalo, mas não haverá qualquer diminuição do seu uso ou do seu uso
acrítico. A razão é a mais simples que pode existir e levará ao triunfo da IA:
preguiça. Os melhores trabalhos do passado davam, passe o pleonasmo, trabalho. Os
atuais são conseguidos com um esforço mínimo. Como não existe nenhuma motivação
intrínseca para o conhecimento, uma classificação mediana sem nenhum esforço e
nenhuma aprendizagem será inequivocamente preferível para a esmagadora maioria
a uma classificação melhor após algum esforço e alguma aprendizagem. Que importa
que o material fornecido seja fraco ou mediano? É à borla e não deixa rasto do
plágio. Os programas entretanto feitos para o detetar dificilmente poderiam
justificar qualquer penalização no ensino obrigatório. Naturalmente, haverá
muitos que defenderão que a fraca qualidade advém das versões gratuitas
utilizadas. Novamente, cairão em erro. Já existem alunos que recorrem às
versões pagas para garantir melhores classificações – e deles vem a maioria dos
protestos por não atingirem as classificações desejadas. Aliás, em breve, esta
conjunção entre preguiça e universalidade levará a que se considere que o
conhecimento é o que é “produzido” por estas aplicações.
Isso
já acontecia de forma limitada com o anterior oráculo, a Wikipedia, mas
será muito mais absoluto o veredito futuro. Os alunos que estão no ensino
básico não conhecerão, aliás, outra realidade e haverá reforços docentes
contínuos desta situação. Aliás, se os alunos ainda conseguirem pensar alguma
coisa, mesmo que falaciosa, pensarão que o erro estará no professor que ainda
saiba alguma coisa de alguma coisa porque apenas veem nas respostas da IA enunciados
articulados que seriam incapazes de produzir e que, por isso, deverão
corresponder ao saber. Trata-se da elaboração artificial do retórico segundo
Platão, um ignorante que parece sábio (de facto, mais sábio que os sábios)
perante uma multidão de ignorantes. E o pior é que tal avaliação será secundada
por um grande número de docentes que procurará colmatar a sua ignorância nas
mais diversas matérias com as respostas da IA. Cheguei a assistir, não agora,
mas já há perto de 20 anos, a ações de formação para docentes sobre assuntos
sérios, por exemplo, as perturbações da aprendizagem provocadas por problemas
no desenvolvimento da linguagem, que apenas recorria à informação
disponibilizada na internet mais generalista, assumidamente, sem o menor
recurso à mais débil fonte académica. E os formandos docentes, em geral, não
viam o menor problema nesta ligeireza com que estava a ser tratado um assunto
tão delicado para a profissão porque, na verdade, esse já era na altura o
ambiente cultural em que se movia um grande número de docentes. Ao longo dos
anos, assisti a inúmeras provas de que a maioria dos docentes ancora o seu
saber nos manuais, na wikipedia e outros sites superficiais, e nas
frases feitas que recolhe nas redes sociais. A lista que eu referi acima de supostas
frases filosóficas acerca da alimentação seria aceite pela maioria sem a menor
das suspeitas ou, se a tivessem, seria calada por dar muito trabalho a
verificação. Perante tal atitude, quem poderá pôr em causa que, em breve, a
maioria dos professores tomará como indiscutíveis as respostas da IA, a não ser
os próprios que o fizerem e que procurarão negar que o fizeram enquanto tiverem
a consciência de estar a praticar um crime intelectual. E, naturalmente, como
no retórico de Platão, o verdadeiramente conhecedor acabará por passar, junto
da massa inarticulada, por ignorante frente ao ignorante articulado.
Estou
a ignorar em geral o entusiasmo de muitos professores nesta IA como ferramenta
pedagógica porque o contexto que permite tal entusiasmo já foi tratado, por
mim, noutros textos. Não é diferente do entusiamo que também muitos professores
mostram pelos meios digitais, incluindo o telemóvel, na sala de aula. No atual
sistema dito educativo, a última coisa que importa é o conhecimento. Importa a
inclusão que, na verdade, é um completo abandono dos alunos com necessidades
especiais que apenas importa passar sem nada, a qualquer nível, aprenderem, e
importa o bem-estar imediato, isto ao menos na escola pública das massas. Mas
não deixa de importar a fraude de proceder como se a escola continuasse a
providenciar conhecimento e a fraude de ocultar esta fraude. A maioria das
famílias só quer é que as classificações garantam a certificação e a
progressão, mas, mesmo ela, se inquirida, continuaria a mentir quanto ao
objetivo do conhecimento. Como é então operada a fraude? Por exemplo, através
de banalidades pedagógicas como a diferenciação dos instrumentos de avaliação,
pode-se falar de estilos de aprendizagem ou de tipos de inteligência, mas,
concretamente, a única coisa que se visa é eliminar os instrumentos de escrutínio
rigoroso da aprendizagem e substituí-los por outros que permitam a pura e
simples cópia da internet como se fosse a concretização de uma
aprendizagem. Na verdade, se a diferenciação referida dos instrumentos fosse
rigorosamente realizada, levaria a uma avaliação muito mais exigente que a
tradicional (é só pensar naquilo que teoricamente se pretendia fazer com os
portefólios e comparar com aquilo que, durante algum tempo, efetivamente, se
realizou). Porém, todos sabem, embora poucos o digam, que o único objetivo de
todas as inovações introduzidas há décadas é o de garantir o sucesso a todos,
todos, todos, mesmo que saibam cada vez menos. Claro que, como muitas vezes
tenho defendido, isso poderia ser garantido acabando de vez com a possibilidade
de retenção. Seria menos arbitrário do que agora acontece e não implicaria o
aviltamento dos docentes, constantemente forçados a participar nas fraudes e
ainda forçados, no final, caso ainda não se obtenha sucesso, a adulterar, mais
uma vez, os resultados. Mas isso implicaria o reconhecimento da fraude e da
fraude da fraude, e os nossos políticos preferem ultrajar uma classe inteira
com a imposição de procedimentos indignos da sua natureza, pois ela é
constituída de pessoas selecionadas pelos seus saberes, do que proceder de
forma decente. Mas já muito disse noutros textos a este propósito e a respeito
dos sistemáticos recursos falaciosos e demagógicos que certos políticos
papagueiam à exaustão, como se fossem justificações legítimas dos seus
procedimentos. Agora, basta salientar que um tal ambiente fraudulento não cria quaisquer
anticorpos à entusiástica utilização massiva desta IA por professores e alunos.
Tentarão alguns docentes defender as virtualidades pedagógicas do instrumento e
será apenas mais uma aldrabice a juntar às anteriores. Qualquer escrutínio
sério e rigoroso das aprendizagens assim obtidas chegaria à conclusão que
quanto mais exclusiva foi a sua utilização, tanto menor foi a aprendizagem do
assunto.
Voltando
à questão anterior, muitos dirão que a fraca qualidade destes aplicativos
deriva do caráter ainda experimental e pouco desenvolvido da IA. A minha filha
engenheira procurou, nos primeiros tempos da novidade, avaliar a qualidade da
IA em matéria de programação. Terá ficado surpreendida com a boa qualidade dos
resultados. Depois, fê-lo de novo bem mais tarde. Desta vez, os resultados
foram desastrosos, nem uma única linha se aproveitava. Porquê? Naturalmente,
porque o programa “aprende” com os utilizadores e a esmagadora maioria dos
utilizadores é ignorante. Não há, aliás, melhor demonstração para a falência
dos critérios democráticos. Não há nenhum assunto em que seja a maioria que tem
razão e a única razão para os ditos regimes democráticos se manterem de pé é o
facto de dependerem muito mais das deliberações dos especialistas em cada
assunto, mesmo que não sejam os melhores, pois os nossos políticos não têm
habitualmente grandes capacidades para os identificar, e não no veredito da
massa. A maior sabedoria que a massa pode ter é a de não entregar a construção
das casas, as operações cirúrgicas ou a fabricação de medicamentos ao seu
veredito, mas sim a quem percebe alguma coisa do assunto. E esse facto chegaria
para demonstrar que a pretensão de Feyerabend de subordinar os projetos
científicos às decisões da opinião pública até poderá ser democrática, mas
longe de sustentar o seu relativismo, sustentaria apenas a barbárie e, muito
provavelmente, uma barbárie extremamente dogmática, sem necessidade da menor
justificação ou tudo justificando percorrendo toda a enumeração das falácias
mais grosseiras.
Já
disse anteriormente, as atuais aplicações de IA são a realização artificial da
gente, dessa existência inautêntica que só ecoa o que se diz, o que se faz, o
que se considera correto e adequado, que toma por constante referência o “toda
a gente” e que apenas vive reagindo aos estímulos do ambiente imediato,
nomeadamente o social, preocupando-se imenso com a sintonização com os balidos
de um rebanho ou os uivos de uma matilha. O que importa é a conformação a um
coletivo, a uma fé, a uma linguagem elementar que permita o condicionamento
mais estereotipado. Poderá surpreender alguns que as aplicações tenham
escolhido recolher os dados de sites como a wikipedia em vez de
tantos recursos académicos bem mais elaborados também acessíveis na internet.
Por exemplo, na minha área, porque não recorrer à Enciclopédia Stanford de
Filosofia, para dar apenas um exemplo? Ou porque não recolher os repositórios
universitários, já consideravelmente digitalizados, muitos com acesso público
ou com credenciais acessíveis? É difícil admitir que o faça, tendo em conta a
indigência de muitos dos seus conteúdos, mas, se o faz, não só o fará de forma
muito parcial, mas situar-se-á num plano de equiparação com os sites
generalistas e até as redes sociais. Se ainda não faz, muitos considerarão que
tal se deverá à imensidade da tarefa a realizar, à quantidade avassaladora de
informação que terá de ser recolhida. Porém, pergunto-me se a introdução de
informação académica muito certificada alterará alguma coisa, pois estes
instrumentos destinam-se a ter sucesso junto do grande público e terão sempre
vantagens em dizer o que por aí se diz, o considerado politicamente correto em
cada momento e circunstância, usando a linguagem predominante nos media.
E tem e terá imenso sucesso apenas porque os utilizadores pressupõem que as
respostas resultam do maior saber existente, não tendo qualquer possibilidade
ou interesse ou disponibilidade para o esforço necessário para verificar o
melhor saber e não havendo, por isso, qualquer razão para as aplicações se
darem ao trabalho de se submeter a qualquer saber especializado. Ninguém dará
qualquer importância a uns quantos académicos que sublinhem os erros da IA
porque, voltando ao início, o que importa é ter uma resposta fácil para todas
as questões e essa será, por ser fácil, a resposta absoluta e definitiva. Como
é óbvio, essas aplicações podem melhorar e estão a melhorar, mas não me parece
que percam de vista o maior filão, a sua ligação à conformação da gente que,
aliás, será sempre o seu maior cliente.
Resta
perguntar se estamos, de facto, perante uma inteligência. Certamente, não
estamos perante o que se tem chamado uma IA forte. Parece capaz de aplicar
conhecimentos, tem consciência do ambiente e aprende com ele, mas isso só de
forma muito rudimentar poderá corresponder à noção. A confusão implícita que
ninguém explicita é que boa parte, na verdade o grosso, da chamada inteligência
natural humana não é mais que isso, reação ao ambiente e capacidade de aplicar
conhecimentos a problemas concretos. Na verdade, estas aplicações são em geral
muito melhores a fazer isso do que a maioria dos seres humanos. Mas, exatamente,
esses seres humanos pouco confiam nos seus recursos estritamente individuais,
preferindo seguir o grosso dos outros do meio a que pertencem. Isso é a
natureza da sua existência, é o que é próprio da gente e é por isso que não deveria
surpreender a tendência avassaladora para a desonestidade quando desaparece o
medo de ser apanhado. As pessoas verdadeiramente honestas e não honestas por
medo, são-no pelo seu orgulho intrínseco nas suas capacidades, nos seus
desempenhos, na sua vontade. Nada disso existe na gente. Esta procura apenas
incluir-se no meio e ser reconhecida nesse meio. Reproduz à exaustão os
comportamentos mais habituais e copiar é para ela uma estrutura existencial
fundamental. Se se procura afirmar no meio por competição sexual ou económica,
pouco lhe importa os meios que usa desde que se mostrem seguros, ou seja, desde
que julgue não poder ser apanhada. Não é por acaso que no desporto só um
controlo muito estreito impede a generalização das fraudes, sejam de doping,
de truques mecânicos, de adulteração de resultados, talvez até manipulação
genética e, ainda assim, quando há um reforço do controlo, logo se verifica que
os processos fraudulentos estão afinal generalizados, encobertos por tudo o que
até certa altura não foi verificado. Por
isso, a gente engana, copia, defrauda, vicia, corrompe quase com a mesma
regularidade que respira, não por nenhum ato excecional, mas por inerência da
sua natureza. Volto a dizer, apenas o medo de ser apanhada a refreia, isto
porque todas as ações referidas penalizam os outros membros da mesma gente e,
por isso, a gente é tão feroz a querer punir os ofensores, quanto a cometer
tudo aquilo de que acusa outros. A força da gente reside, porém, não no
indivíduo indigente, impotente e ridículo, mas no funcionamento coletivo,
funcionamento em que confia de forma acéfala, sintonizando-se com outros sem
sequer ter alguma vez pensado em fazê-lo, apenas como inerência da sua
existência inautêntica. Ora, essa é também a força das aplicações denominadas
de inteligência artificial generativa, não uma inteligência individual, não uma
pessoa, mas um organismo coletivo que só por conveniência social, tal como os
seus correlatos humanos, assume uma aparência individual, quase um rosto em
cada resposta dada a cada utilizador.
Ora,
este funcionamento em rede, em nuvem, em colmeia é muito mais eficaz nos meios
digitais do que nos humanos, nos quais desejos e medos provocam sempre
perturbações, disfunções, conflitos em que se evidencia persistir uma base
individual, muito rudimentar e restringida às pulsões mais básicas, mas que
originam o ambiente de sociabilidade insociável já descrito há muito pelo sábio
prussiano. Quanto à pretensão de diversos autores relativa a um poder mágico na
inteligência humana inacessível às máquinas, confesso ter grande dificuldade em
detetá-lo. Pior ainda quando a defesa desse poder só encontra argumentos nas
fragilidades da IA atualmente existente e no recurso às realizações mais
elevadas do génio humano. Depois, generaliza-se aquilo que é absolutamente
excecional nos humanos e considera-se que a IA nunca poderá aceder às
capacidades mais autónomas e criativas da inteligência humana, um pouco como
quase todas as invenções humanas foram julgadas impossíveis por muitos antes de
serem efetivadas. Já no artigo anterior sublinhei que boa parte do que se julga
um poder mágico do ser humano reside na sua capacidade de imitar e simular
desde a mais tenra idade. Naturalmente, existe, pelo menos, a unidade vazia do
eu presente no desejo e no medo, mas, se pode surgir um tal epifenómeno naquilo
que, para todos os efeitos, não passa de uma colónia de células, se existem
fenómenos coletivos que fazem pensar em agregações mais vastas como aquelas que
se podem observar nos insetos gregários, o que impede que uma entidade
artificial constituída por uma miríade de partes complementares possa vir a
desenvolver uma inteligência? Aliás, terá sido de outra forma que se
desenvolveram as maiores realizações do génio humano? Estas realizações
dependeram, na esmagadora maioria dos casos, de situações privilegiadas possibilitadas
pela sociedade ignara, quase como se esta sociedade necessitasse, de tempos a
tempos, de realizações novas que permitissem superar os bloqueios, estagnações
e decadências, muito embora, com enorme frequência, seja essa mesma sociedade
que mais delas necessita que sacrificou os seus autores, incapaz de suportar a
individualidade radical que os caracterizava e que se revelava contraditória
com a gente. Poderá um tal processo ser reproduzido, ao menos analogicamente,
com as máquinas? Tenho sinceras dúvidas, ao menos no âmbito de um
desenvolvimento das ferramentas atualmente existentes, muito mais vocacionadas
para instaurar a ditadura da gente de forma a não permitir sequer a
possibilidade de pessoa. Porém, quem sabe? Isto para lá de ser bem visível que
as capacidades humanas de invenção neste domínio ainda estão bem longe de estar
esgotadas, havendo vantagens, em certos domínios, em conseguir construir uma IA
forte de raiz, capaz de respostas verdadeiramente inovadoras, em vez de uma
simples poderosa ferramenta de utilização das fontes disponíveis ao caos das
gentes. Mas parece mais provável que qualquer IA, mesmo muito mais capaz, se
assemelhasse mais ao funcionamento da colmeia, do que de uma verdadeira pessoa,
no sentido individual do termo. E, porém, também não nos referimos a pessoas
coletivas?
Atualmente,
hordas de peças acéfalas se formam no primeiro ciclo em que mesmo os pais mais
conscienciosos e críticos terão grande dificuldade em conseguir que mais que
uma ínfima minoria possa pensar alguma coisa por si ou possa sequer ser capaz
de elaborar um discurso articulado. Os instrumentos de avaliação cada vez
permitirão mais a simples cópia e esses alunos poderão já nunca procurarem
responder qualquer questão por si próprios. Se ainda algum desempenho tiver de
ser escrutinado, virão depois as inclusividades garantir que tudo e todos,
todos, todos, serão aceites. Já existe um número muito significativo de alunos
com essas características em estratos superiores do ensino. A “democratização”
do ensino, ou seja, a completa ausência de
exigência no ensino já permitiu, por todo o Ocidente, a ascensão dos Qanon mais
grosseiros, a arrogância dos maiores grunhos que buscam a gratificação pela sua
brutalidade através da consagração de figuras intelectual e até
linguisticamente indigentes que refletem esses deploráveis que os apoiam.
Assisti, no meu país, a essa ascensão realizar-se, em primeiro lugar, nos
cursos mais inclusivos ainda bem antes da legislação da inclusividade, os
cursos profissionais, onde os graus de exigência muito baixos garantiam o
sucesso sem qualquer saber, nem sequer o técnico específico. Depois, já
alastrou bem mais. Toda esta gente já está a garantir por todo o Ocidente as
vitórias de personagens como Trump, Bolsonaro, Duterte ou Órban, sem sequer
necessidade de golpes de estado. O que resultará deste novo salto para a
acefalia completa? Que tipo de ensino será possível em breve? Poderão alunos
que possam pensar por si e procurar verdadeiramente aprender ter algum lugar no
ensino público futuro? Não estarão a estragar o bem-estar coletivo? Não deverão
ser tratados, como já vi em documentos educativos legais desde há muitos anos,
problemas que o sistema deve despistar como a delinquência ou os deficits
cognitivos? E que caos político resultará dessas gerações condicionadas a serem
ainda mais acéfalas que as anteriores? Pergunto-me se, em breve, Trump não
parecerá um intelectual comparado com os políticos que irão emergir da lama
humana sem os menores anticorpos de espírito crítico ou posse de conhecimento
que dominará o futuro? Será que, caso pudesse, quereria sequer estar vivo nesse
caos? E, por fim, perante tal expetativa, seria assim tão má a vitória de uma
IA forte? Ao menos, nesse caso, poder-se-ia garantir a inteligência técnica de
melhor qualidade que, porventura, já é a única inteligência que ainda pode
persistir, a um nível inferior, entre alguns humanos. Talvez esse fosse o único
antídoto perante a bestialidade que se avizinha…