20.4.25

Inteligência Artificial II

            A inteligência artificial. Não uma, não um esboço, mas a completa e a definitiva. As ferramentas denominadas inteligência artificial generativa foram apresentadas como o advento, enfim, da inteligência artificial. Há muito que se falava de inteligência artificial nos jogos, na medicina, na engenharia, etc., assim como se distinguia essas IA fracas da possibilidade e ameaça de uma IA forte, mas todas essas noções foram rapidamente esquecidas e, hoje, se um aluno fizer um trabalho sobre IA, já nem considera quaisquer outras possibilidades que não as aplicações referidas. A IA foi inventada há dois anos e meio e nada existia antes, nem existirá depois a que seja adequado chamar IA. Quanto muito, existirão versões mais avançadas desta mesma IA. É assim que se apresentam esses instrumentos nos media e, logo, é a verdade indiscutível, até por exatamente nem ser já apresentado como informação, mas referência contextual constantemente suposta ou que acompanha os dados alegadamente relevantes de mera forma adverbial. Tratou-se de um golpe publicitário executado de forma magistral, apesar de ser um disparate e nem por isso ser menos ameaçador e desastroso.

            Há poucos meses fiz uma pequena experiência. Pediam-me, na escola em que sou funcionário, para arranjar citações de filósofos relacionadas com a alimentação. Fui à mais conhecida plataforma do género e solicitei tais citações, com a exigência adicional que fossem indicadas as obras de que eram extraídas. Quando cheguei às 30 citações, dei-me por satisfeito. Uma parte delas nem sequer era de filósofos, o que já é sinal da forma solta como na net e nas gentes se usa a palavra. Essas nem as considerei. Muitas das obras referidas eram bem familiares. Porém, mesmo destas, descarreguei versões digitais em diversas línguas e fiz buscas sistemáticas, não só com as palavras das citações, mas com inúmeras palavras próximas. Demorei dois dias a certificar-me, mas valeu a pena: nem uma das citações era verdadeira. Nem uma. Nem sequer eram paráfrases de frases próximas. Muitas (não todas) nem tinham qualquer relação com o pensamento do autor. E assim alcancei a minha primeira revelação: estas aplicações não eram sequer de IA mesmo num sentido muito fraco de IA; eram sim aplicações de AA: aldrabice artificial. A explicação para o facto é deveras simples e nem requer muita imaginação ou especulação. Há muito me insurjo, em diversos textos, até sob outra assinatura, contra a falsa atribuição de frases a autores que se tornaram icónicos. Cheguei mesmo a denunciar a utilização de múltiplas dessas atribuições por professores em instâncias públicas e/ou educativas. É chocante como professores de uma área não são capazes de ver que determinados lugares-comuns ou frases de autoajuda não poderiam ser de determinado autor que tinham a obrigação de conhecer. Já tentei explicar noutros textos, de forma mais aprofundada, como isto pode chegar a acontecer. Aqui bastará uma referência factual elementar. A verdade é que a generalidade dos professores já não lê ou não lê senão o que vem nos manuais, com soluções e tudo dos exercícios, ou ainda só lê os livros pimba que se vendem ao lado das couves nos hipermercados. Alguns nunca leram os autores que têm de ensinar, limitando-se a recolher informações de livros generalistas ou, mais recentemente, das wiki espalhadas pela net. Ora, a suposta IA não faz algo diverso: toma como referência o que apanha na internet, basicamente uma imensa Babilónia de lixo da gente que apenas reflete aquilo que a gente pode entender, e produz múltiplas combinações de tais fontes, forjando novos textos incapazes de ir além daquilo que é fornecido pelas wikipedias deste fluxo massivo.

            Já no artigo de há um ano eu me referia, lateralmente, ao início do recurso discente para tudo a estas ferramentas. Um ano depois, o fenómeno tornou-se avassalador. Pelo menos, 90% dos alunos recorre a estas ferramentas para todos os trabalhos em que as podem usar (“poder” da lógica modal, não estou a usar o sentido legal) e a maior parte fá-lo sem a menor adaptação crítica, transpondo diretamente as respostas. Isto poderia dizer muito ao guru pedagógico que dizia que era o sistema de ensino que ensinava, com os testes, os alunos a serem desonestos, mas, provavelmente, ainda consideraria o facto uma confirmação, mesmo se se está a incluir modalidades de ensino em que, praticamente, já nem há testes (cursos profissionais). A desonestidade da gente, o grosso dos indivíduos existentes, só é limitada pelo medo de ser apanhada. Aliás, isto é algo que o guru referido bem sabe, embora diga o inverso, por exercício próprio da mais desavergonhada desonestidade que muito se preocupa a não ver escrutinada. Um meio de se ser desonesto que não deixa traço, com recurso a muito pouco esforço, é o ideal para a maioria dos alunos que os pais condicionaram a conseguir classificações, mas não qualquer motivação para conhecer seja o que for por intrínseco valor do conhecimento. Porém, significa isto que a qualidade dos trabalhos subiu dramaticamente? Não, aconteceu o inverso, a qualidade diminuiu. Mesmo em trabalhos anteriores em que a maior parte dos trabalhos era constituída por informações recolhidas na net, assim como em trabalhos com análises e reflexões retiradas da mesma net, os resultados anteriores eram bem superiores na diversidade dos dados, análise dos factos e aprofundamento das reflexões a partir desses factos. Apenas estavam um pouco melhores na explicação de teorias filosóficas a que os trabalhos recorriam, embora muitas vezes sem estabelecimento de conexão com o assunto tratado, mas isso apenas por essa ser a parte pior de trabalhos anteriores e não por grande qualidade das abordagens.

            Comuniquei isto aos alunos, tal menor qualidade refletiu-se nas classificações obtidas, logo, seria de esperar que pelo menos haja um uso discente menos acéfalo da próxima vez que usarem estas ferramentas. Errado. Já é difícil que o uso desta suposta IA aumente e que ele seja muito mais acéfalo, mas não haverá qualquer diminuição do seu uso ou do seu uso acrítico. A razão é a mais simples que pode existir e levará ao triunfo da IA: preguiça. Os melhores trabalhos do passado davam, passe o pleonasmo, trabalho. Os atuais são conseguidos com um esforço mínimo. Como não existe nenhuma motivação intrínseca para o conhecimento, uma classificação mediana sem nenhum esforço e nenhuma aprendizagem será inequivocamente preferível para a esmagadora maioria a uma classificação melhor após algum esforço e alguma aprendizagem. Que importa que o material fornecido seja fraco ou mediano? É à borla e não deixa rasto do plágio. Os programas entretanto feitos para o detetar dificilmente poderiam justificar qualquer penalização no ensino obrigatório. Naturalmente, haverá muitos que defenderão que a fraca qualidade advém das versões gratuitas utilizadas. Novamente, cairão em erro. Já existem alunos que recorrem às versões pagas para garantir melhores classificações – e deles vem a maioria dos protestos por não atingirem as classificações desejadas. Aliás, em breve, esta conjunção entre preguiça e universalidade levará a que se considere que o conhecimento é o que é “produzido” por estas aplicações.

Isso já acontecia de forma limitada com o anterior oráculo, a Wikipedia, mas será muito mais absoluto o veredito futuro. Os alunos que estão no ensino básico não conhecerão, aliás, outra realidade e haverá reforços docentes contínuos desta situação. Aliás, se os alunos ainda conseguirem pensar alguma coisa, mesmo que falaciosa, pensarão que o erro estará no professor que ainda saiba alguma coisa de alguma coisa porque apenas veem nas respostas da IA enunciados articulados que seriam incapazes de produzir e que, por isso, deverão corresponder ao saber. Trata-se da elaboração artificial do retórico segundo Platão, um ignorante que parece sábio (de facto, mais sábio que os sábios) perante uma multidão de ignorantes. E o pior é que tal avaliação será secundada por um grande número de docentes que procurará colmatar a sua ignorância nas mais diversas matérias com as respostas da IA. Cheguei a assistir, não agora, mas já há perto de 20 anos, a ações de formação para docentes sobre assuntos sérios, por exemplo, as perturbações da aprendizagem provocadas por problemas no desenvolvimento da linguagem, que apenas recorria à informação disponibilizada na internet mais generalista, assumidamente, sem o menor recurso à mais débil fonte académica. E os formandos docentes, em geral, não viam o menor problema nesta ligeireza com que estava a ser tratado um assunto tão delicado para a profissão porque, na verdade, esse já era na altura o ambiente cultural em que se movia um grande número de docentes. Ao longo dos anos, assisti a inúmeras provas de que a maioria dos docentes ancora o seu saber nos manuais, na wikipedia e outros sites superficiais, e nas frases feitas que recolhe nas redes sociais. A lista que eu referi acima de supostas frases filosóficas acerca da alimentação seria aceite pela maioria sem a menor das suspeitas ou, se a tivessem, seria calada por dar muito trabalho a verificação. Perante tal atitude, quem poderá pôr em causa que, em breve, a maioria dos professores tomará como indiscutíveis as respostas da IA, a não ser os próprios que o fizerem e que procurarão negar que o fizeram enquanto tiverem a consciência de estar a praticar um crime intelectual. E, naturalmente, como no retórico de Platão, o verdadeiramente conhecedor acabará por passar, junto da massa inarticulada, por ignorante frente ao ignorante articulado.

Estou a ignorar em geral o entusiasmo de muitos professores nesta IA como ferramenta pedagógica porque o contexto que permite tal entusiasmo já foi tratado, por mim, noutros textos. Não é diferente do entusiamo que também muitos professores mostram pelos meios digitais, incluindo o telemóvel, na sala de aula. No atual sistema dito educativo, a última coisa que importa é o conhecimento. Importa a inclusão que, na verdade, é um completo abandono dos alunos com necessidades especiais que apenas importa passar sem nada, a qualquer nível, aprenderem, e importa o bem-estar imediato, isto ao menos na escola pública das massas. Mas não deixa de importar a fraude de proceder como se a escola continuasse a providenciar conhecimento e a fraude de ocultar esta fraude. A maioria das famílias só quer é que as classificações garantam a certificação e a progressão, mas, mesmo ela, se inquirida, continuaria a mentir quanto ao objetivo do conhecimento. Como é então operada a fraude? Por exemplo, através de banalidades pedagógicas como a diferenciação dos instrumentos de avaliação, pode-se falar de estilos de aprendizagem ou de tipos de inteligência, mas, concretamente, a única coisa que se visa é eliminar os instrumentos de escrutínio rigoroso da aprendizagem e substituí-los por outros que permitam a pura e simples cópia da internet como se fosse a concretização de uma aprendizagem. Na verdade, se a diferenciação referida dos instrumentos fosse rigorosamente realizada, levaria a uma avaliação muito mais exigente que a tradicional (é só pensar naquilo que teoricamente se pretendia fazer com os portefólios e comparar com aquilo que, durante algum tempo, efetivamente, se realizou). Porém, todos sabem, embora poucos o digam, que o único objetivo de todas as inovações introduzidas há décadas é o de garantir o sucesso a todos, todos, todos, mesmo que saibam cada vez menos. Claro que, como muitas vezes tenho defendido, isso poderia ser garantido acabando de vez com a possibilidade de retenção. Seria menos arbitrário do que agora acontece e não implicaria o aviltamento dos docentes, constantemente forçados a participar nas fraudes e ainda forçados, no final, caso ainda não se obtenha sucesso, a adulterar, mais uma vez, os resultados. Mas isso implicaria o reconhecimento da fraude e da fraude da fraude, e os nossos políticos preferem ultrajar uma classe inteira com a imposição de procedimentos indignos da sua natureza, pois ela é constituída de pessoas selecionadas pelos seus saberes, do que proceder de forma decente. Mas já muito disse noutros textos a este propósito e a respeito dos sistemáticos recursos falaciosos e demagógicos que certos políticos papagueiam à exaustão, como se fossem justificações legítimas dos seus procedimentos. Agora, basta salientar que um tal ambiente fraudulento não cria quaisquer anticorpos à entusiástica utilização massiva desta IA por professores e alunos. Tentarão alguns docentes defender as virtualidades pedagógicas do instrumento e será apenas mais uma aldrabice a juntar às anteriores. Qualquer escrutínio sério e rigoroso das aprendizagens assim obtidas chegaria à conclusão que quanto mais exclusiva foi a sua utilização, tanto menor foi a aprendizagem do assunto.

Voltando à questão anterior, muitos dirão que a fraca qualidade destes aplicativos deriva do caráter ainda experimental e pouco desenvolvido da IA. A minha filha engenheira procurou, nos primeiros tempos da novidade, avaliar a qualidade da IA em matéria de programação. Terá ficado surpreendida com a boa qualidade dos resultados. Depois, fê-lo de novo bem mais tarde. Desta vez, os resultados foram desastrosos, nem uma única linha se aproveitava. Porquê? Naturalmente, porque o programa “aprende” com os utilizadores e a esmagadora maioria dos utilizadores é ignorante. Não há, aliás, melhor demonstração para a falência dos critérios democráticos. Não há nenhum assunto em que seja a maioria que tem razão e a única razão para os ditos regimes democráticos se manterem de pé é o facto de dependerem muito mais das deliberações dos especialistas em cada assunto, mesmo que não sejam os melhores, pois os nossos políticos não têm habitualmente grandes capacidades para os identificar, e não no veredito da massa. A maior sabedoria que a massa pode ter é a de não entregar a construção das casas, as operações cirúrgicas ou a fabricação de medicamentos ao seu veredito, mas sim a quem percebe alguma coisa do assunto. E esse facto chegaria para demonstrar que a pretensão de Feyerabend de subordinar os projetos científicos às decisões da opinião pública até poderá ser democrática, mas longe de sustentar o seu relativismo, sustentaria apenas a barbárie e, muito provavelmente, uma barbárie extremamente dogmática, sem necessidade da menor justificação ou tudo justificando percorrendo toda a enumeração das falácias mais grosseiras.

Já disse anteriormente, as atuais aplicações de IA são a realização artificial da gente, dessa existência inautêntica que só ecoa o que se diz, o que se faz, o que se considera correto e adequado, que toma por constante referência o “toda a gente” e que apenas vive reagindo aos estímulos do ambiente imediato, nomeadamente o social, preocupando-se imenso com a sintonização com os balidos de um rebanho ou os uivos de uma matilha. O que importa é a conformação a um coletivo, a uma fé, a uma linguagem elementar que permita o condicionamento mais estereotipado. Poderá surpreender alguns que as aplicações tenham escolhido recolher os dados de sites como a wikipedia em vez de tantos recursos académicos bem mais elaborados também acessíveis na internet. Por exemplo, na minha área, porque não recorrer à Enciclopédia Stanford de Filosofia, para dar apenas um exemplo? Ou porque não recolher os repositórios universitários, já consideravelmente digitalizados, muitos com acesso público ou com credenciais acessíveis? É difícil admitir que o faça, tendo em conta a indigência de muitos dos seus conteúdos, mas, se o faz, não só o fará de forma muito parcial, mas situar-se-á num plano de equiparação com os sites generalistas e até as redes sociais. Se ainda não faz, muitos considerarão que tal se deverá à imensidade da tarefa a realizar, à quantidade avassaladora de informação que terá de ser recolhida. Porém, pergunto-me se a introdução de informação académica muito certificada alterará alguma coisa, pois estes instrumentos destinam-se a ter sucesso junto do grande público e terão sempre vantagens em dizer o que por aí se diz, o considerado politicamente correto em cada momento e circunstância, usando a linguagem predominante nos media. E tem e terá imenso sucesso apenas porque os utilizadores pressupõem que as respostas resultam do maior saber existente, não tendo qualquer possibilidade ou interesse ou disponibilidade para o esforço necessário para verificar o melhor saber e não havendo, por isso, qualquer razão para as aplicações se darem ao trabalho de se submeter a qualquer saber especializado. Ninguém dará qualquer importância a uns quantos académicos que sublinhem os erros da IA porque, voltando ao início, o que importa é ter uma resposta fácil para todas as questões e essa será, por ser fácil, a resposta absoluta e definitiva. Como é óbvio, essas aplicações podem melhorar e estão a melhorar, mas não me parece que percam de vista o maior filão, a sua ligação à conformação da gente que, aliás, será sempre o seu maior cliente.

Resta perguntar se estamos, de facto, perante uma inteligência. Certamente, não estamos perante o que se tem chamado uma IA forte. Parece capaz de aplicar conhecimentos, tem consciência do ambiente e aprende com ele, mas isso só de forma muito rudimentar poderá corresponder à noção. A confusão implícita que ninguém explicita é que boa parte, na verdade o grosso, da chamada inteligência natural humana não é mais que isso, reação ao ambiente e capacidade de aplicar conhecimentos a problemas concretos. Na verdade, estas aplicações são em geral muito melhores a fazer isso do que a maioria dos seres humanos. Mas, exatamente, esses seres humanos pouco confiam nos seus recursos estritamente individuais, preferindo seguir o grosso dos outros do meio a que pertencem. Isso é a natureza da sua existência, é o que é próprio da gente e é por isso que não deveria surpreender a tendência avassaladora para a desonestidade quando desaparece o medo de ser apanhado. As pessoas verdadeiramente honestas e não honestas por medo, são-no pelo seu orgulho intrínseco nas suas capacidades, nos seus desempenhos, na sua vontade. Nada disso existe na gente. Esta procura apenas incluir-se no meio e ser reconhecida nesse meio. Reproduz à exaustão os comportamentos mais habituais e copiar é para ela uma estrutura existencial fundamental. Se se procura afirmar no meio por competição sexual ou económica, pouco lhe importa os meios que usa desde que se mostrem seguros, ou seja, desde que julgue não poder ser apanhada. Não é por acaso que no desporto só um controlo muito estreito impede a generalização das fraudes, sejam de doping, de truques mecânicos, de adulteração de resultados, talvez até manipulação genética e, ainda assim, quando há um reforço do controlo, logo se verifica que os processos fraudulentos estão afinal generalizados, encobertos por tudo o que até certa altura não foi verificado.  Por isso, a gente engana, copia, defrauda, vicia, corrompe quase com a mesma regularidade que respira, não por nenhum ato excecional, mas por inerência da sua natureza. Volto a dizer, apenas o medo de ser apanhada a refreia, isto porque todas as ações referidas penalizam os outros membros da mesma gente e, por isso, a gente é tão feroz a querer punir os ofensores, quanto a cometer tudo aquilo de que acusa outros. A força da gente reside, porém, não no indivíduo indigente, impotente e ridículo, mas no funcionamento coletivo, funcionamento em que confia de forma acéfala, sintonizando-se com outros sem sequer ter alguma vez pensado em fazê-lo, apenas como inerência da sua existência inautêntica. Ora, essa é também a força das aplicações denominadas de inteligência artificial generativa, não uma inteligência individual, não uma pessoa, mas um organismo coletivo que só por conveniência social, tal como os seus correlatos humanos, assume uma aparência individual, quase um rosto em cada resposta dada a cada utilizador.

Ora, este funcionamento em rede, em nuvem, em colmeia é muito mais eficaz nos meios digitais do que nos humanos, nos quais desejos e medos provocam sempre perturbações, disfunções, conflitos em que se evidencia persistir uma base individual, muito rudimentar e restringida às pulsões mais básicas, mas que originam o ambiente de sociabilidade insociável já descrito há muito pelo sábio prussiano. Quanto à pretensão de diversos autores relativa a um poder mágico na inteligência humana inacessível às máquinas, confesso ter grande dificuldade em detetá-lo. Pior ainda quando a defesa desse poder só encontra argumentos nas fragilidades da IA atualmente existente e no recurso às realizações mais elevadas do génio humano. Depois, generaliza-se aquilo que é absolutamente excecional nos humanos e considera-se que a IA nunca poderá aceder às capacidades mais autónomas e criativas da inteligência humana, um pouco como quase todas as invenções humanas foram julgadas impossíveis por muitos antes de serem efetivadas. Já no artigo anterior sublinhei que boa parte do que se julga um poder mágico do ser humano reside na sua capacidade de imitar e simular desde a mais tenra idade. Naturalmente, existe, pelo menos, a unidade vazia do eu presente no desejo e no medo, mas, se pode surgir um tal epifenómeno naquilo que, para todos os efeitos, não passa de uma colónia de células, se existem fenómenos coletivos que fazem pensar em agregações mais vastas como aquelas que se podem observar nos insetos gregários, o que impede que uma entidade artificial constituída por uma miríade de partes complementares possa vir a desenvolver uma inteligência? Aliás, terá sido de outra forma que se desenvolveram as maiores realizações do génio humano? Estas realizações dependeram, na esmagadora maioria dos casos, de situações privilegiadas possibilitadas pela sociedade ignara, quase como se esta sociedade necessitasse, de tempos a tempos, de realizações novas que permitissem superar os bloqueios, estagnações e decadências, muito embora, com enorme frequência, seja essa mesma sociedade que mais delas necessita que sacrificou os seus autores, incapaz de suportar a individualidade radical que os caracterizava e que se revelava contraditória com a gente. Poderá um tal processo ser reproduzido, ao menos analogicamente, com as máquinas? Tenho sinceras dúvidas, ao menos no âmbito de um desenvolvimento das ferramentas atualmente existentes, muito mais vocacionadas para instaurar a ditadura da gente de forma a não permitir sequer a possibilidade de pessoa. Porém, quem sabe? Isto para lá de ser bem visível que as capacidades humanas de invenção neste domínio ainda estão bem longe de estar esgotadas, havendo vantagens, em certos domínios, em conseguir construir uma IA forte de raiz, capaz de respostas verdadeiramente inovadoras, em vez de uma simples poderosa ferramenta de utilização das fontes disponíveis ao caos das gentes. Mas parece mais provável que qualquer IA, mesmo muito mais capaz, se assemelhasse mais ao funcionamento da colmeia, do que de uma verdadeira pessoa, no sentido individual do termo. E, porém, também não nos referimos a pessoas coletivas?

Atualmente, hordas de peças acéfalas se formam no primeiro ciclo em que mesmo os pais mais conscienciosos e críticos terão grande dificuldade em conseguir que mais que uma ínfima minoria possa pensar alguma coisa por si ou possa sequer ser capaz de elaborar um discurso articulado. Os instrumentos de avaliação cada vez permitirão mais a simples cópia e esses alunos poderão já nunca procurarem responder qualquer questão por si próprios. Se ainda algum desempenho tiver de ser escrutinado, virão depois as inclusividades garantir que tudo e todos, todos, todos, serão aceites. Já existe um número muito significativo de alunos com essas características em estratos superiores do ensino. A “democratização” do ensino, ou seja, a completa ausência de exigência no ensino já permitiu, por todo o Ocidente, a ascensão dos Qanon mais grosseiros, a arrogância dos maiores grunhos que buscam a gratificação pela sua brutalidade através da consagração de figuras intelectual e até linguisticamente indigentes que refletem esses deploráveis que os apoiam. Assisti, no meu país, a essa ascensão realizar-se, em primeiro lugar, nos cursos mais inclusivos ainda bem antes da legislação da inclusividade, os cursos profissionais, onde os graus de exigência muito baixos garantiam o sucesso sem qualquer saber, nem sequer o técnico específico. Depois, já alastrou bem mais. Toda esta gente já está a garantir por todo o Ocidente as vitórias de personagens como Trump, Bolsonaro, Duterte ou Órban, sem sequer necessidade de golpes de estado. O que resultará deste novo salto para a acefalia completa? Que tipo de ensino será possível em breve? Poderão alunos que possam pensar por si e procurar verdadeiramente aprender ter algum lugar no ensino público futuro? Não estarão a estragar o bem-estar coletivo? Não deverão ser tratados, como já vi em documentos educativos legais desde há muitos anos, problemas que o sistema deve despistar como a delinquência ou os deficits cognitivos? E que caos político resultará dessas gerações condicionadas a serem ainda mais acéfalas que as anteriores? Pergunto-me se, em breve, Trump não parecerá um intelectual comparado com os políticos que irão emergir da lama humana sem os menores anticorpos de espírito crítico ou posse de conhecimento que dominará o futuro? Será que, caso pudesse, quereria sequer estar vivo nesse caos? E, por fim, perante tal expetativa, seria assim tão má a vitória de uma IA forte? Ao menos, nesse caso, poder-se-ia garantir a inteligência técnica de melhor qualidade que, porventura, já é a única inteligência que ainda pode persistir, a um nível inferior, entre alguns humanos. Talvez esse fosse o único antídoto perante a bestialidade que se avizinha…