Ambientalismo e direitos dos animais
Depois de muito hesitar, resolvi, vencendo a autocensura, tratar este tema. Tenho a certeza que será dos assuntos em que mais serei alvo de rejeições, mas, entre os muitos assuntos em que me autocensurei para não ter de me digladiar com as mentalidades dominantes, visto afrontá-las diretamente, este parece-me que tem uma especial acutilância por somar à estupidez típica do domínio das mentalidades dominantes (visto que, exatamente por serem dominantes, não têm de apresentar razões, julgando ser razões uns boçais lugares comuns que a mínima análise intelectual isenta mostraria sem sentido), uma incongruência política muito especial, nascida do facto de nunca termos tido um verdadeiro movimento político ambientalista. De um lado tivemos o “partido” melancia, do outro movimentos emergentes de um certo espírito aristocrático, por vezes associados a algum ruralismo e também a alguma teologia, e para acabar uma formação defensora dos direitos dos animais. Nenhum deles é de raiz unicamente ambientalista – e, na minha opinião, nenhum o é de forma autêntica. Tenho a certeza da rejeição deste artigo pela esmagadora maioria porque conheço o meu país, onde se responde a argumentos com emoções e, a essas emoções, segue-se sempre o rasgar de vestes, por se atreverem a identificar abusos onde só havia coração, sempre muito coração na boca para poder ocultar e falsear a realidade. Se alguém quiser espumar ódio sem argumentos que mereçam a minha consideração, nem sequer lhe responderei. Se alguém quiser manifestar o seu paternalismo do cimo da sua enorme autoridade moral, política ou sábia, farei o mesmo – já não tenho idade para estar a aturar paternalismos bacocos e, para dizer a verdade, também nunca tive paciência para eles. Se alguém quiser seriamente contra-argumentar, estou aberto à discussão.
Uma das minhas filhas “adotou”, em julho, duas gatinhas.
Eu opus-me, de um ponto de vista pessoal, mas, como a minha casa não é uma
ditadura e não considero que seja mais minha do que dela, lá vieram as
gatinhas. Comprei-lhes acessórios, compro-lhes comida, lavo isto e aquilo,
interajo de forma genérica com elas, até porque, confesso, sempre gostei de
gatos e seria incapaz de as maltratar, não por direito delas, mesmo que o
tenham, mas por dever meu. Julgo, porém, que devo expressar as razões da minha
oposição, exatamente pela associação ao tema deste artigo, mesmo que essa
oposição não se traduza em nada, visto elas não serem minhas, mas sim da minha
filha, e eu não me considerar com direito a impedir essa “posse”. Já agora, já
antes tive aqui, como animais de estimação, quatro ratazanas da minha outra
filha e uma gata que era tratada pelo meu filho. As ratazanas foram entretanto
para a casa da avó da minha filha e a gata referida morreu com uma doença. Em
todos os casos, procedi da mesma forma. As duas gatas atuais terão sido tiradas
da rua ainda bebés, não sei exatamente em que condições, o que, a julgar pelos
exemplos da net, parece não importar muito, justificando-se sempre para esses
amigos dos animais a adoção.
Indo por partes, em primeiro lugar, gostaria de examinar
a própria noção de direito presente na bandeira dos direitos dos animais. Por
diversas vezes, me tenho insurgido contra a defesa da noção de direito no
vazio, como um absoluto axiomático que não é preciso justificar. Fi-lo, por
exemplo, em relação à filosofia política de Nozick, exatamente por ir buscar a
noção de Locke, mas esquecendo-se de trazer atrás algo que era fundamental para
ela ter sentido: Deus. Mesmo não supondo nenhuma herança absurda desde Adão,
como o próprio Locke não supõe, opondo-se, aliás, a posições da altura, para
defender a existência de direitos naturais, é necessário um plano em relação ao
qual os direitos são estabelecidos, na medida em que esse plano fornece a base de
verdadeiras leis práticas naturais. Sem Deus, não há nada. Schopenhauer também
os defendia, mesmo que sem sociedade ou Estado não pudessem ser objeto de
reconhecimento – mas com base em quê se o próprio Schopenhauer não supõe Deus
(ao menos, explicitamente) e parece pouco inclinado a dar o seu apoio a
critérios inerentes à razão humana como o do imperativo categórico? A sua noção
de justiça corresponde exatamente à do princípio do Direito no início da Metafísica
dos Costumes (Kant), mas este já supõe uma sociedade (o âmbito da
legalidade). Suponho que será para não ter de a supor que Schopenhauer a
considera de natureza moral. Porém, mesmo neste caso, a sua argumentação
dificilmente poderia dispensar um contrato social de algum tipo. Evoca o
exemplo do sentido de justiça de um selvagem como se os selvagens não tivessem
sociedade e Estado e estruturas sociopolíticas. Pelo contrário, mesmo o mais
“civilizado” (seja lá o que isso for) dos europeus não se sentiria injustiçado
por ser mordido por uma cobra. Senti-la-ia como perigo, ameaça ou uma
infelicidade depois do facto consumado – poderia até matá-la – mas não alegaria
a ocorrência de qualquer injustiça. Diga-se, aliás, que mesmo o sentimento de
injustiça que se possa ter em relação ao que se fez à natureza está dependente
ou de uma conceção religiosa (mesmo que pagã), ou de uma conceção da inserção
da simples sociedade humana na natureza que possa fornecer um plano a partir do
qual se podem pensar direitos e deveres. Não faz sentido pensar qualquer tipo
de direito sem um plano contratual qualquer e não faz sentido pensar quaisquer
direitos sem quaisquer obrigações. Por isso é que dificilmente se poderá falar
com sentido de direitos da natureza, fundando-se o nosso sentimento de
injustiça nas falhas dos nossos deveres para com ela, seja pela nossa efetiva
pertença a ela, seja pela referência a uma ordem superior.
Claro que se poderia dizer com Hobbes que, no estado de
natureza, todos têm direito a tudo. Mas o próprio Hobbes só o diz para mostrar
a absurdidade dos direitos naturais. Todos terem direito a tudo é o mesmo que
ninguém ter direito a nada e tudo ser resolvido pela maior força. Para dizer a
verdade, mesmo os direitos consagrados pelo Estado só o são na medida em que é
entregue ao Estado essa força – pelo que a força acabará sempre por decidir
tudo, com ou sem contrato. Mas veja-se a própria noção de direito. Eu tenho
direito a ser ressarcido pelo meu trabalho na medida em que esse trabalho
decorreu no contexto de uma relação contratual. Se eu fosse fazer esse trabalho
sem nenhuma combinação prévia, por muito que o meu trabalho fosse vantajoso
para outrem, eu não teria direito a nada. Muitas vezes se evoca o exemplo das
crianças por terem direitos e, supostamente, não terem deveres. Para lá de toda
a necessidade de um pensamento mais complexo que considere um ser nas suas
potencialidades e não apenas na imediatez, as crianças têm deveres desde muito
cedo. São, na verdade, treinadas para terem determinados desempenhos e são
premiadas quando os realizam. A partir do momento em que existem comportamentos
que são estipulados, para lá de posses, pertenças, etc., uma relação contratual
já está assente e pode-se falar de direitos e deveres. É por isso que eu até
concordo com a legislação atualmente existente que incide sobre os animais de
companhia. Os animais de companhia, pelo menos alguns, são exatamente treinados
para terem determinados comportamentos, são recompensados por eles, têm o seu
lugar e as suas posses, possuem os requisitos fundamentais para se poder falar
de uma relação contratual, têm direitos e deveres. Potencialmente, uma criança
poder-se-á desenvolver até níveis contratuais superiores, mas isso não
significa que não se pudesse falar de uma relação contratual desde o início,
não apenas pelas obrigações dos pais em função das suas relações contratuais na
sociedade, mas também pelo projeto de pessoa que a criança constituía. Mesmo
que um animal de companhia não se possa considerar uma pessoa por, por exemplo,
não se poder defender e acusar num tribunal, o seu estatuto não é muito
diferente aqui de uma pessoa. Aliás, ninguém retira o estatuto de pessoa a um
atrasado mental profundo, apesar da pessoa ser tradicionalmente definida como
substância individual de natureza racional (Boécio), e ele é, por vezes, bem mais incapaz de cumprir deveres. Assim, admito que a noção de pessoa se mostre relativa, mas qualquer extensão dos
direitos dos animais para lá dos animais de companhia e outros animais treinados não vejo como possa fazer
sentido. Aí, só estarão em causa as nossas obrigações e não direitos estranhos
à nossa sociedade (a não ser que se faça uma qualquer fundamentação teológica com
que, como é óbvio, eu não concordo, visto ser ateu).
Ora, se se reconhecer este estatuto análogo ao dos seres
humanos aos animais de companhia, tenho sinceras dúvidas que muitas das
práticas dos chamados amigos dos animais sejam defensoras dos seus direitos. De
facto, é não só prática corrente, mas até é reivindicada como direito
fundamental, a esterilização ou a castração destes animais, incluindo os que
habitam na rua, chegando-se mesmo ao ponto de exigir programas de esterilização
grátis aos governos, um pouco como ocorre com os abortos nos humanos (ao menos,
neste país), embora com uma pequenina diferença, pois não é a própria potencial
progenitora a decidir nada. Na verdade, tem-se conhecimento de programas de
esterilização forçada nas populações humanas, atingindo etnias ou classes
marginalizadas em alguns recantos do terceiro mundo, mas isso é noticiado ou reportado como
uma flagrante ofensa aos direitos humanos mais elementares. Porque é que,
então, no caso dos animais de companhia tais práticas são reivindicadas como
direitos? Obviamente que cancelar a potencialidade mais fundamental de um ser
vivo não é conceder-lhe direito nenhum. Alegarão que é a única possibilidade de
controlar a sua população. O mesmo, com muito maior propriedade, se poderá
alegar em relação aos seres humanos e ninguém considerará que num programa de
esterilização forçada se estão a fazer cumprir os direitos humanos dos esterilizados.
Além disso, muitos animais, como muitos gatos, nem têm possibilidade de copular
por não saírem de casa ou das caixas de transporte, pelo que a sua
esterilização ou castração tem como única função não chatear os donos. E os
restantes, colocar-se-ia a questão caso não existisse uma intervenção humana a
montante?
As pessoas deveriam deixar-se de subterfúgios e ser honestas
nas suas motivações. A razão porque aprisionam animais nas suas casas é, em
primeiro lugar, a da sua própria satisfação afetiva. Isso é especialmente
evidente no caso dos gatos, visto estes não serem especialmente conhecidos como
guardas, guias, pisteiros, etc. Existe uma verdadeira legião de pessoas que
procura tirar recém-nascidos das ruas, mesmo roubando-os às suas mães, alegadamente
para os proteger (é só procurar na net, encontrarão casos aos pontapés,
publicitados como se tivessem feito algo muito meritório). Se assim fosse,
seria natural libertá-los quando crescessem e não haveria qualquer razão para
os castrar ou esterilizar. Ah! não sobreviveriam – talvez, como muitos animais
na natureza, mas estes animais só não aprendem a caçar se os impedirem – e
mesmo impedindo-os, se não houver mais nada, eles aprendem a caçar moscas e
baratas. Mas um animal que não pode fundar uma empresa, nem pode fazer poemas,
nem pode fazer investigação científica, nem aderir a uma religião, tem o seu
sentido de vida onde? Em permanecer vivo o maior tempo possível, como pensam
certos humanos por terem desenraizado a sua subjetividade da pertença à natureza,
ou, pelo contrário e menos antropomorficamente, na procriação? As pessoas
interferem no rumo natural desses animais devido às suas necessidades afetivas,
exatamente como um raptor de uma rapariga que a sequestra numa subcave procura
se satisfazer e beneficia do famoso síndroma de Estocolmo para até acabar por
ser alvo da afetividade da vítima. É natural, visto as pessoas e muitos animais
não poderem viver sem afeto, mesmo que sejam vítimas de longa duração. Mas, no
caso dos animais de companhia, ainda são castrados ou esterilizados porque são
vistos como coisas e não como seres com direitos porque, se o fossem, um dos
primeiros a ser assegurado seria o direito à reprodução. Que são vistos como
coisas também se vê nessa versão da acumulação (hoarding) compulsiva de
certos amigos dos animais que os vão acumulando, alegadamente para os proteger
da vida no exterior. Recentemente, muitos amigos dos animais quase queriam
linchar uma destas acumuladoras em canis ilegais, ocultando o facto de ela ter
sido vista, porventura durante décadas, como protetora dos animais. Existem
muitos mais casos desses do que se noticia, não em canis ou gatis, mas até em
casas, que são considerados casos amigos dos animais. Cães e gatos são
amontoados em espaços exíguos e isso é considerado melhor do que deixá-los
entregues aos perigos naturais.
Regressando, porém, ao direito de reprodução, o próprio
controlo das populações que é pensado para nossa vantagem e não para a deles
(caso contrário, muito mais deveria ser pensado para os seres humanos) só é
necessário devido à interferência humana. Pensando esses animais
antropomorficamente e o próprio homem reduzido ao homem urbano, desenraizado,
que se julga tanto mais um átomo isolado quanto mais está amontoado nos prédios
com todos os outros, julga-se que existe um imperativo categórico de os fazer
viver individualmente o maior tempo que for possível, não deixando que os
mecanismos de controlo natural das populações se efetivem. O mesmo, aliás, se
faz com os seres humanos com os resultados desastrosos que a explosão
demográfica já está a ter no planeta, que acabarão por vir ainda a ser bem
piores. Não só os animais são retirados do meio natural, como muitas pessoas generosas
ainda alimentam os que vagueiam pelas ruas, isto sem falar dos próprios
recursos desperdiçados no nosso lixo que tantos animais sabem aproveitar. Vez
em vez, lá tem de se levar a cabo uma campanha maciça de desratização porque as
ratazanas se tornaram uma praga. Porquê? Porque, diligentemente, protegemos os
seus predadores naturais, cães e gatos, da vida natural, alimentamo-los em vez
de os deixar obter a sua alimentação pela caça e, depois, confrontamo-nos com o
desequilíbrio ecossistémico produzido, isto porque nem temos consciência que se
formam ecossistemas no meio urbano tal como no campo ou numa selva distante.
Quanto à proliferação, nunca vi onde estava o problema da proliferação de
gatos, mas, no caso dos cães, dá-se a formação de matilhas, por vezes perigosas
em ambiente urbano (Por curiosidade, não tenho visto essas matilhas que via
formarem-se tantas vezes no local que habito, após a legislação que proíbe o
abate – não haverá aqui alguma aldrabice?). Porém, se os humanos
deixassem de meter o nariz onde não são chamados, toda essa proliferação seria
muito limitada pela seleção natural. É claro que aqui há, logo, um problema
fundamental por se ver a morte como um mal a combater de forma incondicional, o
que é uma perspetiva contrária à própria vida, cuja dinâmica depende de dois
processos fundamentais, a procriação e a morte. Do ponto de vista da consideração da dinâmica da vida, os
processos naturais de morte (e não as matanças maciças levadas a cabo pelo
homem) são um bem absolutamente necessário para se irem encontrando sempre
novas soluções face às mudanças ambientais.
A forma como se lida com os animais chamados de companhia
nos resquícios ainda existentes de ambiente rural é, por norma, muito mais
sadia. Muitas vezes, eles só têm ligação a certas pessoas por costumarem estar
nas suas propriedades, receberem restos da sua comida e existir troca de
afetos. Os cães serão mais usados para funções específicas e, por isso, também
objeto de maior posse, mas reproduz-se apenas aqui a original simbiose que
motivou aquela que se julga ser a primeira domesticação humana, a do lobo
tornado cão, isso se não se contar com uma eventual domesticação do próprio
homem. Os espaços em que habitam são, por norma, incomparavelmente superiores
para a realização plena da sua vida, mesmo que tenham bem menos estofos e
almofadas. É verdade que, por outro lado, no ambiente rural, me parece ser
praticada com muito maior facilidade a eugenia, o que resulta de uma
consciência maior que a urbana dos equilíbrios naturais e do resultado da
intervenção humana perturbador desses equilíbrios. Porém, é desse ambiente
rural (pelo menos, hoje; no passado, foi bem diferente) que ainda emerge a
defesa de práticas de agressão animal como as conhecidas touradas. Argumentam
os defensores da tauromaquia que os touros têm uma qualidade de vida muito
superior à generalidade dos bovinos existentes no nosso território e que o
desaparecimento da arte tauromáquica implicaria, a prazo, a extinção da raça
por falta de viabilidade económica. A maioria das raças com um efetivo numeroso
têm uma vida inominável passada num espaço exíguo, destinadas à produção de
carne rápida ou à produção leiteira. Por outro lado, tem-se assistido à
extinção de numerosas raças bovinas por requererem mais tempo, mais espaço e
maior liberdade, e as que subsistem em alguns nichos do nosso campo, só
subsistem devido a medidas estatais protetoras. Claro que não se percebe que o
mesmo não pudesse ocorrer com os touros, mas o que é, para mim, impressionante
é a simetria dos argumentos entre os defensores da tauromaquia e os amigos dos
animais. Em ambos os casos, o mesmo paternalismo, como se as espécies não
pudessem sobreviver sem o nosso cuidado, quando isso até pode ser verdade mas
apenas devido à agressão humana aos ambientes naturais de onde elas provêm. E,
claro, para assegurar essa suposta proteção, têm de ser torturados até à exsanguinação,
no caso dos touros, ou privados das capacidades reprodutivas pelos amigos dos
animais. Poder-se-á dizer que a tauromaquia é motivada não por essa proteção,
mas pelo gozo da violência e crueldade. E os amigos dos animais? É a proteção
dos animais que visam ou a satisfação afetiva conseguida com a sua possessão,
num processo que tem, aliás, claros paralelos com a possessão humana?
Claro que os amigos dos animais negarão perentoriamente
esta acusação, mas, como em tantos outros casos, os atos mentem muito menos que
as palavras. E as próprias palavras quando não estão a considerar uma tese
geral, revelam a sua integral verdade. Inúmeras são as páginas da net a defenderem
o efeito terapêutico do contacto com ou da posse de animais. Se o tratamento fosse
análogo aos dos humanos, como está implícito no uso do termo direito, seria concebível
considerar a posse de um ser humano apenas devido aos efeitos terapêuticos que
traria? Nesses infernos da solidão urbana, certamente será terapêutica quer a
posse de um gato, quer a posse de uma pessoa. Não se considera hoje legítimo possuir
uma pessoa como detentora de direitos inalienáveis que é. Mas não era suposto
existirem direitos dos animais? Claro, alega-se que isso também é feito para o
bem do animal, mas isso soa muito similar a muitas justificações paternalistas
do passado para a escravatura, para o colonialismo, para o racismo, para a
sujeição das mulheres e para os abusos das crianças. E, em todos esses casos,
as vítimas conformavam-se na maioria dos casos e muitas até ganhavam amor à
relação existente, por vezes até mesmo no caso de abusos brutais. É natural.
Estamos determinados a criar laços afetivos em quaisquer circunstâncias e, se a
circunstância inevitável é a de algum tipo de aprisionamento ou sujeição, será
aí mesmo que esses laços florescerão.
Estes animais, cães e gatos por exemplo, estão
determinados geneticamente a desenvolver as suas capacidades de caça, a
explorar o ambiente e, sobretudo, a procriar. Outros eventos que enchem as
páginas da net são os seus “desaparecimentos”. Eles não desaparecem, eles
fogem, querem explorar outros ambientes, desejam procriar, mesmo, em certos
casos, quando lhes retiraram tal faculdade. Desejam viver, realizar plenamente
as faculdades impregnadas nos seus genes. O discurso paternalista dos amigos
dos animais torna-se aqui particularmente penoso. Lúcio no seu texto referente
a este assunto, menciona a reação de uma dona em relação às tentativas de fuga:
“Tonto! se se deixa a porta aberta é capaz de fugir doido, não sabe o melhor
para ele, perigos do mundo todo.” (vol. III, p.231) Este tipo de declarações
inunda as redes sociais, juntamente com os pedidos de ajuda nos
desaparecimentos, singularmente similares aos de supostos dementes e crianças,
como se animais fossem seres indefesos em plena idade adulta. E, de facto, o
condicionamento doméstico pode ser de tal ordem que se tornam especialmente
incapazes de se alimentarem, mesmo num ambiente urbano que concede tantas
facilidades. E, assim, surge como complemento, os relatos relativos a animais “perdidos”,
se bem que desconfio que a maioria resulta mais de abandonos que de fugas.
Mesmo em outros animais, deverá ser diferente o que resulta do seu próprio
desejo e o que resulta do desejo do dono. Mas, se se tem alguma dúvida acerca
das motivações profundamente egoístas dos amigos dos animais, é ver o que os
mais privilegiados deles fazem com a seleção hereditária. Pegando numa seleção
que, originalmente, deveria corresponder apenas a motivos utilitários, buscando
desenvolver certas características que tornavam um animal mais apto para a
caça, para a guarda de rebanhos e de casas, para guiar cegos, para encontrar
fungos, para busca e salvamento, para deteção de produtos proibidos, para o
envio de mensagens, para o assalto às linhas inimigas, para o transporte e para
a carga, etc., sucessivos bandos de castas, ordens ou classes de indolentes
entretiveram-se, através dos séculos, a selecionar características aberrantes,
as malformações que surgem em todas as espécies, até ao ponto de criarem raças
naturalmente inviáveis e que sofrem ao longo da vida de problemas de saúde como
os problemas respiratórios e oculares dos pugs. Tal não ocorreu por
acaso, estes amigos dos animais não só o fizeram intencionalmente, como
continuam a exagerar essas características e fazem concursos onde se premeia o
focinho mais curto e mais inviável ou outra qualquer característica aberrante.
Uma tal eugenia às avessas considera os direitos dos animais em quê? Ter
direitos é ser sujeito e aqui até podem ser idolatrados, mas, como todo o ídolo,
na medida em que se é reduzido a objeto. A reificação das mulheres tinha e, em
parte, ainda tem, as mesmas características. Exatamente por serem apenas objetos
é que se podia exigir delas características impossíveis a não ser, normalmente,
com extremos sofrimentos, como corpos anoréticos de Barbie ou glândulas
mamárias desproporcionadas para a delicadeza do restante corpo. E o facto de
essas modelos, atrizes ou misses desejarem a idolatria justifica tanto esses
padrões como a afetividade desenvolvida em todas as formas de sujeição antes
referidas.
Mas, para lá da perversidade das castas privilegiadas e
da estéril vaidade da exibição de aberrações tidas como modelos de beleza ou de
requinte, o que legitima a sujeição animal, já supondo a motivação da
insuportabilidade da existência urbana desenraizada, é a mesma ordem de razões
que é obsessivamente usada para tantas justificações: o medo
desesperado da morte, a legitimação de toda e qualquer prática que afaste um
pouco mais o eterno espetro temido. Apesar da antropomorfização que leva as
pessoas a pensarem os animais como uma espécie de pessoas urbanas,
desenraizadas, que veem o sentido da existência em durarem o mais que for
possível e, assim, julgarem que a garantia dos direitos dos animais é
assegurar-lhes uma maior duração, o discurso da maioria destes amigos dos
animais muda subtilmente quando se aborda a questão da experimentação em
animais. Sei isso antes de mais pelos debates a que assisti ao longo de muitos
anos de trabalhos discentes sobre a questão. É fácil manifestar o horror
perante as práticas da indústria cosmética, especialmente cruéis para com
determinadas espécies, visto elas terem uma finalidade vã. Mesmo para tantas
pessoas que quase vivem para a cosmética e cuja existência se realiza na
vaidade da sua própria exibição, parece não haver justificação para sujeitar os
animais a sofrimentos tão atrozes apenas para tal fim. Mas se o debate se vira
para a experimentação por motivos médicos ou farmacêuticos, o caso muda de
figura, pois a extensão mesmo que mínima da vida humana justifica todos os
sacrifícios, incluindo os de milhares ou milhões de vítimas animais. As melhor intencionadas das pessoas ainda defendem as atuais formas alternativas de
testes, mas, se pressionadas com a possibilidade de uma menor eficácia, de uma
maior premência ou de certos casos só serem exequíveis em animais, logo cedem e
aceitam a possibilidade de experimentação animal. Até mesmo defensores filosóficos
dos direitos dos animais acabam, no limite, por admitir tal possibilidade.
Porquê? Exatamente por se considerar que qualquer combate contra a nossa morte,
mesmo que signifique apenas um pequeno adiamento, legitima todas as práticas,
mesmo aquelas onde repentinamente se desvanecem os supostos direitos dos
animais e se evidencia que afinal o que sempre orientou a nossa ação foi a
conveniência humana.
A loucura do último homem nietzscheniano, embora esteja
patente em tantos âmbitos, em nenhum é tão gritante como aqui. Reduzido a uma
não existência que se dispersa em entretenimentos e fantasias, o homem urbano
do mundo dito desenvolvido vive entregue a vícios, a ansiedades, a tédios, a
depressões, a possessões obsessivas, a projeções de futuros idílicos, a
identidades impossíveis, a euforias momentâneas e a vazios intermináveis,
procurando tudo consumir para tentar colmatar esse vazio e buscando prolongar
ao máximo a duração da vida numa esperança desesperada de ver por fim
satisfeito o seu para sempre insaciável apetite. Este último homem extremamente
desenraizado de sociedade, natureza e até realidade, vivendo uma existência
passivamente alucinada alimentada por mil e um ecrãs, totalmente despojado de
sentido e de valor, afirma um constante hedonismo completamente insensível do
ponto de vista social, constantemente regulado por uma busca incessante de
prazer e por um cultivo do presente sem consciência de passado e sem preocupações
com o futuro onde apenas busca poder continuar a consumir. Quanto mais declara
o imperativo absoluto do prazer, mais infeliz é, quanto mais declara a
irrelevância dos outros, mais desesperada é a sua solidão, quanto mais declara
a importância de viver o presente, menos se realiza como pessoa, como cidadão
ou como simples existência. E se conseguisse uma droga que lhe permitisse
manter esse prazer completamente alienado da realidade, sem quaisquer outras
consequências orgânicas ou sociais, por nada a largaria. Ora, é exatamente
nesta forma miserável de existência que se vive no mundo dito desenvolvido que,
mais que em qualquer outra época, se deseja a vida eterna, a vida eterna nesta mesma terra. Estou
convencido que se fosse dada a possibilidade de vida eterna à atual humanidade urbana
sob pena de se extinguirem todas as outras espécies, se envenenar todo o
ambiente e se cristalizar toda a possibilidade de evolução, impedindo a própria
procriação, não hesitariam um segundo na sua eleição. Nunca a desmesura humana
foi tão extrema e nunca foi tão motivada por uma existência absurda. Já se vive
como se imaginavam os deuses, intemporalmente, com tudo o que isso significa de
absoluta indiferença à memória ou a qualquer tipo de projetos. Imagine-se uma
vida eterna em que tudo fosse sacrificado para tornar perene esta ausência de
sentido. Os castigos que se imaginaram no inferno não seriam nada comparados
com a insuportabilidade de uma tal duração sem morte. E assim se viveria a pior
de todas as mortes.
Porque é tão insuportável a vida dos privilegiados, ao
ponto de terem de multiplicar as perversões e as aberrações apenas para se
manterem entretidos e nunca se confrontarem com o seu próprio vazio? Somos
seres vivos, as nossas capacidades visam garantir a nossa sobrevivência, sem o
aguilhão da luta pela sobrevivência a nossa potencialidade adaptativa, este
imenso cérebro que nos garantiu uma versatilidade ímpar e o triunfo sobre as
outras espécies, vira-se contra nós próprios por não ter em que se aplicar, tornando-se autodestrutiva. Quer-se sobreviver quando a sobrevivência está ameaçada. Quando não há qualquer ameaça, a falta de ameaça torna insuportável a existência, transformando-se na própria ameaça sob a forma de loucura. A imensa flexibilidade do nosso cérebro sem ter a que se aplicar produz todos os fantasmas e demónios e espetros que animam lendas e mitos, sonhos e pesadelos, delírios e alucinações. Uma das formas da loucura é a desmesura e uma das formas de desmesura é o desejo inconsistente de imortalidade, pois nem uma vida finita sem perigo se aguenta com facilidade, tal o aborrecimento em que redunda. Não
é inconcebível a imortalidade apenas por não termos meios técnicos de a
realizar, é inconcebível por ser contraditória com a dinâmica da própria vida.
A vida perdura através das espécies e da sua evolução como um projeto conjunto
cego de que não sabemos os desígnios ou sequer se terá desígnios. O desejo de
eternizar um indivíduo é um desejo contrário à própria vida e que só poderia
ser realizado, mesmo que fantasticamente, cristalizando a própria vida numa
eternidade sem mudança, como, aliás, se pensava o paraíso no além. A loucura da
subjetividade desenraizada pode ter como imperativo a maior perduração possível
da vida, aplicando-a mesmo a animais que não têm essa loucura, por se ter
alienado da própria vida a que, porém, continua a pertencer, por se ter
apartado da própria ordem natural, julgando possuir uma destinação superior e
oposta como sempre foi característico das alucinações psicóticas. Por isso, não
vê grande problema em todos os atentados contra a vida e a natureza, pois vive
na realidade alternativa da realização impossível de uma distopia técnica de
satisfação infinita dos caprichos. A distopia técnica realizar-se-á, sem
dúvida, mas estará bem longe das projeções oníricas que a animaram. O que se
projeta nessa distopia tem a mesma consistência dos sonhos e não aguentaria
dois segundos de reflexão ponderada. Mas o mundo em que habita o último homem é
o mundo da desconexão mental. Tal como nos produtos do cinema comercial que
conseguem o êxito com narrativas sem nexo, unicamente por estimularem os sonhos
desarticulados dos próprios espetadores, o próprio pensamento acerca destes
assuntos é publicamente levado a cabo por sofistas dos nossos tempos que prometem
todas as maravilhas que, realizadas, só consolidariam o inferno, um mundo sem
trabalho, uma existência totalmente entregue ao consumo, sem sequer necessitar
de qualquer esforço, um futuro onde já não exista qualquer necessidade de
objetivos por tudo se encontrar satisfeito.
O óbvio, o lugar-comum, as banalidades nem sempre são
estéreis ou desnecessárias. Por vezes, há que repeti-las até a exaustão para
tentar acordar uma qualquer forma de insanidade. A vida alimenta-se da morte. A vida precisa da morte de forma essencial. Sem morte, não há vida. A vida
resiste a mudanças drásticas do clima, da toxicidade atmosférica, dos níveis de
radiação por se renovar e encontrar caminhos através da lotaria da seleção
natural. Seleção natural significa morte, muita morte, tanta quanta a vida que
permite. Procurar escapar à morte é o mesmo que procurar escapar à vida. Na
verdade, tal só é possível no inorgânico e o cansaço da vida, da vida como luta
pela sobrevivência, da vida que se alimenta da morte e que evolui matando e morrendo,
é, no fundo, mesmo que as pessoas assim cansadas não tenham consciência disso
ou produzam uma consciência oblíqua que não pensa o que está mesmo à sua
frente, um desejo de regressar à perenidade inorgânica aparentemente imutável,
visto só aí o indivíduo não ter que enfrentar a sua dissolução por nem sequer
existir. Uma ética contrária à morte é uma ética contrária à vida. Poder-se-ia
criar uma lei universal da natureza em que se banisse a morte? Só banindo a própria
vida. Poderá a nossa vontade querer isso? Na loucura do último homem, talvez.
Pode trazer maior felicidade a um maior número de entidades banir a morte?
Teria de se banir a procriação para poder banir a morte e a vida conseguida
para aqueles que perdurassem acabaria por ser insuportável. Será prudente
desejar e agir para banir a morte? Só se julgar que a própria vida é um mal e
que seria prudente acabar com tal anomalia no aparente equilíbrio inorgânico.
Logo, porque se julga que é agir bem evitar a todo o custo a morte? Evitar a
morte como manifestação de vida é com certeza bom, não sei se em geral, mas
certamente para a vida. É pelo afã dos organismos em sobreviver que se procria
e se desenvolvem novas possibilidades. Mas evitar a morte, evitando a vida,
como na imposição da castração ou da esterilização a outras espécies, é algo
contrário à própria vida. Impedir organismos de lutar pela sua sobrevivência,
caçar e serem caçados, desenvolver as suas próprias manhas e sujeitar-se ao
risco da morte, é algo contrário à própria vida. Intervir nos equilíbrios
ecossistémicos e impedir de se desenrolarem os processos naturais de controlo
das populações, é algo contrário à própria vida. Eleger espécies para nosso deleite
ou utilidade e proibir a sua existência natural, é algo contrário à própria
vida. Não nos importarmos nada com os milhares de espécies que dizimamos todos
os anos e julgarmos que as preservamos enfiando os seus últimos exemplares em
jaulas, é algo contrário à própria vida. Não sei se existe algum fundamento
absoluto para a ética, mas parece-me que, pelo menos, enquanto seres vivos,
pertencentes ao mesmo projeto comum que é a vida, é no mínimo contraditório
agir contra a própria vida – afinal, é contra nós mesmos que estaremos a agir.
É também absurdo considerar absolutamente não ético comer animais e ter como animais de estimação carnívoros, para os quais, aliás, há também uma indústria alimentar carnívora. Se fosse algo reprovável comer seres sencientes, seria sempre reprovável. Nem sequer é verdade que sejamos a única espécie que pode ter consciência do caráter senciente de outras. Os predadores desenvolvem as suas táticas de caça, considerando a atuação provável das suas presas e projetando nas presas a consciência de um organismo capaz de agir segundo finalidades. Todos conhecemos exemplos dados pelos media de interação intencional e benéfica entre membros de espécies diferentes, o que mostra a capacidade de ver noutra espécie um outro senciente. O facto de haver quem pense que nós como seres racionais (seja lá isso o que for) não deveríamos matar qualquer ser senciente só é possível por nos pensarmos apartados da própria vida, pertencentes a uma ordem superior e estranha a ela. Para mim, isso é uma mera forma de loucura psicótica, como julgar-se de uma outra espécie, rico quando se é pobre, imperador do mundo quando nem na sua casa se manda, uma laranja com medo de ser descascada. Mas reconheço que é só uma pequena loucura que até pode moderar uma loucura muito maior. Em toda a natureza, os predadores sempre foram escassos, em número muito inferior às potenciais presas. Porém, nós atingimos um número de efetivos que dificilmente poderá ser atingido por algum herbívoro, ainda por cima com o porte médio que temos. O planeta há muito teria implodido se toda a humanidade tivesse os níveis de consumo de carne dos países mais privilegiados. A verdade é que, mesmo sem vegetarianismo, a larga maioria da humanidade consome sobretudo produtos vegetais, certamente, em muitos casos, não por querer, mas por a carne não lhe ser acessível. Apesar disso, os recursos necessários a satisfazer os poucos humanos predominantemente carnívoros são colossais. As condições em que vivem os animais a consumir são horrivelmente degradantes do simples ponto de vista do que seriam as suas condições naturais de vida. Mas a principal causa que aconselha, usando imperativos prudenciais, moderação nesse consumo é a falta de moderação atingida nos nossos efetivos. Não há loucura maior que este crescimento demográfico que nenhum regime alimentar poderá sustentar, por mais que se insista no crescimento económico até ao abismo final da exaustão de todos os recursos. E que se julgue que se está a lutar pelo equilíbrio ambiental, pela biodiversidade ou pela natureza sem estar pronto a promover a regressão económica e populacional, por se tentar proteger a vida de um gato de rua, é só mostrar que não se consegue sequer pensar. O que seria preciso para minimizar os efeitos desta loucura era, em primeiro lugar, empobrecer, empobrecer muito, até termos de voltar a ganhar o pão de cada dia; em segundo lugar, deixarmos atuar os mecanismos naturais de controlo da população na própria população humana; em terceiro lugar, recriarmos ou deixarmos que se recriassem por si os equilíbrios ecossistémicos que arrasámos por toda a parte; em quarto lugar, deixar as espécies viver e morrer em paz, quanto muito caçando alguns exemplares para a nossa alimentação imediata. Vai acontecer algo similar a isto? Não.
Frente a cada abismo, arranjaremos novas soluções técnicas. Poderemos limitar alguns consumos, os combustíveis fósseis, o próprio consumo da carne, alguma pesca predatória, aumentar algumas reservas, mas a biodiversidade não parará de ser dizimada, a vida natural substituída por vida fabricada e o próprio humano será cada vez mais fabricado de origem e gradualmente customizado por peças artificiais. Heidegger mantinha uma esperança desesperada que uma qualquer forma de religião nos pudesse salvar da distopia técnica, mas reconhecia que era a técnica a forma de desvelar os entes da nossa época. Logo, qualquer nova religião tende a emergir da própria linguagem técnica, como já se pode observar nas novas formas ditas de “espiritualidade”. E isso só consolidará a própria mentalidade técnica, associando-a à fé e às superstições obscurantistas, para produzir um novo sincretismo místico conformista.
A esta estranha mentalidade bem dominante da cultura urbana não é estranho zelar pela vida do gatinho por ser fofinho, ao mesmo tempo que é indiferente à extinção de milhões de espécies inteiras necessária à manutenção do tipo de vida que, entre milhentas engenhocas distrativas, vive tão apartada da natureza que julga estar a proceder muito bem ao retirar o gatinho à sua mãe e à vida natural. A preocupação com outras espécies é um nobre sentimento que se deveria cultivar cada vez mais, visto nos poder religar ao projeto global da vida, fazendo-nos voltar a ganhar uma noção de pertença fundamental. Aliás, destruímos de tal forma essas espécies e os seus habitats que o mínimo que podemos fazer é compensá-los um pouco pelo crime. A própria simbiose desenvolvida com outras espécies, dando origem aos chamados animais domésticos, reforçaria a ligação à vida, muito embora seja difícil de aceitar, numa ética da vida, os confinamentos a que os forçamos sobretudo no espaço urbano. Mesmo que não fosse a melhor vida possível desses animais, os fins utilitários prosseguidos estão demasiado enraizados e, libertos das sujeições urbanas e agropecuárias, até poderão realizar, através deles, as suas potencialidades naturais. Há, aliás, muitas situações intermédias que não estou aqui a contemplar. Porém, julgar que se está a fazer alguma coisa de meritório ao adotar animais, retirando-os às próprias mães e ao seu ambiente natural, em vez de lutar para eles poderem viver, apenas com os riscos normais, nesse ambiente, mesmo que sejam as ruas das nossas cidades, e ainda por cima confundir encafuar animais castrados em apartamentos com ambientalismo, é uma forma de confusão mental que espero ser apenas característica deste país. Os objetivos são, aliás, contrários. Se se busca restaurar equilíbrios naturais, devemos ver como naturais os processos de vida e morte e procurar evitar interferir mais do que já temos feito nesses equilíbrios. A morte de um animal não é um crime contra o ambiente, é a simples dinâmica da vida. Aliás, mesmo as mortes humanas deveriam ser vistas da mesma forma. A ótica da proteção do animal fofinho não é mais do que uma extensão do desenraizamento individualista, incapaz de se sentir pertencente a seja o que for, até a família, e buscando desesperadamente um refúgio para o seu angustiante isolamento. A extinção de uma espécie ou de uma raça, a destruição de um ecossistema, a alteração dos equilíbrios climáticos, o desprezo pela preservação da biodiversidade, isso são crimes ambientais. Deixemos os animais em paz, a não ser que estejam ameaçados por nossas ações anteriores. Aí, é natural tentar compensar os crimes cometidos. De resto, não nos esqueçamos que a maioria das espécies já por cá andava antes de nós e não precisava de nós para nada. O que esses animais precisam é de livrar-se da nossa interferência para poderem viver e morrer no seio dos equilíbrios naturais.