4.10.20

Ambientalismo e direitos dos animais

     Depois de muito hesitar, resolvi, vencendo a autocensura, tratar este tema. Tenho a certeza que será dos assuntos em que mais serei alvo de rejeições, mas, entre os muitos assuntos em que me autocensurei para não ter de me digladiar com as mentalidades dominantes, visto afrontá-las diretamente, este parece-me que tem uma especial acutilância por somar à estupidez típica do domínio das mentalidades dominantes (visto que, exatamente por serem dominantes, não têm de apresentar razões, julgando ser razões uns boçais lugares comuns que a mínima análise intelectual isenta mostraria sem sentido), uma incongruência política muito especial, nascida do facto de nunca termos tido um verdadeiro movimento político ambientalista. De um lado tivemos o “partido” melancia, do outro movimentos emergentes de um certo espírito aristocrático, por vezes associados a algum ruralismo e também a alguma teologia, e para acabar uma formação defensora dos direitos dos animais. Nenhum deles é de raiz unicamente ambientalista – e, na minha opinião, nenhum o é de forma autêntica. Tenho a certeza da rejeição deste artigo pela esmagadora maioria porque conheço o meu país, onde se responde a argumentos com emoções e, a essas emoções, segue-se sempre o rasgar de vestes, por se atreverem a identificar abusos onde só havia coração, sempre muito coração na boca para poder ocultar e falsear a realidade. Se alguém quiser espumar ódio sem argumentos que mereçam a minha consideração, nem sequer lhe responderei. Se alguém quiser manifestar o seu paternalismo do cimo da sua enorme autoridade moral, política ou sábia, farei o mesmo – já não tenho idade para estar a aturar paternalismos bacocos e, para dizer a verdade, também nunca tive paciência para eles. Se alguém quiser seriamente contra-argumentar, estou aberto à discussão.

     Uma das minhas filhas “adotou”, em julho, duas gatinhas. Eu opus-me, de um ponto de vista pessoal, mas, como a minha casa não é uma ditadura e não considero que seja mais minha do que dela, lá vieram as gatinhas. Comprei-lhes acessórios, compro-lhes comida, lavo isto e aquilo, interajo de forma genérica com elas, até porque, confesso, sempre gostei de gatos e seria incapaz de as maltratar, não por direito delas, mesmo que o tenham, mas por dever meu. Julgo, porém, que devo expressar as razões da minha oposição, exatamente pela associação ao tema deste artigo, mesmo que essa oposição não se traduza em nada, visto elas não serem minhas, mas sim da minha filha, e eu não me considerar com direito a impedir essa “posse”. Já agora, já antes tive aqui, como animais de estimação, quatro ratazanas da minha outra filha e uma gata que era tratada pelo meu filho. As ratazanas foram entretanto para a casa da avó da minha filha e a gata referida morreu com uma doença. Em todos os casos, procedi da mesma forma. As duas gatas atuais terão sido tiradas da rua ainda bebés, não sei exatamente em que condições, o que, a julgar pelos exemplos da net, parece não importar muito, justificando-se sempre para esses amigos dos animais a adoção.

     Indo por partes, em primeiro lugar, gostaria de examinar a própria noção de direito presente na bandeira dos direitos dos animais. Por diversas vezes, me tenho insurgido contra a defesa da noção de direito no vazio, como um absoluto axiomático que não é preciso justificar. Fi-lo, por exemplo, em relação à filosofia política de Nozick, exatamente por ir buscar a noção de Locke, mas esquecendo-se de trazer atrás algo que era fundamental para ela ter sentido: Deus. Mesmo não supondo nenhuma herança absurda desde Adão, como o próprio Locke não supõe, opondo-se, aliás, a posições da altura, para defender a existência de direitos naturais, é necessário um plano em relação ao qual os direitos são estabelecidos, na medida em que esse plano fornece a base de verdadeiras leis práticas naturais. Sem Deus, não há nada. Schopenhauer também os defendia, mesmo que sem sociedade ou Estado não pudessem ser objeto de reconhecimento – mas com base em quê se o próprio Schopenhauer não supõe Deus (ao menos, explicitamente) e parece pouco inclinado a dar o seu apoio a critérios inerentes à razão humana como o do imperativo categórico? A sua noção de justiça corresponde exatamente à do princípio do Direito no início da Metafísica dos Costumes (Kant), mas este já supõe uma sociedade (o âmbito da legalidade). Suponho que será para não ter de a supor que Schopenhauer a considera de natureza moral. Porém, mesmo neste caso, a sua argumentação dificilmente poderia dispensar um contrato social de algum tipo. Evoca o exemplo do sentido de justiça de um selvagem como se os selvagens não tivessem sociedade e Estado e estruturas sociopolíticas. Pelo contrário, mesmo o mais “civilizado” (seja lá o que isso for) dos europeus não se sentiria injustiçado por ser mordido por uma cobra. Senti-la-ia como perigo, ameaça ou uma infelicidade depois do facto consumado – poderia até matá-la – mas não alegaria a ocorrência de qualquer injustiça. Diga-se, aliás, que mesmo o sentimento de injustiça que se possa ter em relação ao que se fez à natureza está dependente ou de uma conceção religiosa (mesmo que pagã), ou de uma conceção da inserção da simples sociedade humana na natureza que possa fornecer um plano a partir do qual se podem pensar direitos e deveres. Não faz sentido pensar qualquer tipo de direito sem um plano contratual qualquer e não faz sentido pensar quaisquer direitos sem quaisquer obrigações. Por isso é que dificilmente se poderá falar com sentido de direitos da natureza, fundando-se o nosso sentimento de injustiça nas falhas dos nossos deveres para com ela, seja pela nossa efetiva pertença a ela, seja pela referência a uma ordem superior.

     Claro que se poderia dizer com Hobbes que, no estado de natureza, todos têm direito a tudo. Mas o próprio Hobbes só o diz para mostrar a absurdidade dos direitos naturais. Todos terem direito a tudo é o mesmo que ninguém ter direito a nada e tudo ser resolvido pela maior força. Para dizer a verdade, mesmo os direitos consagrados pelo Estado só o são na medida em que é entregue ao Estado essa força – pelo que a força acabará sempre por decidir tudo, com ou sem contrato. Mas veja-se a própria noção de direito. Eu tenho direito a ser ressarcido pelo meu trabalho na medida em que esse trabalho decorreu no contexto de uma relação contratual. Se eu fosse fazer esse trabalho sem nenhuma combinação prévia, por muito que o meu trabalho fosse vantajoso para outrem, eu não teria direito a nada. Muitas vezes se evoca o exemplo das crianças por terem direitos e, supostamente, não terem deveres. Para lá de toda a necessidade de um pensamento mais complexo que considere um ser nas suas potencialidades e não apenas na imediatez, as crianças têm deveres desde muito cedo. São, na verdade, treinadas para terem determinados desempenhos e são premiadas quando os realizam. A partir do momento em que existem comportamentos que são estipulados, para lá de posses, pertenças, etc., uma relação contratual já está assente e pode-se falar de direitos e deveres. É por isso que eu até concordo com a legislação atualmente existente que incide sobre os animais de companhia. Os animais de companhia, pelo menos alguns, são exatamente treinados para terem determinados comportamentos, são recompensados por eles, têm o seu lugar e as suas posses, possuem os requisitos fundamentais para se poder falar de uma relação contratual, têm direitos e deveres. Potencialmente, uma criança poder-se-á desenvolver até níveis contratuais superiores, mas isso não significa que não se pudesse falar de uma relação contratual desde o início, não apenas pelas obrigações dos pais em função das suas relações contratuais na sociedade, mas também pelo projeto de pessoa que a criança constituía. Mesmo que um animal de companhia não se possa considerar uma pessoa por, por exemplo, não se poder defender e acusar num tribunal, o seu estatuto não é muito diferente aqui de uma pessoa. Aliás, ninguém retira o estatuto de pessoa a um atrasado mental profundo, apesar da pessoa ser tradicionalmente definida como substância individual de natureza racional (Boécio), e ele é, por vezes, bem mais incapaz de cumprir deveres. Assim, admito que a noção de pessoa se mostre relativa, mas qualquer extensão dos direitos dos animais para lá dos animais de companhia e outros animais treinados não vejo como possa fazer sentido. Aí, só estarão em causa as nossas obrigações e não direitos estranhos à nossa sociedade (a não ser que se faça uma qualquer fundamentação teológica com que, como é óbvio, eu não concordo, visto ser ateu).

     Ora, se se reconhecer este estatuto análogo ao dos seres humanos aos animais de companhia, tenho sinceras dúvidas que muitas das práticas dos chamados amigos dos animais sejam defensoras dos seus direitos. De facto, é não só prática corrente, mas até é reivindicada como direito fundamental, a esterilização ou a castração destes animais, incluindo os que habitam na rua, chegando-se mesmo ao ponto de exigir programas de esterilização grátis aos governos, um pouco como ocorre com os abortos nos humanos (ao menos, neste país), embora com uma pequenina diferença, pois não é a própria potencial progenitora a decidir nada. Na verdade, tem-se conhecimento de programas de esterilização forçada nas populações humanas, atingindo etnias ou classes marginalizadas em alguns recantos do terceiro mundo, mas isso é noticiado ou reportado como uma flagrante ofensa aos direitos humanos mais elementares. Porque é que, então, no caso dos animais de companhia tais práticas são reivindicadas como direitos? Obviamente que cancelar a potencialidade mais fundamental de um ser vivo não é conceder-lhe direito nenhum. Alegarão que é a única possibilidade de controlar a sua população. O mesmo, com muito maior propriedade, se poderá alegar em relação aos seres humanos e ninguém considerará que num programa de esterilização forçada se estão a fazer cumprir os direitos humanos dos esterilizados. Além disso, muitos animais, como muitos gatos, nem têm possibilidade de copular por não saírem de casa ou das caixas de transporte, pelo que a sua esterilização ou castração tem como única função não chatear os donos. E os restantes, colocar-se-ia a questão caso não existisse uma intervenção humana a montante?

     As pessoas deveriam deixar-se de subterfúgios e ser honestas nas suas motivações. A razão porque aprisionam animais nas suas casas é, em primeiro lugar, a da sua própria satisfação afetiva. Isso é especialmente evidente no caso dos gatos, visto estes não serem especialmente conhecidos como guardas, guias, pisteiros, etc. Existe uma verdadeira legião de pessoas que procura tirar recém-nascidos das ruas, mesmo roubando-os às suas mães, alegadamente para os proteger (é só procurar na net, encontrarão casos aos pontapés, publicitados como se tivessem feito algo muito meritório). Se assim fosse, seria natural libertá-los quando crescessem e não haveria qualquer razão para os castrar ou esterilizar. Ah! não sobreviveriam – talvez, como muitos animais na natureza, mas estes animais só não aprendem a caçar se os impedirem – e mesmo impedindo-os, se não houver mais nada, eles aprendem a caçar moscas e baratas. Mas um animal que não pode fundar uma empresa, nem pode fazer poemas, nem pode fazer investigação científica, nem aderir a uma religião, tem o seu sentido de vida onde? Em permanecer vivo o maior tempo possível, como pensam certos humanos por terem desenraizado a sua subjetividade da pertença à natureza, ou, pelo contrário e menos antropomorficamente, na procriação? As pessoas interferem no rumo natural desses animais devido às suas necessidades afetivas, exatamente como um raptor de uma rapariga que a sequestra numa subcave procura se satisfazer e beneficia do famoso síndroma de Estocolmo para até acabar por ser alvo da afetividade da vítima. É natural, visto as pessoas e muitos animais não poderem viver sem afeto, mesmo que sejam vítimas de longa duração. Mas, no caso dos animais de companhia, ainda são castrados ou esterilizados porque são vistos como coisas e não como seres com direitos porque, se o fossem, um dos primeiros a ser assegurado seria o direito à reprodução. Que são vistos como coisas também se vê nessa versão da acumulação (hoarding) compulsiva de certos amigos dos animais que os vão acumulando, alegadamente para os proteger da vida no exterior. Recentemente, muitos amigos dos animais quase queriam linchar uma destas acumuladoras em canis ilegais, ocultando o facto de ela ter sido vista, porventura durante décadas, como protetora dos animais. Existem muitos mais casos desses do que se noticia, não em canis ou gatis, mas até em casas, que são considerados casos amigos dos animais. Cães e gatos são amontoados em espaços exíguos e isso é considerado melhor do que deixá-los entregues aos perigos naturais.

     Regressando, porém, ao direito de reprodução, o próprio controlo das populações que é pensado para nossa vantagem e não para a deles (caso contrário, muito mais deveria ser pensado para os seres humanos) só é necessário devido à interferência humana. Pensando esses animais antropomorficamente e o próprio homem reduzido ao homem urbano, desenraizado, que se julga tanto mais um átomo isolado quanto mais está amontoado nos prédios com todos os outros, julga-se que existe um imperativo categórico de os fazer viver individualmente o maior tempo que for possível, não deixando que os mecanismos de controlo natural das populações se efetivem. O mesmo, aliás, se faz com os seres humanos com os resultados desastrosos que a explosão demográfica já está a ter no planeta, que acabarão por vir ainda a ser bem piores. Não só os animais são retirados do meio natural, como muitas pessoas generosas ainda alimentam os que vagueiam pelas ruas, isto sem falar dos próprios recursos desperdiçados no nosso lixo que tantos animais sabem aproveitar. Vez em vez, lá tem de se levar a cabo uma campanha maciça de desratização porque as ratazanas se tornaram uma praga. Porquê? Porque, diligentemente, protegemos os seus predadores naturais, cães e gatos, da vida natural, alimentamo-los em vez de os deixar obter a sua alimentação pela caça e, depois, confrontamo-nos com o desequilíbrio ecossistémico produzido, isto porque nem temos consciência que se formam ecossistemas no meio urbano tal como no campo ou numa selva distante. Quanto à proliferação, nunca vi onde estava o problema da proliferação de gatos, mas, no caso dos cães, dá-se a formação de matilhas, por vezes perigosas em ambiente urbano (Por curiosidade, não tenho visto essas matilhas que via formarem-se tantas vezes no local que habito, após a legislação que proíbe o abate – não haverá aqui alguma aldrabice?). Porém, se os humanos deixassem de meter o nariz onde não são chamados, toda essa proliferação seria muito limitada pela seleção natural. É claro que aqui há, logo, um problema fundamental por se ver a morte como um mal a combater de forma incondicional, o que é uma perspetiva contrária à própria vida, cuja dinâmica depende de dois processos fundamentais, a procriação e a morte. Do ponto de vista da consideração da dinâmica da vida, os processos naturais de morte (e não as matanças maciças levadas a cabo pelo homem) são um bem absolutamente necessário para se irem encontrando sempre novas soluções face às mudanças ambientais.

     A forma como se lida com os animais chamados de companhia nos resquícios ainda existentes de ambiente rural é, por norma, muito mais sadia. Muitas vezes, eles só têm ligação a certas pessoas por costumarem estar nas suas propriedades, receberem restos da sua comida e existir troca de afetos. Os cães serão mais usados para funções específicas e, por isso, também objeto de maior posse, mas reproduz-se apenas aqui a original simbiose que motivou aquela que se julga ser a primeira domesticação humana, a do lobo tornado cão, isso se não se contar com uma eventual domesticação do próprio homem. Os espaços em que habitam são, por norma, incomparavelmente superiores para a realização plena da sua vida, mesmo que tenham bem menos estofos e almofadas. É verdade que, por outro lado, no ambiente rural, me parece ser praticada com muito maior facilidade a eugenia, o que resulta de uma consciência maior que a urbana dos equilíbrios naturais e do resultado da intervenção humana perturbador desses equilíbrios. Porém, é desse ambiente rural (pelo menos, hoje; no passado, foi bem diferente) que ainda emerge a defesa de práticas de agressão animal como as conhecidas touradas. Argumentam os defensores da tauromaquia que os touros têm uma qualidade de vida muito superior à generalidade dos bovinos existentes no nosso território e que o desaparecimento da arte tauromáquica implicaria, a prazo, a extinção da raça por falta de viabilidade económica. A maioria das raças com um efetivo numeroso têm uma vida inominável passada num espaço exíguo, destinadas à produção de carne rápida ou à produção leiteira. Por outro lado, tem-se assistido à extinção de numerosas raças bovinas por requererem mais tempo, mais espaço e maior liberdade, e as que subsistem em alguns nichos do nosso campo, só subsistem devido a medidas estatais protetoras. Claro que não se percebe que o mesmo não pudesse ocorrer com os touros, mas o que é, para mim, impressionante é a simetria dos argumentos entre os defensores da tauromaquia e os amigos dos animais. Em ambos os casos, o mesmo paternalismo, como se as espécies não pudessem sobreviver sem o nosso cuidado, quando isso até pode ser verdade mas apenas devido à agressão humana aos ambientes naturais de onde elas provêm. E, claro, para assegurar essa suposta proteção, têm de ser torturados até à exsanguinação, no caso dos touros, ou privados das capacidades reprodutivas pelos amigos dos animais. Poder-se-á dizer que a tauromaquia é motivada não por essa proteção, mas pelo gozo da violência e crueldade. E os amigos dos animais? É a proteção dos animais que visam ou a satisfação afetiva conseguida com a sua possessão, num processo que tem, aliás, claros paralelos com a possessão humana?

     Claro que os amigos dos animais negarão perentoriamente esta acusação, mas, como em tantos outros casos, os atos mentem muito menos que as palavras. E as próprias palavras quando não estão a considerar uma tese geral, revelam a sua integral verdade. Inúmeras são as páginas da net a defenderem o efeito terapêutico do contacto com ou da posse de animais. Se o tratamento fosse análogo aos dos humanos, como está implícito no uso do termo direito, seria concebível considerar a posse de um ser humano apenas devido aos efeitos terapêuticos que traria? Nesses infernos da solidão urbana, certamente será terapêutica quer a posse de um gato, quer a posse de uma pessoa. Não se considera hoje legítimo possuir uma pessoa como detentora de direitos inalienáveis que é. Mas não era suposto existirem direitos dos animais? Claro, alega-se que isso também é feito para o bem do animal, mas isso soa muito similar a muitas justificações paternalistas do passado para a escravatura, para o colonialismo, para o racismo, para a sujeição das mulheres e para os abusos das crianças. E, em todos esses casos, as vítimas conformavam-se na maioria dos casos e muitas até ganhavam amor à relação existente, por vezes até mesmo no caso de abusos brutais. É natural. Estamos determinados a criar laços afetivos em quaisquer circunstâncias e, se a circunstância inevitável é a de algum tipo de aprisionamento ou sujeição, será aí mesmo que esses laços florescerão.

     Estes animais, cães e gatos por exemplo, estão determinados geneticamente a desenvolver as suas capacidades de caça, a explorar o ambiente e, sobretudo, a procriar. Outros eventos que enchem as páginas da net são os seus “desaparecimentos”. Eles não desaparecem, eles fogem, querem explorar outros ambientes, desejam procriar, mesmo, em certos casos, quando lhes retiraram tal faculdade. Desejam viver, realizar plenamente as faculdades impregnadas nos seus genes. O discurso paternalista dos amigos dos animais torna-se aqui particularmente penoso. Lúcio no seu texto referente a este assunto, menciona a reação de uma dona em relação às tentativas de fuga: “Tonto! se se deixa a porta aberta é capaz de fugir doido, não sabe o melhor para ele, perigos do mundo todo.” (vol. III, p.231) Este tipo de declarações inunda as redes sociais, juntamente com os pedidos de ajuda nos desaparecimentos, singularmente similares aos de supostos dementes e crianças, como se animais fossem seres indefesos em plena idade adulta. E, de facto, o condicionamento doméstico pode ser de tal ordem que se tornam especialmente incapazes de se alimentarem, mesmo num ambiente urbano que concede tantas facilidades. E, assim, surge como complemento, os relatos relativos a animais “perdidos”, se bem que desconfio que a maioria resulta mais de abandonos que de fugas. Mesmo em outros animais, deverá ser diferente o que resulta do seu próprio desejo e o que resulta do desejo do dono. Mas, se se tem alguma dúvida acerca das motivações profundamente egoístas dos amigos dos animais, é ver o que os mais privilegiados deles fazem com a seleção hereditária. Pegando numa seleção que, originalmente, deveria corresponder apenas a motivos utilitários, buscando desenvolver certas características que tornavam um animal mais apto para a caça, para a guarda de rebanhos e de casas, para guiar cegos, para encontrar fungos, para busca e salvamento, para deteção de produtos proibidos, para o envio de mensagens, para o assalto às linhas inimigas, para o transporte e para a carga, etc., sucessivos bandos de castas, ordens ou classes de indolentes entretiveram-se, através dos séculos, a selecionar características aberrantes, as malformações que surgem em todas as espécies, até ao ponto de criarem raças naturalmente inviáveis e que sofrem ao longo da vida de problemas de saúde como os problemas respiratórios e oculares dos pugs. Tal não ocorreu por acaso, estes amigos dos animais não só o fizeram intencionalmente, como continuam a exagerar essas características e fazem concursos onde se premeia o focinho mais curto e mais inviável ou outra qualquer característica aberrante. Uma tal eugenia às avessas considera os direitos dos animais em quê? Ter direitos é ser sujeito e aqui até podem ser idolatrados, mas, como todo o ídolo, na medida em que se é reduzido a objeto. A reificação das mulheres tinha e, em parte, ainda tem, as mesmas características. Exatamente por serem apenas objetos é que se podia exigir delas características impossíveis a não ser, normalmente, com extremos sofrimentos, como corpos anoréticos de Barbie ou glândulas mamárias desproporcionadas para a delicadeza do restante corpo. E o facto de essas modelos, atrizes ou misses desejarem a idolatria justifica tanto esses padrões como a afetividade desenvolvida em todas as formas de sujeição antes referidas.

     Mas, para lá da perversidade das castas privilegiadas e da estéril vaidade da exibição de aberrações tidas como modelos de beleza ou de requinte, o que legitima a sujeição animal, já supondo a motivação da insuportabilidade da existência urbana desenraizada, é a mesma ordem de razões que é obsessivamente usada para tantas justificações: o medo desesperado da morte, a legitimação de toda e qualquer prática que afaste um pouco mais o eterno espetro temido. Apesar da antropomorfização que leva as pessoas a pensarem os animais como uma espécie de pessoas urbanas, desenraizadas, que veem o sentido da existência em durarem o mais que for possível e, assim, julgarem que a garantia dos direitos dos animais é assegurar-lhes uma maior duração, o discurso da maioria destes amigos dos animais muda subtilmente quando se aborda a questão da experimentação em animais. Sei isso antes de mais pelos debates a que assisti ao longo de muitos anos de trabalhos discentes sobre a questão. É fácil manifestar o horror perante as práticas da indústria cosmética, especialmente cruéis para com determinadas espécies, visto elas terem uma finalidade vã. Mesmo para tantas pessoas que quase vivem para a cosmética e cuja existência se realiza na vaidade da sua própria exibição, parece não haver justificação para sujeitar os animais a sofrimentos tão atrozes apenas para tal fim. Mas se o debate se vira para a experimentação por motivos médicos ou farmacêuticos, o caso muda de figura, pois a extensão mesmo que mínima da vida humana justifica todos os sacrifícios, incluindo os de milhares ou milhões de vítimas animais. As melhor intencionadas das pessoas ainda defendem as atuais formas alternativas de testes, mas, se pressionadas com a possibilidade de uma menor eficácia, de uma maior premência ou de certos casos só serem exequíveis em animais, logo cedem e aceitam a possibilidade de experimentação animal. Até mesmo defensores filosóficos dos direitos dos animais acabam, no limite, por admitir tal possibilidade. Porquê? Exatamente por se considerar que qualquer combate contra a nossa morte, mesmo que signifique apenas um pequeno adiamento, legitima todas as práticas, mesmo aquelas onde repentinamente se desvanecem os supostos direitos dos animais e se evidencia que afinal o que sempre orientou a nossa ação foi a conveniência humana.

     A loucura do último homem nietzscheniano, embora esteja patente em tantos âmbitos, em nenhum é tão gritante como aqui. Reduzido a uma não existência que se dispersa em entretenimentos e fantasias, o homem urbano do mundo dito desenvolvido vive entregue a vícios, a ansiedades, a tédios, a depressões, a possessões obsessivas, a projeções de futuros idílicos, a identidades impossíveis, a euforias momentâneas e a vazios intermináveis, procurando tudo consumir para tentar colmatar esse vazio e buscando prolongar ao máximo a duração da vida numa esperança desesperada de ver por fim satisfeito o seu para sempre insaciável apetite. Este último homem extremamente desenraizado de sociedade, natureza e até realidade, vivendo uma existência passivamente alucinada alimentada por mil e um ecrãs, totalmente despojado de sentido e de valor, afirma um constante hedonismo completamente insensível do ponto de vista social, constantemente regulado por uma busca incessante de prazer e por um cultivo do presente sem consciência de passado e sem preocupações com o futuro onde apenas busca poder continuar a consumir. Quanto mais declara o imperativo absoluto do prazer, mais infeliz é, quanto mais declara a irrelevância dos outros, mais desesperada é a sua solidão, quanto mais declara a importância de viver o presente, menos se realiza como pessoa, como cidadão ou como simples existência. E se conseguisse uma droga que lhe permitisse manter esse prazer completamente alienado da realidade, sem quaisquer outras consequências orgânicas ou sociais, por nada a largaria. Ora, é exatamente nesta forma miserável de existência que se vive no mundo dito desenvolvido que, mais que em qualquer outra época, se deseja a vida eterna, a vida eterna nesta mesma terra. Estou convencido que se fosse dada a possibilidade de vida eterna à atual humanidade urbana sob pena de se extinguirem todas as outras espécies, se envenenar todo o ambiente e se cristalizar toda a possibilidade de evolução, impedindo a própria procriação, não hesitariam um segundo na sua eleição. Nunca a desmesura humana foi tão extrema e nunca foi tão motivada por uma existência absurda. Já se vive como se imaginavam os deuses, intemporalmente, com tudo o que isso significa de absoluta indiferença à memória ou a qualquer tipo de projetos. Imagine-se uma vida eterna em que tudo fosse sacrificado para tornar perene esta ausência de sentido. Os castigos que se imaginaram no inferno não seriam nada comparados com a insuportabilidade de uma tal duração sem morte. E assim se viveria a pior de todas as mortes.

     Porque é tão insuportável a vida dos privilegiados, ao ponto de terem de multiplicar as perversões e as aberrações apenas para se manterem entretidos e nunca se confrontarem com o seu próprio vazio? Somos seres vivos, as nossas capacidades visam garantir a nossa sobrevivência, sem o aguilhão da luta pela sobrevivência a nossa potencialidade adaptativa, este imenso cérebro que nos garantiu uma versatilidade ímpar e o triunfo sobre as outras espécies, vira-se contra nós próprios por não ter em que se aplicar, tornando-se autodestrutiva. Quer-se sobreviver quando a sobrevivência está ameaçada. Quando não há qualquer ameaça, a falta de ameaça torna insuportável a existência, transformando-se na própria ameaça sob a forma de loucura. A imensa flexibilidade do nosso cérebro sem ter a que se aplicar produz todos os fantasmas e demónios e espetros que animam lendas e mitos, sonhos e pesadelos, delírios e alucinações. Uma das formas da loucura é a desmesura e uma das formas de desmesura é o desejo inconsistente de imortalidade, pois nem uma vida finita sem perigo se aguenta com facilidade, tal o aborrecimento em que redunda. Não é inconcebível a imortalidade apenas por não termos meios técnicos de a realizar, é inconcebível por ser contraditória com a dinâmica da própria vida. A vida perdura através das espécies e da sua evolução como um projeto conjunto cego de que não sabemos os desígnios ou sequer se terá desígnios. O desejo de eternizar um indivíduo é um desejo contrário à própria vida e que só poderia ser realizado, mesmo que fantasticamente, cristalizando a própria vida numa eternidade sem mudança, como, aliás, se pensava o paraíso no além. A loucura da subjetividade desenraizada pode ter como imperativo a maior perduração possível da vida, aplicando-a mesmo a animais que não têm essa loucura, por se ter alienado da própria vida a que, porém, continua a pertencer, por se ter apartado da própria ordem natural, julgando possuir uma destinação superior e oposta como sempre foi característico das alucinações psicóticas. Por isso, não vê grande problema em todos os atentados contra a vida e a natureza, pois vive na realidade alternativa da realização impossível de uma distopia técnica de satisfação infinita dos caprichos. A distopia técnica realizar-se-á, sem dúvida, mas estará bem longe das projeções oníricas que a animaram. O que se projeta nessa distopia tem a mesma consistência dos sonhos e não aguentaria dois segundos de reflexão ponderada. Mas o mundo em que habita o último homem é o mundo da desconexão mental. Tal como nos produtos do cinema comercial que conseguem o êxito com narrativas sem nexo, unicamente por estimularem os sonhos desarticulados dos próprios espetadores, o próprio pensamento acerca destes assuntos é publicamente levado a cabo por sofistas dos nossos tempos que prometem todas as maravilhas que, realizadas, só consolidariam o inferno, um mundo sem trabalho, uma existência totalmente entregue ao consumo, sem sequer necessitar de qualquer esforço, um futuro onde já não exista qualquer necessidade de objetivos por tudo se encontrar satisfeito.

     O óbvio, o lugar-comum, as banalidades nem sempre são estéreis ou desnecessárias. Por vezes, há que repeti-las até a exaustão para tentar acordar uma qualquer forma de insanidade. A vida alimenta-se da morte. A vida precisa da morte de forma essencial. Sem morte, não há vida. A vida resiste a mudanças drásticas do clima, da toxicidade atmosférica, dos níveis de radiação por se renovar e encontrar caminhos através da lotaria da seleção natural. Seleção natural significa morte, muita morte, tanta quanta a vida que permite. Procurar escapar à morte é o mesmo que procurar escapar à vida. Na verdade, tal só é possível no inorgânico e o cansaço da vida, da vida como luta pela sobrevivência, da vida que se alimenta da morte e que evolui matando e morrendo, é, no fundo, mesmo que as pessoas assim cansadas não tenham consciência disso ou produzam uma consciência oblíqua que não pensa o que está mesmo à sua frente, um desejo de regressar à perenidade inorgânica aparentemente imutável, visto só aí o indivíduo não ter que enfrentar a sua dissolução por nem sequer existir. Uma ética contrária à morte é uma ética contrária à vida. Poder-se-ia criar uma lei universal da natureza em que se banisse a morte? Só banindo a própria vida. Poderá a nossa vontade querer isso? Na loucura do último homem, talvez. Pode trazer maior felicidade a um maior número de entidades banir a morte? Teria de se banir a procriação para poder banir a morte e a vida conseguida para aqueles que perdurassem acabaria por ser insuportável. Será prudente desejar e agir para banir a morte? Só se julgar que a própria vida é um mal e que seria prudente acabar com tal anomalia no aparente equilíbrio inorgânico. Logo, porque se julga que é agir bem evitar a todo o custo a morte? Evitar a morte como manifestação de vida é com certeza bom, não sei se em geral, mas certamente para a vida. É pelo afã dos organismos em sobreviver que se procria e se desenvolvem novas possibilidades. Mas evitar a morte, evitando a vida, como na imposição da castração ou da esterilização a outras espécies, é algo contrário à própria vida. Impedir organismos de lutar pela sua sobrevivência, caçar e serem caçados, desenvolver as suas próprias manhas e sujeitar-se ao risco da morte, é algo contrário à própria vida. Intervir nos equilíbrios ecossistémicos e impedir de se desenrolarem os processos naturais de controlo das populações, é algo contrário à própria vida. Eleger espécies para nosso deleite ou utilidade e proibir a sua existência natural, é algo contrário à própria vida. Não nos importarmos nada com os milhares de espécies que dizimamos todos os anos e julgarmos que as preservamos enfiando os seus últimos exemplares em jaulas, é algo contrário à própria vida. Não sei se existe algum fundamento absoluto para a ética, mas parece-me que, pelo menos, enquanto seres vivos, pertencentes ao mesmo projeto comum que é a vida, é no mínimo contraditório agir contra a própria vida – afinal, é contra nós mesmos que estaremos a agir.

     É também absurdo considerar absolutamente não ético comer animais e ter como animais de estimação carnívoros, para os quais, aliás, há também uma indústria alimentar carnívora. Se fosse algo reprovável comer seres sencientes, seria sempre reprovável. Nem sequer é verdade que sejamos a única espécie que pode ter consciência do caráter senciente de outras. Os predadores desenvolvem as suas táticas de caça, considerando a atuação provável das suas presas e projetando nas presas a consciência de um organismo capaz de agir segundo finalidades. Todos conhecemos exemplos dados pelos media de interação intencional e benéfica entre membros de espécies diferentes, o que mostra a capacidade de ver noutra espécie um outro senciente. O facto de haver quem pense que nós como seres racionais (seja lá isso o que for) não deveríamos matar qualquer ser senciente só é possível por nos pensarmos apartados da própria vida, pertencentes a uma ordem superior e estranha a ela. Para mim, isso é uma mera forma de loucura psicótica, como julgar-se de uma outra espécie, rico quando se é pobre, imperador do mundo quando nem na sua casa se manda, uma laranja com medo de ser descascada. Mas reconheço que é só uma pequena loucura que até pode moderar uma loucura muito maior. Em toda a natureza, os predadores sempre foram escassos, em número muito inferior às potenciais presas. Porém, nós atingimos um número de efetivos que dificilmente poderá ser atingido por algum herbívoro, ainda por cima com o porte médio que temos. O planeta há muito teria implodido se toda a humanidade tivesse os níveis de consumo de carne dos países mais privilegiados. A verdade é que, mesmo sem vegetarianismo, a larga maioria da humanidade consome sobretudo produtos vegetais, certamente, em muitos casos, não por querer, mas por a carne não lhe ser acessível. Apesar disso, os recursos necessários a satisfazer os poucos humanos predominantemente carnívoros são colossais. As condições em que vivem os animais a consumir são horrivelmente degradantes do simples ponto de vista do que seriam as suas condições naturais de vida. Mas a principal causa que aconselha, usando imperativos prudenciais, moderação nesse consumo é a falta de moderação atingida nos nossos efetivos. Não há loucura maior que este crescimento demográfico que nenhum regime alimentar poderá sustentar, por mais que se insista no crescimento económico até ao abismo final da exaustão de todos os recursos. E que se julgue que se está a lutar pelo equilíbrio ambiental, pela biodiversidade ou pela natureza sem estar pronto a promover a regressão económica e populacional, por se tentar proteger a vida de um gato de rua, é só mostrar que não se consegue sequer pensar. O que seria preciso para minimizar os efeitos desta loucura era, em primeiro lugar, empobrecer, empobrecer muito, até termos de voltar a ganhar o pão de cada dia; em segundo lugar, deixarmos atuar os mecanismos naturais de controlo da população na própria população humana; em terceiro lugar, recriarmos ou deixarmos que se recriassem por si os equilíbrios ecossistémicos que arrasámos por toda a parte; em quarto lugar, deixar as espécies viver e morrer em paz, quanto muito caçando alguns exemplares para a nossa alimentação imediata. Vai acontecer algo similar a isto? Não.

     Frente a cada abismo, arranjaremos novas soluções técnicas. Poderemos limitar alguns consumos, os combustíveis fósseis, o próprio consumo da carne, alguma pesca predatória, aumentar algumas reservas, mas a biodiversidade não parará de ser dizimada, a vida natural substituída por vida fabricada e o próprio humano será cada vez mais fabricado de origem e gradualmente customizado por peças artificiais. Heidegger mantinha uma esperança desesperada que uma qualquer forma de religião nos pudesse salvar da distopia técnica, mas reconhecia que era a técnica a forma de desvelar os entes da nossa época. Logo, qualquer nova religião tende a emergir da própria linguagem técnica, como já se pode observar nas novas formas ditas de “espiritualidade”. E isso só consolidará a própria mentalidade técnica, associando-a à fé e às superstições obscurantistas, para produzir um novo sincretismo místico conformista.

     A esta estranha mentalidade bem dominante da cultura urbana não é estranho zelar pela vida do gatinho por ser fofinho, ao mesmo tempo que é indiferente à extinção de milhões de espécies inteiras necessária à manutenção do tipo de vida que, entre milhentas engenhocas distrativas, vive tão apartada da natureza que julga estar a proceder muito bem ao retirar o gatinho à sua mãe e à vida natural. A preocupação com outras espécies é um nobre sentimento que se deveria cultivar cada vez mais, visto nos poder religar ao projeto global da vida, fazendo-nos voltar a ganhar uma noção de pertença fundamental. Aliás, destruímos de tal forma essas espécies e os seus habitats que o mínimo que podemos fazer é compensá-los um pouco pelo crime. A própria simbiose desenvolvida com outras espécies, dando origem aos chamados animais domésticos, reforçaria a ligação à vida, muito embora seja difícil de aceitar, numa ética da vida, os confinamentos a que os forçamos sobretudo no espaço urbano. Mesmo que não fosse a melhor vida possível desses animais, os fins utilitários prosseguidos estão demasiado enraizados e, libertos das sujeições urbanas e agropecuárias, até poderão realizar, através deles, as suas potencialidades naturais. Há, aliás, muitas situações intermédias que não estou aqui a contemplar. Porém, julgar que se está a fazer alguma coisa de meritório ao adotar animais, retirando-os às próprias mães e ao seu ambiente natural, em vez de lutar para eles poderem viver, apenas com os riscos normais, nesse ambiente, mesmo que sejam as ruas das nossas cidades, e ainda por cima confundir encafuar animais castrados em apartamentos com ambientalismo, é uma forma de confusão mental que espero ser apenas característica deste país. Os objetivos são, aliás, contrários. Se se busca restaurar equilíbrios naturais, devemos ver como naturais os processos de vida e morte e procurar evitar interferir mais do que já temos feito nesses equilíbrios. A morte de um animal não é um crime contra o ambiente, é a simples dinâmica da vida. Aliás, mesmo as mortes humanas deveriam ser vistas da mesma forma. A ótica da proteção do animal fofinho não é mais do que uma extensão do desenraizamento individualista, incapaz de se sentir pertencente a seja o que for, até a família, e buscando desesperadamente um refúgio para o seu angustiante isolamento. A extinção de uma espécie ou de uma raça, a destruição de um ecossistema, a alteração dos equilíbrios climáticos, o desprezo pela preservação da biodiversidade, isso são crimes ambientais. Deixemos os animais em paz, a não ser que estejam ameaçados por nossas ações anteriores. Aí, é natural tentar compensar os crimes cometidos. De resto, não nos esqueçamos que a maioria das espécies já por cá andava antes de nós e não precisava de nós para nada. O que esses animais precisam é de livrar-se da nossa interferência para poderem viver e morrer no seio dos equilíbrios naturais.

1.9.20

Exemplo introdutório ao Clube de Metafísica: Schopenhauer e a libertação pela meditação

“Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia.” Não seria de forma metafísica que Camus pensaria tratar a questão aqui referida no início do seu O Mito de Sísifo. Porém, como pressuposto, seja na fenomenologia, seja no existencialismo, seja até na filosofia analítica, a própria incapacidade de resposta da metafísica foi o propulsor original de tais vias. No caso do existencialismo, a incapacidade de resposta ou de resposta suportável para a questão “para quê?” está na origem do seu pressuposto mais fundamental, a absurdidade da existência. Essa incapacidade da metafísica foi magistralmente expressa por Kant na sua primeira Crítica e corporizou-se na famosa distinção entre conhecer e pensar. A metafísica especulativa, sem objeto a que se aplicar, era apenas pensamento e não podia ser ciência. Acontece que a abrangência da sua crítica só pecou por defeito e também as suas metafísicas da ciência da natureza e dos costumes não eram mais que pensamento e assim, porventura, será toda a verdadeira filosofia e até essa filosofia a que no séc. XVII, na recém-criada Royal Society, se chamou experimental. Sendo assim (e assim é de facto), a metafísica viu-se preterida pela ilusão dogmática, contrária à própria origem da palavra filosofia, de um saber que teria de ter algum tipo de absoluto, de certeza ou de exatidão. Se essa ilusão tem sido cada vez mais desmistificada, deixou de existir razão para manter a rejeição da metafísica, especialmente porque as suas questões não deixaram de continuar a questionar no inconsciente filosófico para onde a atividade crítica as recalcou – e, como na psique, muitas são as perturbações criadas pelos seus conflitos por resolver ou, pelo menos, por tratar. Pensar é tudo o que temos e já chega de pensamento com medo de pensar, quando nada mais alcança que o mesmo pensar. E se só isso nos resta, pensemos então.

Parece que todo o passado concorda que a vida merece ser vivida, mas isso pode resultar do aparente facto de só parecer ter sentido responder se a resposta for positiva. Se fosse negativa, a resposta seria o suicídio. Na verdade, não é bem assim. Schopenhauer é um bom exemplo de como pode ser dada uma resposta negativa à questão, não optando, porém, pelo suicídio. O mesmo se diga de todo o hinduísmo e budismo, do pitagorismo e platonismo, de várias escolas helenísticas, assim como do próprio cristianismo, muito embora este último recorra ao que Schopenhauer denomina os seus mitos populares para fornecer a promessa de uma outra vida, da qual dependeria todo o sentido desta por esta não o ter só por si mesma. Aliás, virando a linguagem de Schopenhauer contra si mesmo, diríamos que todas estas tradições, incluindo a schopenhaueriana, recorrem aos seus mitos para convencer os seus seguidores a, apesar de tudo, não praticarem o suicídio. Rejeitam esta vida mas não querem que se passe desta rejeição teórica para a sua efetivação prática e arranjam um mito conveniente para justificar que se continue a suportar uma vida sem sentido. Não deixa de ser caricato ver como Schopenhauer, depois de ter reconhecido a metempsicose como um mito para tornar acessível ao vulgo a verdade da existência, que a mesma é dor e se destina à aniquilação, justifica a rejeição do suicídio na necessidade de suprimir a “vontade”, incluindo a vontade de destruição. Para quê se as reencarnações são míticas? Mas voltaremos a este assunto mais adiante.
Sem pretendermos equiparar ou concorrer esses textos com bem mais ilustres tradições, toda a obra de Lúcio percorre a mesma contradição, a ausência de sentido da existência e, apesar de tudo, manter-se vivo. Esta contradição é, tal como em Schopenhauer, “resolvida” pela disparidade entre um sujeito separado e consciente das suas próprias representações, incluindo as que se referem a si mesmo, e uma instância que o transcende e lhe dá origem para realizar um devir indiferente aos objetivos subjetivos. A diferença está em que Schopenhauer fica preso no modelo da vontade, tudo interpretando, desde os desejos de toda a vida às forças cegas da física, subordinado a esse paradigma. Sempre nos pareceu inadequada a utilização dessa palavra para designar a dinâmica inevitável de todo o existente, pois a vontade encontra o seu correlato natural no verbo querer e só se diz “eu quero” relativamente àquilo que foi decidido pela deliberação da consciência subjetiva. Visto interpretar a partir daqui a origem de toda a dinâmica, não consegue deixar de pensar essa vontade metafísica, mesmo se reconhecidamente cega, como tendo desígnios, podendo, por fim, estes serem contrariados pela realização da supressão da vontade na consciência humana como puro sujeito universal de conhecimento. Em tudo isto, mantém-se um perfume teológico sem Deus explícito que permite a Schopenhauer a rejeição do suicídio. Na verdade, como dizia Marx de Hegel, toda a metafísica de Schopenhauer está invertida, trocando os pés e a cabeça. É exatamente o inverso, a vontade mais racional do imperativo categórico tem uma origem pulsional, é puro desejo irracional de infinito e incondicionado, e o próprio desejo que se revela na luta pela sobrevivência de toda a vida mais não é que consequência de reações químicas que já se procuram perpetuar nos priões e nos vírus, como puros efeitos da força que anima todo o universo. Um dos casos em que a noção parece corresponder à de Schopenhauer é a da força de vontade, algo de incompreensível que nos arrasta a cumprir o deliberado quando tudo nos força a desistir e que parece porvir de um fundo inconsciente que transcende o sujeito deliberativo. Ora, de facto, essa pulsão adiciona-se à vontade (o desejo deliberado), dando-lhe força, pelo que na expressão “força de vontade” o que escapa à deliberação é exatamente a força e não a vontade. Contrariamente à crítica de Schopenhauer, era Leibniz que tinha razão ao perceber que, sendo a dinâmica física algo análogo à dinâmica psíquica, o que estaria na base de todo o existente seria a força (redutível, aliás, aos dois atos monádicos fundamentais do apetite e da perceção), uma força, em geral, cega, inerente à impossibilidade de ser sem agir. Nesse sentido, modernamente, é Nietzsche e não Schopenhauer que, com o seu dionisíaco, mais se aproxima desta intuição fundamental da realidade, um devir arrasador de todo o apolíneo, sem desígnio, sem finalidade objetivada, a não ser a de, cegamente, prosseguir.
Pelo contrário, em Lúcio, a persistência da vida não se justifica, é remetida para uma instância inexplicável e impessoal de que o sujeito é uma mera marioneta, não por essa instância ter desígnios ou vontade ou ser individualizada de alguma forma, mas por ser incontível no seu devir que se espraia por uma miríade sem unidade de pulsões. Simbolicamente, chama-lhe terra, expressamente referindo o caráter meramente simbólico de tal designação, de forma a apenas remeter para uma instância indeterminada, necessariamente anterior à subjetividade e a toda a sua construção representativa, a toda a sua linguagem, uma instância ante-predicativa intuída por tantos pensadores como inevitável pressuposto da incompletude fenoménica e subjetiva. Se a linguagem de Lúcio por vezes resvala para aquilo que parece nova personificação numa espécie de teologia pagã, algo que, por vezes, também se sente no próprio Nietzsche, outras passagens tornam clara a rejeição, de qualquer personificação, qualquer desígnio, qualquer consciência reflexiva. Embora esta proto-metafísica esteja espalhada pelo Jazigo na sua linguagem para-poética que muitas vezes deixa a desejar por nem ser suficientemente poética, nem suficientemente filosófica, alguns textos mais prosaicos espalhados pelos vários volumes esclarecem um pouco melhor a conceção (1º vol., pp. 103-106; 2º vol., pp. 41-44; 3º vol., pp. 9-13, sendo este o mais importante para a questão aqui tratada; até certo ponto, no mesmo volume, pp. 275-276; e, finalmente, 4º vol., pp. 198-199).
Porém, neste artigo introdutório ao Clube de Metafísica, gostaríamos de nos confrontar com essa metafísica que tem tido uma expansão extrema no Ocidente, sobretudo, mas não só, entre membros do sexo feminino, proveniente das tradições orientais do hinduísmo, do budismo, do jainismo e do taoísmo, assim como de sincretismos destes. Não queríamos, contudo, fazer apenas uma imensa falácia do espantalho, pegando nas absurdidades que se têm feito por este Ocidente com essas tradições ou nas superstições ligadas, mesmo no Oriente, à religiosidade popular. Quanto a esta última, todas as religiões necessitam dos tais mitos na linguagem de Schopenhauer, para manter a sua força na sociedade. Como se poderia entender o cristianismo através das superstições e práticas de Fátima? Trata-se de uma religião para consumo popular que pouco tem a ver com o sentido fundamental da religião em causa, uma religião que precisa de espetáculo porque o povo se mostra incapaz de aderir a uma mera mensagem espiritual, precisando de ver manifestados poderes extraordinários como se só se entusiasmasse quando vê ou ouve relatado algo fantástico como a atuação dos super-heróis da banda desenhada e do cinema enlatado. Daí que não seja de espantar que, numa religião que, mesmo nos seus aspetos míticos, considera esta existência como um mero teste para a final e decisiva, para a salvação, possam existir cultos que só se preocupam com milagres que visem o prolongamento desta vida e o gozo nesta vida, e ainda concebam esses milagres como resultantes de uma espécie de relação contratual com o divino. Os antigos ritos pagãos ainda faziam sacrifícios para aplacar a fúria dos deuses, mas a chico-espertice burguesa já não vai na conversa: se o divino quiser sacrifícios, tem de primeiro fazer o serviço, nada de pagamentos adiantados. Que se possa sequer conceber uma tal relação com o divino ou os seus intermediários, só evidencia quão pouco “a gente” (tradução livre dos das man heideggeriano, a existência inautêntica) pensa.
Mas a absurdidade e o caráter contraditório da apropriação ocidental popular das tradições orientais são ainda mais diretos e flagrantes. Por estas redes sociais, não faltam miríades de associações da meditação e até, diretamente, do budismo e do hinduísmo com o espírito positivo, com o gozo da vida, incluindo a forma errada como se interpreta o famoso carpe diem, e com a busca totalmente egoísta da satisfação pessoal. De facto, estão constantemente preocupados em livrarem-se dos outros, para se concentrarem totalmente em si próprios, ou melhor, nos seus desejos e no seu prazer. O desapego defendido por essas religiões, desapego, em primeiro lugar, de si próprio e dos seus desejos, é transformado num desapego em relação aos outros e às responsabilidades próprias, para mais completamente poder desfrutar de si próprio. Vi um desses gurus a defender perante um auditório embevecido, como prática a ser seguida, uma ética da positividade que defendia que se ignorasse seja quem for que estivesse triste, deprimido ou cansado, visto isso ir trazer uma destruição do ambiente, rejeitando toda a negatividade com um “o que é que eu tenho a ver com isso” numa autêntica disciplina de sistemática insensibilidade social – e tudo era recebido por um auditório provavelmente, na maioria, cristão que parecia não reconhecer aqui qualquer ataque ao amor ao próximo e à compaixão pelos que sofrem. Por essas redes fora, multiplicam-se (menos agora, depois da pandemia) as afirmações de espiritualidade oriental que a reduzem a um mero cultivo do prazer e à defesa de um egoísmo desavergonhado.
Num mundo dominado pela mentalidade técnica do consumismo, tornado legítimo pelo domínio da ética utilitarista da maximização do prazer, é natural que se chegasse a um momento em que os indivíduos se “borrifassem” no prazer geral, para se concentrarem no único que podem usufruir – isto, claro, numa mentalidade apetitiva já incapaz dos prazeres superiores de Mill e em sentir prazer pelo bem do próximo. E é, de facto, reduzida a uma receita técnica que se deu a apropriação dessas tradições orientais, uma receita não para nos libertarmos de todo o desejo e da própria individualidade, mas para nos libertarmos das preocupações que impedem a nossa completa entrega ao desejo e ao prazer. Como receita destinada a obter a entrega à fruição, até se defendem aberrações como a meditação coletiva em grandes massas e visa-se inculcar em massa essa libertação de todas as preocupações, para permitir a concentração no positivo, ou seja, no cultivo do prazer. Para maior garantia desse hedonismo, agarram-se às superstições de origem oriental apresentadas como espiritualidade e apresentam o caminho da libertação de forma gráfica, como manipulação de energias em localizações do próprio corpo, os chacras, que permitiriam o aperfeiçoamento do espírito. De certa forma, é ilustrativo das confusões sem fim presentes nestas conceções e práticas uma página da net que acrescentava, após apresentar o símbolo de cada chacra, a seguinte frase: “Não condiz com aparência real.” Nem vale a pena o trabalho de explicar... A realidade é, nestes meios, reduzida a uma construção fantástica similar à fantasia dos jedi. Aliás, há páginas na net a defender que se utilize a Guerra das Estrelas como guia espiritual. Por fim, utiliza-se essas receitas refundidas tecnicamente, eventualmente marteladas com um palavreado pseudocientífico, como mais uma forma de obter a sujeição dos indivíduos, proibidos de manifestar outra coisa senão prazer (ou felicidade, como preferem dizer), conformismo que é, aliás, a razão para serem advogadas, primeiro, em empresas e, depois, nas escolas.
Ora, tudo isso é do ponto de vista verdadeiramente espiritual, se deixarmos de parte os interesses mundanos pouco dignos de uma pura abordagem intelectual, um disparate, aliás oposto ao defendido pelos textos mais inspirados e mais profundos dessas tradições – e é relativamente ao melhor delas e não ao folclore acima descrito que este artigo se dirige. Para elas, como para Schopenhauer, a existência individuada é sofrimento. Esse sofrimento é o resultado direto da busca do prazer. O desejo é a causa do sofrimento. Porém, não só esse desejo, como o indivíduo que o sente, são uma aparência. O ser individual é uma ilusão que fragmenta a unidade de todas as coisas e, por isso, ao cindir-se de tudo o resto, está numa constante insuficiência de ser, sente constantemente a falta e até a falta da falta no tédio. Ser individual é ser desejo, o desejo constitui o indivíduo como indivíduo. Desejo é sentir falta e como o desejo é constituinte, nenhuma satisfação o pode eliminar ou suprimir, pois mesmo um paraíso acabaria, num ser individuado, por enfastiar, por aborrecer. Por isso, se procura encher a vida dos privilegiados deste mundo com entretenimentos, tão variados quanto possível, para não arriscar qualquer confronto consigo mesmo, confronto com o vazio que constitui o eu próprio. E entre entretenimentos, busca-se esquecer da nossa condição mortal, vive-se de prazer em prazer procurando não tomar consciência da inevitabilidade de doença, velhice e morte. Longe de o fim dessas tradições ser o gozo desesperado, era fundamental o confronto com a natureza patológica da individualidade, o confronto com o sofrimento e morte, o confronto com o caráter ilusório da multiplicidade, de forma a poder suprimir sofrimento, desejo e o próprio eu, até à própria vontade original e universal na versão schopenhaueriana, de forma a fazer desaparecer o indivíduo fragmentado na unidade indiferenciada e eterna. Todas estas tradições (entre as quais, diversas ocidentais um pouco esquecidas) julgam possível através da meditação ou da oração, embora não como práticas alheias ao resto da vida, suprimir a raiz do sofrimento, suprimindo o indivíduo, ou desvelando o Eu verdadeiro como expressão do Eu superior universal, ou libertando-se no nada, ou suprimindo a própria vontade metafísica, ou submetendo-se totalmente a Deus, ou purificando-se, pela contemplação, na ordem cósmica, ou entregando-se a um caminho natural como o que é expresso por Lao-Tse com a noção de Tao.
Vamos, então, considerar o assunto de forma inteiramente metafísica. Para não complicar o assunto num artigo que deveria ser pequeno, restrinjamos o assunto à vida. A vida é, em primeiro lugar, desejo. Certas pessoas limitadas por considerações empíricas dirão que seres sem sistema nervoso não podem desejar. Num outro artigo, talvez possamos tratar essas questões epistemológicas. Por agora, apenas dizemos que antes de sabermos o que era um sistema nervoso, já sabíamos o que era desejo e que não temos de nos limitar a qualquer atribuição causal derivada de uma qualquer identificação empírica, por muito respeitável que seja. Esse desejo justificava o que queríamos e até justificava querer ir contra o desejo. De facto, até justificava termos acabado por fazer algo contrário ao que queríamos, como se fosse algo que nos dominasse independentemente da nossa deliberação. Mesmo nesse caso, sabemos o que desejamos, mas não sabemos por que desejamos, porque há de existir em nós inevitavelmente esse facto de desejar, porque sentimos sempre falta mesmo que não esteja em causa qualquer função orgânica. E mesmo nas funções orgânicas, para quê desejar sobreviver, para quê desejar outros, para quê buscar procriar? Os mais elementares organismos vivos tentam persistir pelo menos a duração suficiente para procriar. Para quê? Porque despendem todo esse esforço organismos que não têm sequer sistema nervoso? A velha pergunta leibniziana “Porque há alguma coisa em vez de nada?” encontra aqui um foco muito especial. De facto, seria muito mais fácil ser nada do que alguma coisa. Alguma razão haverá para se porfiar a ser alguma coisa. Os nossos materialistas mais clássicos procuram continuar o melhor que podem a seguir o paradigma mecanicista, mas este sempre foi incapaz até de explicar a dinâmica física. Aliás, a forma como foi defendido sempre foi metafísica, através do que já no séc. XVII chamavam romances físicos. Resulta um pouco ridículo que se procure mantê-lo na esfera da vida após fracassar naquela que servia de modelo.
Existe um telos cego em toda a vida e não faz sentido admitir qualquer telos se não existir algo pelo menos análogo ao desejo. A restrição empírica do desejo acima referida só obriga a quem o restringe a um determinado processo neurológico. O desejo fornece objetivos mesmo que cegos, apenas para sanar a sua falta ou desequilíbrio, como nos processos homeostáticos. A homeostasia até pode fornecer um modelo quase químico, mas deixa em aberto a questão: para quê buscar o equilíbrio e não o desequilíbrio, a ordem em vez do caos, persistir e procriar em vez de dissolver-se e aniquilar-se. Esse equilíbrio e essa ordem é pensada, em termos humanos, como felicidade. Nos termos atuais e provavelmente sempre em termos populares, confundiu-se essa felicidade com a busca do prazer e a fuga à dor, mas a busca do prazer e a fuga à dor é a raiz de todos os processos viciantes. Muitas vezes se ouve dizer que tal e tal substância é viciante, mas o que é viciante é o prazer imediato que produz. Não só todas as substâncias, mas também todas as atividades que produzem prazer são viciantes, se o indivíduo se entrega à busca descontrolada desse prazer. Daí que toda a ética antiga aconselhasse a moderação, a temperança, até a indiferença, ao contrário da prossecução da maximização do prazer da ética utilitarista. A busca desenfreada do prazer é o caminho mais garantido para a infelicidade e para sofrimento atroz. Mas mesmo que perseguido de forma comedida, o prazer sacia durante bem pouco tempo e a falta é sempre cada vez menos preenchida por aquele tipo de substância ou atividade. Daí que um hedonista procure variar os prazeres. Mas quanto mais se ceder à busca de prazeres, mais se aumenta o sentimento de falta de todo e qualquer prazer. E se satisfizer sistematicamente os desejos, sem qualquer tipo de dor, até a sua satisfação acabará por se tornar aborrecimento, fastio, tédio.
A falta que estimula qualquer ser vivo, o desejo que estimula os animais, no caso do homem é hiperbolizado, quer no desejo, quer no sofrimento, por poder ir para lá do facto de ter falta, do facto de desejar, e se interrogar “para quê?” Não é o “para quê” de desejar a comida, o parceiro sexual, a bebida, o conforto, o calor, o entretenimento, mas o “para quê” desejar em geral. E visto toda a vida ser desejo, este “para quê” estende-se à própria vida. De forma explícita ou implícita, essa consciência reflexiva é a raiz de uma muito maior capacidade de sofrimento no ser humano que determina quer a vida desesperada da dispersão em entretenimentos buscando olvidar a condição mortal, agindo como se fossemos eternos, quer a entrega angustiada à transcendência absoluta de um infinito que poderá tornar possível o impossível no além, um paraíso em que subsistam os indivíduos como indivíduos mas sem sofrimento, quer a busca da dissolução da própria individualidade num todo indiferenciado onde o sofrimento não possa ter lugar. Ora, é aqui que encontramos a mais funda discordância em relação às pretensões de Schopenhauer e, por extensão óbvia, do budismo e do hinduísmo.
Schopenhauer e essas tradições têm razão quando consideram que é impossível a felicidade absoluta, como é entendida no paraíso cristão, para o indivíduo enquanto indivíduo. Essa noção é autocontraditória, é um círculo quadrado. O indivíduo é indivíduo exatamente por desejar e o desejo ficará sempre insatisfeito para lá da satisfação mais momentânea. No tédio, o indivíduo deseja mesmo não tendo o que desejar porque desejar lhe é essencial. Esse desejo que é impossível, de facto, saciar é, em si mesmo, o sofrimento, não apenas como causa, mas na sua própria natureza. Schopenhauer tem razão ao considerar que mesmo as formas de sofrimento que parecem não corresponder a nenhum desejo, têm a sua raiz no mesmo porque, em geral, não temos grande consciência do desejo quando ele está satisfeito, só sendo ativado na insatisfação. Assim, a doença reativa o desejo de saúde que sempre, porém, nos acompanhou. Isso, aliás, mostra que, na nossa existência, longe de o positivo ser o prazer, o que é positivo é o sofrimento, sendo o prazer sentido como mera superação momentânea do sofrimento, ou seja, como negação daquilo que positivamente nos constitui. Se só houvesse aquilo que os hedonistas consideram positivo, o prazer, não sentiríamos nada, como não o sentimos quando temos sem interrupção o que desejamos, por exemplo, a saúde – aliás, como aí nada sentíamos, concentrar-nos-íamos naquilo de que sentíssemos a falta (ou seja, que nos fazia sofrer) e aí se concentraria a nossa busca de prazer e a nossa ação.
Considera Schopenhauer que essa condição pode ser anulada pela superação ou mesmo abolição da vontade através de um estado contemplativo/meditativo que nos transforma em puro sujeito universal de conhecimento. Algo similar era expresso por alguns textos hindus e algo análogo expressavam os budistas no nirvana ou os antigos ocidentais na purificação alcançada pela contemplação ou da ordem cósmica, ou das ideias eternas. Apesar de se desfazer como míticas das crenças na transmigração das almas, considera que o suicídio não pode levar a cabo essa anulação por ser a manifestação do desejo desesperado de não se conseguir o que se deseja e não uma anulação do próprio desejo. Só a anulação do próprio desejo garante a superação da vontade, não a mera vontade individual, mas o erro de todo o existir que constituiu a vontade universal cuja expressão (e não a essência própria) se fragmentou em indivíduos. Ora, até se poderia ter essa conceção se se pensasse, como no budismo, que a alma se libertaria de samsara, ou seja, do ciclo de sofrimento das sucessivas encarnações, supondo a persistência da mesma alma e não apenas as múltiplas expressões da vontade universal, ao aceder ao nirvana. Seria mítico e acrítico, mero fruto de uma imaginação desenfreada, mas ao menos perceber-se-ia em que é que atingir o estado de Buda poderia contribuir para a eliminação da raiz de todo o sofrimento, não apenas o nosso, mas o global. Agora, sendo a metempsicose mítica enquanto persistência do mesmo indivíduo, em que é que a anulação, no indivíduo, do desejo contribui para a eliminação da vontade universal? Ao morrer, os componentes do corpo, a expressão da vontade para Schopenhauer, serão reaproveitados pela vida na mesma dinâmica de desejo que nos deu origem. Os transes por que passámos durante a vida não afetarão em nada essa dinâmica e a sucessão das gerações continuará a nascer e a morrer em desejo e dor, nada se tendo alterado. E, se o objetivo era terminar com a individualidade própria raiz do sofrimento de cada um, não se percebe porque é que o estado de Buda ou algo análogo não se pode realizar num suicídio já não determinado pela falta. Por compaixão com aqueles que sofrem? Mas tal estado não supera definitivamente todos os apegos, mesmo o da compaixão? Não é também a compaixão uma forma de desejo?
Schopenhauer apresenta esse estado de contemplação pura como uma não-vontade, um não-desejo, mas sê-lo-á apenas da mesma forma como não se sente desejo na momentânea saciação. A necessidade de redobrar os estados de meditação mostra, aliás, que nada se atingiu de permanente e a falta sentida tem de ser colmatada. A isso, chama-se desejo. O mesmo, aliás, se busca no orgasmo. Aí, nos estados de mais puro prazer, o indivíduo deixa de se sentir a si mesmo enquanto tal, sente-se fundido não com o outro (pois não há distinção entre outro e o próprio), mas num todo indiferenciado e, por instantes, não há eu próprio por não existir qualquer falta. Aliás, não deixa de ser curioso que os instantes de mais pleno prazer se fundem com o desejo que lhes parece contrário, o desejo da morte, o desejo de anular definitivamente a individualidade, regressando definitivamente ao inorgânico donde se sente que nunca se deveria ter saído. Schopenhauer parece supor que buscar a anulação da vontade é algo contrário ao desejo, mas, na verdade, sentimos desde sempre, junto à pulsão de vida que nos convida a desejar objetos, a pulsão de morte que nos leva a desejar livrar-nos desta maldição que é desejar. Desejar! É tão desejo uma como a outra, o estar cansado da vida dá origem a um desejo de a superar, a abolir, a anular, um desejo que se satisfaz de forma transitória todos os dias no sono, que se satisfaz de forma ainda mais precária no orgasmo ou através de estupefacientes ou na fruição da arte e que alcança uma satisfação igualmente precária, por muito que a tentem apresentar como permanente, nos transes místicos. Porque, imaginemos, atingimos o estado de Buda, percebemos o caráter ilusório de toda a multiplicidade, identificámos a raiz de todo o sofrimento, superámos a condição individual e experienciamos como, de facto, todas as coisas são uma e todos os apegos não passam de ilusões vazias indiferentes para a verdadeira realidade, o transe leva o indivíduo a deixar de o ser no nirvana ou, como diria Schopenhauer, deixa existir em si o puro sujeito universal de conhecimento, sem qualquer vontade – e depois? Sai do transe e não tem desejo de urinar, de dormir, de comer (mesmo que pouco), de beber, de calor, etc.? Aliás, alguma vez deixou de desejar respirar ou apenas se sentiu tão satisfeito que era como se já nada desejasse, como no desejo de saúde quando temos saúde, não deixando, porém, o desejo de estar sempre presente? E, se sente todos esses desejos, como pode ter atingido um estado liberto de todos os desejos? Ou apenas finge, provavelmente até para si próprio, não os ter? E essa simulação é diferente em quê de outras ilusões? E, quando a morte chega, destrói mais a individualidade do que o suicídio em quê a não ser que se acredite na mítica imortalidade ou, pelo menos, na mítica persistência da alma individual, caso se não tenha atingido o estado de Buda?
A contradição schopenhaueriana é, aliás, sentida por ele próprio pois reconhece que a vontade universal terá o cego desígnio de se anular a si própria. Sendo assim, para quê ter vindo à existência? Aqui, muito filosoficamente, Schopenhauer suspende o juízo devido ao facto de tal questão estar para lá da ordem fenoménica e da consideração da sua origem não objetivável que o mero fenómeno indica, para lá do facto da razão revelado pela experiência interna da existência da vontade em nós. Aliás, esta busca do universal presente no sujeito universal, no verdadeiro eu, corresponde à aspiração mística da Filosofia que, desde a sua origem, procurava mostrar como tudo é um, como tudo pode ser um, como tudo vem do uno e ao uno regressa, etc. Essa aspiração também está presente no incondicionado visado pelo imperativo categórico kantiano e, em geral, em toda a projeção filosófica do todo, do infinito, do universal. Schopenhauer percebeu a fundação pulsional dessa vontade humana que só se satisfaz no universal e no incondicionado, mas parece ter-se esquecido desse facto quando almeja esse mesmo universal e incondicionado no suposto sujeito universal de conhecimento. Não existe desejo mais desenfreado, mais absoluto, mais louco que o desejo que se expressa nas projeções da razão, um desejo que não se pode saciar com nada limitado e, assim, só busca saciação no que transcende por completo o indivíduo onde apesar de tudo essa razão se sedia. Essa cisão entre as limitações do indivíduo e o desejo que só se pode saciar no ilimitado, no universal, no absoluto, é o que constitui o inferno especificamente humano. Projetar tal ilimitado na imortalidade individual, no incondicionado filosófico, na ordem cósmica e/ou ideal, no paraíso, no nirvana ou em qualquer outra projeção do universal infinito, é sempre negar as limitações do indivíduo de que, de facto, o indivíduo não se consegue libertar. Julgar que se atingiu alguma coisa aí é sempre apenas uma forma de se iludir, uma ilusão triste e caricata para qualquer um que a veja de fora, mas a que se entregam os crentes com toda a força da sua fé, qualquer que seja, pois preferem a ilusão ao confronto com a triste realidade, a de estarmos condenados à nossa individualidade, mesmo quando sonhamos superá-la.
Aliás, a consciência disto permeia muitas destas tradições. Muitos são os koan zen que evidenciam a absurdidade de se procurar o apego ao desapego, agarrar o inagarrável, desejar o não desejo. Do mesmo modo, Lao-Tse tenta transmitir, desde as origens lendárias do taoísmo, a inautenticidade de se tentar agir uma não ação: "O Tao que se procura alcançar não é o próprio Tao". Essas tradições parecem, aliás, tanto mais sensatas, quanto mais comedidas se mostram e mais se assemelham às recomendações dos autores clássicos e helenísticos do Ocidente a respeito da felicidade. Contrariamente ao delírio da maximização utilitarista do prazer, da sociedade comunista, do paraíso, do nirvana ou ainda da anulação da vontade, os antigos viam a felicidade como um lento e comedido cultivo de si próprio que, sobretudo, se autodisciplinava em relação aos prazeres que, longe de trazerem felicidade se prosseguidos sem limites, só viciavam e davam origem a uma existência miserável. Para alcançar essa sabedoria feliz era preciso cultivar o mesmo desapego dos orientais, a apatia, a indiferença, a autarquia que permitia criar uma ilha interna liberta de todas as contrariedades exteriores. Mas, sobretudo, era fundamental a disciplina de não tentar alcançar o que não estivesse no nosso poder. Isso não significa que não houvesse projeção do universal, antes pelo contrário, nada escraviza tanto o indivíduo como o apego ao individual e particular. Porém, esse universal servia para o cultivo de si próprio, para a paulatina realização da sabedoria num contentamento feito de moderação, temperança e equilíbrio. A ilusão de superar o individual é tão grande e potencialmente tão causadora de sofrimento como a de se apegar ao individual, como se alguma coisa aí houvesse que agarrar, nesse fluir de multiplicidade descontrolada, apesar de todas as tentativas técnicas de o domesticar, uniformizar e anular. Não por acaso, os seres pertencentes a seitas místicas parecem a quem os vê de fora tão zombificados quanto comunidades de toxicodependentes – e não é por acaso – porque o seu fim é o mesmo, o de alcançar um prazer (felicidade) absoluto não maculado por qualquer mínimo sofrimento ou sequer pressão. Tal como os toxicodependentes gostariam de estar constantemente pedrados até à morte, também os místicos gostariam de estar num permanente transe ou êxtase, conforme a mística seja mais oriental ou ocidental.
Francamente, não sabemos se mesmo a “receita” da filosofia antiga é exequível ou se é ainda apenas uma outra forma de ilusão. Certamente, houve casos muito similares aos orientais entre pitagóricos e platónicos (incluindo, naturalmente, os neo). Mesmo entre os restantes (peripatéticos, estoicos, epicuristas, cínicos), não sabemos se não se tratariam de novos casos de publicidade enganosa. Sabemos que a loucura que tomou o nosso mundo atual, a loucura do consumismo desenfreado, da realidade toda entendida como mercado e da agressão industrial do planeta, não seria possível em qualquer dessas éticas (as segundas). A verdade é que o cultivo do indivíduo como indivíduo, considerado como um átomo sem ligações que não sejam a da exigência de satisfação a tudo o resto, não pode deixar de dar origem a uma entidade miserável por muito que consuma. Mas isso ocorre por o indivíduo ter perdido noção do que ele próprio era. Na verdade, tratam-se de dois extremos absurdos, o da busca de satisfação individual através do consumo desenfreado e o da busca da anulação do individual através do universal, do divino, do indiferenciado, do incondicionado, do infinito, do absoluto. Um indivíduo, mesmo o indivíduo humano, nunca foi nada sem o universal. Ele é individual na medida em que realiza um padrão universal, o da espécie, prévio e a que pertence inteiramente. Para lá das pertenças naturais à vida, ao reino, à família, ao género (estou a referir-me às taxonomias biológicas e não a construtos socioculturais), à espécie ou ao sexo, existem muitas outras pertenças sociais e culturais que nos antecedem e nos formam, sem as quais nada somos. Tão fartos de ouvir histórias míticas da formação de sociedades a partir de indivíduos isolados, esquecemo-nos que sem a inserção social nem humanos seríamos. O “menino selvagem” nem a bipedia tinha adquirido. Em todos esses casos, estamos a realizar planos porventura cegos que nos transcendem, mas sem os quais nada somos.
Podemos querer atingir a santidade, o estado de Buda, o verdadeiro eu, a graça divina, o caminho do Tao, a universalidade incondicionada, as Ideias transcendentes, o Espírito Absoluto, que, na verdade, o que ficará, para lá dos nossos delírios, mas incluindo os nossos delírios, será a forma como contribuímos para a sociedade, a cultura, a espécie e a vida – e isso será talvez mais feito pela forma como compramos a nossa comida, como produzimos bens e serviços, como votamos ou participamos na vida política, como procriamos e criamos os nossos filhos, do que pelos nossos delírios que mesmo quando não sejam passageiros, não impedirão que todos os atos próprios da vida continuem a prosseguir. E a mais cabal demonstração disso está no facto de todas essas tradições cansadas de ou mesmo contra (nos casos ascéticos) a vida e a sua luta e multiplicidade tentarem encontrarem pretextos para se evitar o suicídio. Na verdade, se o seu objetivo fosse verdadeiro, não haveria razão nenhuma para rejeitarem o suicídio. De facto, nem haveria razão para rejeitar carregar no botão das bombas. Arranjam um Deus formatado para garantir uma conceção de justiça que proíba o suicídio ou uma causalidade do karma que garanta maus efeitos para tal ato ou simplesmente uma superação incompreensível da vontade metafísica, para, apesar da sua condenação desta vida e do seu desejo e do seu sofrimento, continuarem a vivê-los – e, ao vivê-los, continuarem a realizar tudo o que realizariam sem os seus delírios, meras marionetas da vida e da espécie e da sociedade, sem qualquer titereiro a manipulá-las, pois estamos a falar de forças múltiplas e, por vezes, até contraditórias, cegas, sem consciência reflexiva, sem personalidade, sem sequer individualidade. Ser plenamente conscientes de nós não é pois nem desejarmos sem freio, nem julgarmo-nos algo que deve ser anulado num incondicionado. Ser plenamente conscientes de nós é ter consciência de quanto a nossa condição individual é insuperável, mesmo sendo ilusória, quanto ela nada é sem a pertença a ordens universais que a superam e quanto aquilo que decidimos e deliberamos na nossa consciência individual tem pouca importância na determinação da nossa própria vida, estando como está a nossa consciência limitada por forças que a transcendem, forças que a usam como um instrumento e que estão presentes em tantas ações nossas que tendemos a pensar como muito racionais, quando na verdade seríamos incapazes de explicar qual o fundamento.
Serve este artigo como um exemplo de uma posição numa temática de natureza inteiramente metafísica, mas suscetível de uma discussão onde as mais diversas perspetivas podem e devem estar presentes, nomeadamente as religiosas e até as científicas. Como neste caso, não ocultaremos as nossas posições, mas isso não significa que não estejamos dispostos a confrontar-nos com outras, a debater todos estes assuntos e muitos outros. Diz-nos a experiência que, mesmo que não se alterem as posições – e esse não é um objetivo do Clube – o diálogo é sempre enriquecedor e permite sempre o aprofundamento argumentativo de cada conceção. Esperemos que o projeto seja aprovado e que possamos contar com a vossa participação.
Nota final: Por diversas vezes, usei linguagem de Schopenhauer com a qual não concordo. Chamei a atenção para a divergência na palavra vontade, mas não na palavra mito. Por razões que não vale a pena agora explanar, não subscrevo inteiramente esse uso da palavra.