A hipersensibilidade e o totalitarismo
Muitos se lembrarão da polémica com o cartoon de António. Foi publicado em Portugal sem que ninguém lhe
desse atenção, até por expressar algo que há muito muitos pensam, que, no que
toca ao Médio Oriente, Israel parece sistematicamente a superpotência e os
Estados Unidos um aliado submisso. A única exceção que se costuma admitir é a do consulado de Obama. De
alguma forma, o cartoon foi parar ao New York Times e aí quer o lobby judeu, quer o lobby israelita (que são coisas diferentes que muitos gostam de
confundir) se insurgiram contra um alegado caráter antissemita do desenho. A
prova seria a estrela de David como se esta não estivesse na bandeira de Israel
e como se o caricaturado não fosse o primeiro-ministro desse país. Na verdade,
não é a primeira vez, nem será a última que os sectores pró-israelitas reagem a
toda e qualquer crítica com a cartada do antissemitismo. Ora, isso pode permitir
que Israel possa fazer tudo o que lhe der na gana que qualquer acusação poderá
ser sempre alcunhada de antissemita. Mas, se isto não é novo, já são novas as reações
do Times: primeiro, pedindo desculpa
e, depois, sobretudo, decidindo deixar de ter no jornal quaisquer cartoons.
Sempre existiram pessoas hipersensíveis que reagiam a
qualquer piada, crítica ou tese rasgando vestes e apresentando todo o tipo de
protestos. Sempre houve alguns sectores cujo poder permitia, aliás, conseguir
censurar este ou aquele autor, fosse humorista ou não. Porém, até há algum
tempo, existia uma paulatina progressão da liberdade de expressão no mundo
ocidental. Isso alterou-se recentemente, com a agravante de nem se tratar de um
simples regresso às censuras anteriores. O que tem acontecido nos últimos
tempos é de uma outra ordem. De facto, os mais diversos sectores extremistas
conseguiram arregimentar vastas franjas da população, sobretudo da juventude,
umas mais conscientes do que estão a fazer do que outras, que procuram proibir
toda e qualquer expressão que, por qualquer motivo, alguns verdadeiramente
caricatos, julguem ofensiva, suscetível de ser vista como crítica (justa ou
não, isso pouco importa) ou até simplesmente adversa à sua posição, como se
estivesse proibida a possibilidade de ter posições diversas. Sobretudo, certos
jovens, como noutros tempos sempre entusiásticos para levar a cabo uma
revoluçãozita cultural, procuram calar toda e qualquer expressão de ideias que
não sejam aquelas que, do seu ponto de vista, sempre muito pouco crítico e
muito pouco refletido, serão as que correspondem à conceção correta da
realidade. Não se trata de discordar, até por raramente apresentarem argumentos
ou serem bem pobres os poucos que apresentam, trata-se de tentar calar, de
tentar banir, de tentar proibir, nem menos nem mais do que isso. O pior, porém,
é que os nossos políticos, jornalistas e diretores de editoras e mass media têm cedido sistematicamente a
esta tendência, visto serem profissionais da lisonja e estarem sempre
preocupados a seguirem a direção para onde sopra o vento. Além disso, existem aqueles
que, entre eles, são os verdadeiros promotores desses extremismos que os jovens
simplesmente seguem de forma acéfala. Afinal, é importante recordar que Mao não
era um jovem.
A vigilância sectária desses extremistas é de tal ordem
que inferniza as próprias relações sociais quotiodianas, constantemente
procurando detetar a mínima expressão ou declaração que possa ser censurada
pelo seu código. Isto alia-se, aliás, com a hipersensibilidade já típica da
adolescência mas que, tradicionalmente, tinha de se confrontar quer com a
realidade em geral, quer com a realidade da diversidade de perspetivas. O que
acontecia, através desse confronto, é que as pessoas amadureciam. Agora, são
proibidas de amadurecer porque é extremamente reforçado o direito à
hipersensibilidade como se fora um direito humano universal e inalienável. O
resultado é que qualquer capricho, qualquer tese inconsequente, qualquer
atitude incoerente se mantêm sem poder ser objeto de qualquer crítica porque
surgem os nossos novos guardas vermelhos, jovens turcos ou cavaleiros andantes
a proteger a frágil donzela de todo o perigo. O mesmo se diga não apenas do
confronto de teses, mas, por exemplo, das conversas onde hoje há que ter muito
cuidado com qualquer piada, com qualquer declaração para picar, com qualquer
diferença interpretativa, tudo estes zelotas vigiam para sancionar do alto da
sua superioridade moral que, muitas vezes, é bem difícil ver onde foi
adquirida. Desenvolve-se uma conceção assética das relações humanas em que as
pessoas têm de ter muitíssimo cuidado com tudo o que dizem a não ser que seja
para censurar as pessoas a que esses extremismos se opõem. Aí, como é costume,
tudo pode ser dito até ao maior exagero possível. A este nível dos micropoderes
desenvolve-se um verdadeiro totalitarismo cerceador da mais elementar
liberdade, a liberdade referida no 1984
como a liberdade de dizer que 2+2=4. E a verdade é que a maioria das pessoas
cede e, mesmo sem se recorrer à tortura, acaba por ver 5 ou 3 ou todos de uma
vez.
Ora, os macropoderes parecem incapazes de deter este
totalitarismo e assumem-no cada vez mais, dando, aliás, argumentos às outras
ideologias totalitárias mais tradicionais que vão ganhando notoriamente força.
Neste ambiente de cada vez maior censura, sempre justificado por razões
moralistas simplórias, como as que podem ser apresentadas por qualquer pessoa
com não muita inteligência, tendo em conta a diversidade de níveis intelectuais
que constitui um bando de extremistas, para que qualquer dos membros as possa
reproduzir, toda a liberdade cívica e política está ameaçada. Não se trata
apenas da liberdade de dizer 2+2=4, mas também a liberdade de errar, a
liberdade de pensar teses diversas, a liberdade de se ver confrontado com essa
diversidade e até crescer intelectualmente com ela. É preciso resistir. É
preciso denunciar os censuradores. É preciso que NY Times tenha vergonha não da liberdade de expressão, mas de a
censurar. Toda a sociedade pluralista está em perigo. É preciso não
contemporizar e continuar a falar por muito que tentem todo o diverso calar. É
preciso dizer o que cada qual julga e não se deixar intimidar. É preciso argumentar,
é preciso declarar, é preciso fazer frente.