O choque macartista de Isabel Moreira
A deputada
Isabel Moreira ficou chocada, no recente programa Prós e Contras com a comparação da historiadora Raquel Varela entre
o #metoo e o macartismo. Do meu ponto de vista, o que é interessante é analisar
a razão de tal choque. O que o macartismo, liderado pelo senador Joseph McCarthy, pretendia era
perseguir os alegados inimigos da América por alegadas atividades comunistas,
consideradas pró-soviéticas em pleno início da Guerra Fria. Acabou por se
tornar uma campanha de depuração ideológica dos Estados Unidos que, para lá de centenas
de detenções, teve como principal consequência para milhares de pessoas a perda
dos seus empregos e a destruição das suas carreiras. Isto foi feito não apenas
pelas audições e investigações do Senado e da Câmara dos Representantes, mas
por duvidosos procedimentos judiciais e privados, entre os quais figura a
célebre lista negra de Hollywood (entre muitas que foram redigidas na altura em
diferentes ramos). O ambiente vivido nessa época, até meados dos anos 50, era
um ambiente de “caça às bruxas” (referência, aliás, também a um episódio
norte-americano, em Salem) em que a simples denúncia bastava para destruir a
vida do visado, sem necessidade de qualquer processo judicial ou qualquer
prova, o que também foi notório até nos muito duvidosos processos judiciais que
também ocorreram. Para lá dos comunistas visados, todos os que mostrassem
preocupações sociais e até muitos que nada tinham a ver com as preocupações
progressistas, por exemplo por serem homossexuais, foram banidos do seu emprego
e/ou da sua carreira. Mesmo após a queda em desgraça da campanha, muitos foram
aqueles que continuaram banidos dos seus ramos.
Ora, o
movimento #metoo, sobretudo a partir da sua expansão em Holywood, mostra
características muito similares, sobretudo no que se refere à pretensão de
simples denúncias, sem procedimentos judiciais, provocarem o despedimento e o
banimento dos acusados. Argumenta-se com a dificuldade da prova, essa chatice,
da mesma forma que o macartismo julgava que os comunistas estavam infiltrados e
dissimulados pelo Estado e por toda o tecido económico, sendo necessário
aproveitar todo e qualquer indício para os desmascarar. Se não se chegou a mais
audições no Congresso, como as recentes relacionadas com a escolha do juiz para
o Supremo, deve-se apenas ao facto de os republicanos terem a maioria, tal como
acontecia no macartismo, mas com um sentido inverso – onde o macartismo foi
impulsionado pela maioria, as alegações sem provas e de há longo tempo foram
agora reprimidas pela mesma maioria. É perfeitamente evidente que o movimento
#metoo tem grandes esperanças nas próximas eleições exatamente por isso.
Ver-se-á se o ativismo feminista associado, apesar de um presidente caricatural
que tinha tudo para beneficiar os democratas, conseguirá beneficiar o partido
que apoia ou se, pelo contrário, o prejudicará. Da mesma forma, também o
banimento dos acusados pretendido pelo movimento tem sido mais limitado que o
desejado, como, aliás, se verificou nas declarações de alguns intervenientes do
programa Prós e Contras, ao identificarem
casos de acusados que tinham perdido o emprego e que, entretanto, já se
encontravam de novo a trabalhar. Para lá destas limitações resultantes da
limitação do seu poder, há outras características similares ao macartismo, não
só por os gestos mais irrelevantes do passado, mesmo contra a opinião de
alegadas vítimas, poderem ser transformados em indícios acusatórios, mas por se
constituir como um exército em que a mínima crítica ao seu sector é respondida
com protestos ensurdecedores e a mínima acusação dá origem a um coro de apoio.
Por exemplo, é concedido exatamente o mesmo estatuto de vítimas a atrizes que
disseram não aos abusos e viram as suas carreiras destruídas ou muito
limitadas, e aquelas que os sofreram, se calaram, deixando que acontecessem com
outras, e beneficiaram, na sua carreira, desses abusos. Ora, seria muito mais
improvável que aquelas tivessem as suas carreiras destruídas, se as outras
dissessem não ou, caso fossem violadas, se queixassem do crime. Isso significa
que parece, no mínimo, injusto serem postas no mesmo saco. Claro que se pode
argumentar com o medo, mas nunca se especifica que medo é esse, pois isso
levaria à mesma conclusão. Visto não haver qualquer relato de homicídios ou
outras violências físicas, para lá das violações, associado a estes meios, pelo
menos nas últimas décadas, o medo em causa parece ser o de ver a sua carreira
destruída. Mas foi isso que aconteceu às que resistiram, preferindo tal
prejuízo à contemporização com o abuso.
A deputada
Isabel Moreira ficou chocada com o paralelo por uma simples razão: porque o
macartismo é um movimento de direita e o #metoo é de esquerda, partilhando,
aliás, com ela o ideário. Para Isabel Moreira, um movimento que atropela os
procedimentos judiciais é bom se for para atacar alegados predadores sexuais, é
mau se for para atacar alegados comunistas. Se o #metoo conseguisse tanto poder
como o macartismo e estendesse a sua ação ao congresso e às empresas,
conseguindo mesmo julgamentos sem provas que não as denúncias, parece óbvio que
aplaudiria a vitória do movimento. Daí o seu argumento da empatia, um argumento
que procura arrastar as pessoas pela adesão emocional, o que desde a
Antiguidade é considerado um procedimento sofístico e demagógico, destinado a
conseguir que as pessoas pensem o menos possível, analisem o menos possível e
reflitam o menos possível. Aliás, essa é a linguagem de Hollywood que sempre manipulou
ideologicamente através dos seus filmes, nomeadamente arrastando as pessoas
emocionalmente, como, aliás, bem tem consciência o movimento feminista e LGBT
e, por isso, tem feito inúmeras exigências para mudanças nos argumentos e nos
elencos. Resumindo, a Dr.ª Isabel Moreira ficou chocada com o paralelo porque
nem lhe passa pela cabeça que o objeto da crítica seja o tipo de procedimentos,
autocrático e a tender para totalitário, e não tanto o conteúdo ideológico
desses procedimentos. Da mesma forma, um filme manipulador que transmitisse
uma mensagem conservadora da família e da mulher seria repudiado, ao passo que
um filme manipulador que transmitisse uma valorização da ideologia da
identidade de género já seria bom. O caráter manipulador de ambos seria
indiferente ou só não seria na medida em que servisse de argumento contra a
ideologia a que se opõe. Há algum tempo, acusou Ricardo Araújo Pereira de ser
de direita (ou ter pensamento de direita) por defender o primado da liberdade
de expressão, alegando que a esquerda subordinava tal liberdade às bandeiras da
ideologia que defende. É difícil perceber que parte da direita macartista aqui
referida seria favorável à liberdade de expressão. E é difícil porque quer de
direita, quer de esquerda, quem subordina a liberdade de expressão ao seu
roteiro ideológico é o extremismo. O problema é que o Ricardo não é extremista
e o Mexia também não, embora seja um de esquerda e o outro de direita, ao passo
que o macartismo e Isabel Moreira são. A cisão está aqui entre democráticos e
moderados, de um lado, e extremistas e autocráticos do outro.
Que Isabel
Moreira não veja qualquer problema nos procedimentos do #metoo ou minimize os
seus erros não é de admirar, porque ela é afinal talvez a maior representante
desses procedimentos aqui mesmo em Portugal. Por delitos de opinião, Isabel
Moreira já exigiu que as ordens profissionais banissem profissionais, incluindo
decanos prestigiadíssimos, por muito conservadoras que sejam as suas opiniões, como
Gentil Martins. Não se limitou a criticar como estaria em todo o seu direito e
até no seu dever, tentou, como noutros casos, obter uma resposta punitiva.
Também esteve na linha da frente na luta contra a campanha antitabágica da
princesa ou no caso dos cadernos de exercícios, com o respaldo do poder através
da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, sempre exigindo proibições,
mesmo que isso representasse o desejo de proibir manifestações de ternura da
maioria dos portugueses (com as quais, aliás, eu nem me identifico). Isto,
aliás, mostra bem como o PS se tornou refém da linguagem e atitudes do ativismo
feminista não só de Isabel Moreira, como de amplos sectores do Bloco, que, em
muitos aspetos que poderei descrever noutra altura, é contrário a muito do
feminismo tradicional. No programa Prós e
Contras, foi referida a microfísica do poder estudada por Foucault. Mas se
essa microfísica é condenável pela sua normatividade, não a deixa de ser se for
feminista ou LGBT, desde que seja igualmente autocrática no limiar dos hábitos
que nem são objeto de crítica. Ora, o que pessoas como Isabel Moreira
claramente procuram é instituir uma normatividade alternativa mesmo que
contrária à vontade da maioria dos portugueses. Daí que não seja de admirar a
forma como encerrou o debate, a criticar o resultado da consulta pública por já
saber que o resultado lhe não seria favorável. Contra o alegado sexismo
português, ergueu a sua condenação moral de iluminada, como sempre aconteceu
com todos os fanáticos, incapazes de aceitar a diversidade e julgando-se
justificados pela superioridade da sua doutrina, a verdade. E se há coisa que é
óbvia em todas as intervenções de Isabel Moreira é a sua inflexibilidade tão
fanática, quanto obtusa, incapaz de qualquer compreensão subtil da realidade,
ancorada sempre em verdades absolutas. Já não é a primeira vez, a partir do meu
canto insignificante, que lanço o aviso para o PS que sempre foi um partido
moderado e defensor da liberdade de expressão: está a deixar-se colonizar por
uma linguagem que é reflexo de um ideário extremista e autocrático, hipotecando
a sua tradição.
Finalmente, há
mais um aspeto em que o #metoo e o ativismo feminista recente, e o macartismo
se aproximam, desta vez no âmbito do próprio conteúdo: o conservadorismo
sexual, o puritanismo. Naturalmente, os seus ataques não incidem exatamente nas
mesmas práticas, mas a mesma intenção puritana está lá, tendo como alvo as
práticas de sedução, tantas vezes transgressoras até por parte de tantas
mulheres (como posso pessoalmente testemunhar abundantemente, apesar de serem
casos há muito passados como vários do #metoo). E não é de admirar que por cá,
depois de décadas a lutar contra a direita a favor da educação sexual, seja o
PS que tenha acabado de banir o seu caráter obrigatório. Também não é de admirar
que o género e não o sexo, mesmo no que toca à igualdade, seja o que figura
entre as temáticas obrigatórias. Só quem não estudou estes assuntos é que não
percebe a importância destas mudanças terminológicas. A instituição da nova
microfísica do poder emanada dos setores feministas ativistas e seus aliados
ainda está no início e só um sector tem-se mostrado, lá fora, suficientemente
forte para se contrapor a este avanço: a extrema-direita. Porque se era
evidente há muito a ascensão da extrema-direita, devido à desindustrialização
do Ocidente permitida pelo comércio livre, o aumento da dívida, a concorrência
desleal da globalização, etc., só faltava mesmo este projeto autocrático à
esquerda para dar uma ajuda à captação de fiéis para as fileiras da
extrema-direita, visto as forças democráticas não terem capacidade de uma
oposição eficaz ao discurso dito politicamente correto. O Brasil não está assim
tão longe e não me admirava que um dia destes um Ventura, depois de ser
menosprezado por toda a opinião bem-falante, se tornasse o nosso Bolsonaro ou o
nosso Orban ou o nosso Trump. E, no final, é isto o mais triste: como é que o
feminismo que garantiu uma extensa igualdade sexual jurídica, incluindo inúmeras
disposições legitimamente diferenciadoras do estatuto da mulher, iniciou esta
deriva intolerante que tenta impor um projeto normativo que se tornou
intolerável? como é que os ativistas LGBT se não contentaram com a tolerância
sexual legalmente consagrada que muito os protegia e desataram, em vários
países, a impor normas de género contrárias às convicções da maioria da
população e às próprias necessidades da convivência social? e como não viram
que, se conseguissem sequestrar com estes projetos o poder moderado, como
conseguiram em tantos países, estavam a empurrar vastos sectores da população
para a extrema-direita? Naturalmente, não serão o único fator, mas, pelo que
tenho ouvido da boca de tantos alunos ao longo dos anos, são um fator decisivo.
Embora Bolsonaro ande a calar muitas das suas opiniões mais extremistas
enquanto não tem os votos garantidos, fez questão de sublinhar a intenção de
banir das escolas a ideologia do género. Fê-lo porque isso dá votos. Um outro
indício ocorreu há algum tempo quando Judith Butler foi impedida de proferir
uma conferência numa universidade brasileira não por velhos mas por jovens, tal
como aconteceu tanta vez em sentido contrário nas universidades
norte-americanas. Não é só a crise, o crime e a corrupção que impulsionaram
Bolsonaro. Existe uma saturação das verdades absolutas da esquerda que tem
impulsionado, por toda a parte, a extrema-direita. E o que é triste é que esta
esquerda, convencida não só da sua verdade mas também do seu poder, tem
alienado, arrogantemente, inúmeras pessoas de esquerda como eu ou a Raquel
Varela que já não se podem rever neste ideário. Pelo menos, quando se verificar
a ascensão da extrema-direita, estarei, enfim, a lutar e talvez a morrer do
mesmo lado dessa esquerda. Mas não me esquecerei das suas responsabilidades...