Objetivo central do Clube de Debate
O Clube de Debate é um pequeno
contributo para uma tarefa titânica, porventura impossível: promover pessoas e
combater a gente. Nenhum outro objetivo é mais importante. Trata-se de combater
a tendência das pessoas desaparecerem sob a forma de gente. A gente é o
coletivo indiferenciado, é “o que se diz”. “É o que toda a gente diz”, “é o que
toda a gente faz”, “toda a gente sabe isto” – esta é a forma de cada qual
desaparecer no meio de uma autoridade indiscutível que não é nada, nem ninguém,
a que não se pode pedir contas até por não ser alguém que se possa
responsabilizar. Se, de facto, fosse toda a gente nem seria necessário utilizar
tal recurso argumentativo, mas a verdade é que a gente não se preocupa muito
com a racionalidade. Tem a força do coletivo e essa força é especialmente
eficaz não a expor razões, mas a anular qualquer razão que se pudesse
apresentar.
Que tal atitude todos possa infetar não
é surpreendente. Desde a minha juventude, tenho visto pessoas inteligentes e
interessantes que, assim que enfileiram uma organização política, passam a ser
soldados de um exército ideológico e não hesitam em ser incongruentes,
falaciosos, desonestos, recorrer a todas as táticas primárias de intimidação e
ridicularização, só para trazerem dividendos para o seu regimento. Tornam-se
gente e aquilo que define a pessoa, a racionalidade, deixa de ser importante ou
até passa a ser algo a combater. Vê-se isso nestas redes sociais, como
indivíduos com qualidades se anulam dizendo a tudo que sim se vier dos seus
chefes e apaniguados, por mais absurdo que seja, de forma acéfala, sem o mínimo
espírito crítico, e repudiam veementemente tudo que lhes cheira vir de ou
convir a adversários por mais razões que sejam apresentadas – e isso abrange
gente de rigorosamente todos os partidos parlamentares. Por outro lado, é
impressionante ver como homens que se dedicaram à política partidária voltam a
ser pessoas quando abandonam essa vida política e acabam por mostrar quanto da
sua individualidade reflexiva tinham castrado para servir as suas hostes.
Enquanto membros de um coletivo e em prol do coletivo, havia que arregimentar,
ganhar força, contar espingardas, não só (mas também) para fazer frente a
outros coletivos, mas sobretudo para eficazmente esmagar pessoas. É a lógica
dos grupos de bullies. Se temos
força, se temos número, podemos humilhar, ridicularizar, violentar até – não
precisamos de ter coragem, não precisamos de nos esforçar, não precisamos de
argumentar pois temos o regimento para nos apoiar por mais disparatado que seja
o que dissermos, o que fizermos ou o que impormos. Claro que isso é útil para
confrontar grupos de rufias inimigos, mas primariamente o seu alvo são as
pessoas, visto na sua fragilidade individual residir, por um lado, uma ameaça
de pensamento livre que tais grupos abominam, mas, por outro, caso consigam
quebrar a sua individualidade, também a possibilidade de reforço do exército
com mais soldados. Não é, aliás, por acaso que as praxes, que ou tinham
desaparecido, ou nunca tinham existido (conforme os locais e estabelecimentos)
ainda há poucas décadas, tenham regressado com tanta força ou sido criadas do
nada. Ali faz-se gente – é o que significa a alegada integração. Onde é que o
espírito crítico que deveria ser apanágio do espírito académico se encontra
nesses supostos detentores da vida académica é que é impossível dizer.
O Clube de Debate deveria ser a antítese
dessa atitude, deveria ser um fórum da afirmação da individualidade crítica e
reflexiva que se expressasse através da argumentação e não um confronto de
seitas como os que vemos nos debates televisivos partidários ou futebolísticos,
em que é raro o argumento decente que se apresenta, a razão do adversário que é
considerada seriamente ou qualquer dialética que permita que algum
desenvolvimento argumentativo nasça do confronto de ideias. Alguém que mantenha
alguma integridade intelectual, ao estudar um pensamento adversário, tenta em
primeiro lugar compreendê-lo, identificar as suas razões, examinar a
consistência e valor dos seus argumentos e ponderar se as suas conclusões não
poderão ter, afinal, algum sentido. Em tempos, estudei com alguma atenção o livro
de Hitler, não para gozar com os seus argumentos ou teses, mas para tentar
compreender as suas razões e o seu sentido, muito embora abomine as suas teses.
Um partizan nunca faz semelhante
coisa a não ser em relação aos autores canonizados na sua seita. Mas mesmo
entre os partidos encontra-se sempre pessoas que resistem a este enfileiramento
acéfalo. Lembro-me de dois excelentes historiadores, um conservador e outro
esquerdista que nem, por isso, deixaram de mostrar, o primeiro, como a
monarquia caiu de podre, não acreditando em si mesma, ao contrário do discurso
habitual de certos setores conservadores, e o segundo, como o Estado Novo correspondeu-se
ao desejo de uma solução autoritária comum à generalidade dos atores políticos,
incluindo os próprios políticos da primeira República. Mas quão raras são estas
figuras dado o ambiente tóxico dessas estruturas intelectualmente burocráticas
a que chamam partidos.
Quem mantém alguma integridade
intelectual não pode fazer aquilo que vemos ser feito pelos nossos políticos no
Parlamento. É preciso que se diga: isso não é nenhum debate. Cada político
reproduz um discurso estereotipado que todos os membros do seu partido proferem
e está aparentemente impedido de considerar qualquer razão de um adversário
(razões identicamente estereotipadas, é certo) a não ser com apartes,
ridicularização, grunhidos diversos e gargalhadas alarves em conjunto com os parceiros que parecem um bando de ébrios arruaceiros já incapaz de um grau maior de argumentação. Quando
vão à televisão, onde já não têm o seu bando a fazer coro, os políticos
recorrem a todas as falácias clássicas e modernas, abusando da falta de
educação lógica do público para conseguir dividendos com os argumentos mais
grosseiramente defeituosos. Nunca consideram a argumentação adversária senão
com variações diversas da falácia do espantalho, em que distorcem ou
caricaturam a posição adversária até se tornar irreconhecível, para depois
pretender refutá-la. Nunca tentam verdadeiramente compreender o outro, nunca há
verdadeiro diálogo, trata-se de uma transmissão unilateral da propaganda
própria que tem como única vantagem em relação à de uma ditadura, o facto de se
consentir que vários divulguem a sua propaganda, isto claro se pertencerem a
uma das seitas reconhecidas. Ora, nada disto é, ao contrário do que se busca
fazer crer, um verdadeiro debate, uma luta argumentativa em que os argumentos
adversários são considerados, ponderados no seu valor e validade, e respondidos
não por argumentos que ignorem os argumentos contrários, mas por argumentos que
incorporem os contrários, que os considerem no que se julga dever ser
considerado, que rejeitem o que se julga dever ser rejeitado por argumentos
melhores, que permitam ir além do que antes se foi e assim sucessivamente em
cada ronda argumentativa. Só por isso o debate vale a pena. O debate permite
efetivamente a evolução da nossa reflexão e o confronto com outras perspetivas
faz-nos crescer argumentativamente. Embora possam existir fases de solidão,
nenhum pensamento verdadeiramente rico e penetrante se constituiu sem ser em
diálogo e em debate com os outros. Que não se confunda o verdadeiro debate com
essa pantomina que vemos ser encenada nos media
a fingir debates que não existem, com uma falta de integridade e de honestidade
que tem vindo a afastar cada vez mais as pessoas de boa vontade desses meios
pouco recomendáveis. Que antes se debata para melhor se pensar e não que se
finja o debate, papagueando o discurso da fação, para nunca se correr o risco
de pensar. Que se debata para se crescer como pessoa e não que se faça coro
para definhar como gente. Que assim seja no nosso Clube ou ele não terá qualquer sentido.