28.2.10

David Hume: O problema da existência do mundo exterior; Crítica ao realismo

Parece evidente que os homens são levados, por um instinto ou predisposição natural, a depositar fé nos sentidos; e que, sem qualquer raciocínio ou mesmo quase antes do uso da razão, supomos sempre um universo externo, que não depende da nossa percepção, mas existiria, ainda que nós e todas as criaturas sensíveis estivessem ausentes ou fossem aniquiladas. Até mesmo o mundo animal é governado por uma opinião semelhante e preserva a crença dos objectos externos em todos os seus pensamentos, intenções e acções.
Parece também evidente que, ao seguirem este cego e poderoso instinto da natureza, os homens supõem sempre que as próprias imagens, apresentadas pelos sentidos, são os objectos externos e nunca alimentam qualquer suspeita de que umas nada são excepto representações dos outros. Pensa-se que esta mesa aqui, que vemos ser branca e cuja dureza sentimos, existe independentemente da nossa percepção e é algo de externo à nossa mente, que a percebe. A nossa presença não lhe confere o ser; a nossa ausência não a aniquila. Ela salvaguarda a sua existência uniforme e inteira, independentemente da situação dos seres inteligentes, que a percebem ou contemplam.
Esta opinião universal e primitiva de todos os homens, porém, cedo é destruída pela filosofia mais trivial, a qual nos ensina que nada pode estar presente à mente a não ser uma imagem ou percepção, e que os sentidos são apenas as entradas por onde as imagens são transportadas, sem conseguirem suscitar uma comunicação imediata entre a mente e o objecto. A mesa, que vemos, parece diminuir, à medida que dela mais nos afastamos, mas a mesa real, que existe independentemente de nós, não sofre nenhuma alteração; não passava, pois, da sua imagem, que estava presente à mente. Eis os óbvios ditames da razão; e nenhum homem, que reflicta, alguma vez duvidou que as existências, por nós consideradas ao dizermos esta casa e aquela árvore, são unicamente percepções na mente e cópias ou representações fugidias de outras existências, que permanecem uniformes e independentes.
 
Até agora, pois, somos forçados pelo raciocínio a contradizer ou a apartar-nos dos instintos primitivos da natureza e a adoptar um novo sistema em relação à evidência dos sentidos. Mas a filosofia encontra-se aqui extremamente embaraçada, ao ter de justificar este novo sistema e neutralizar as cavilações e as objecções dos cépticos. Não mais pode defender o instinto infalível e irresistível da natureza, porque isso nos levou a um sistema completamente diferente, que se reconhece ser falível e até erróneo. E justificar o pretenso sistema filosófico por meio de uma cadeia de argumentos claros e convincentes, ou mesmo mediante uma aparência de argumentação, excede o poder de toda a capacidade humana.
Mediante que argumento se pode demonstrar que as percepções da mente devem ser causadas por objectos externos, totalmente diferentes delas embora com elas se parecendo (se isso é possível) e que não podiam surgir ou da energia da própria mente, ou da sugestão de algum espírito invisível e desconhecido, ou de uma outra causa ainda mais incógnita para nós? Sabe-se que, de facto, muitas das percepções não brotam de algo externo, como nos sonhos, na loucura e noutras doenças. E nada pode ser mais inexplicável do que a maneira como o corpo tem de agir sobre a mente, a fim de transmitir uma imagem de si mesmo a uma substância de natureza supostamente tão diversa e mesmo contrária.
É uma questão de facto se as percepções dos sentidos são produzidas por objectos externos, a elas semelhantes: como irá decidir-se tal questão? Pela experiência, certamente, como todas as outras questões de natureza similar. Mas, aqui, a experiência é e deve ser inteiramente muda. A mente nunca tem algo presente a si a não ser as percepções e, possivelmente, não pode obter qualquer experiência da sua conexão com os objectos. Por conseguinte, a suposição de uma tal conexão é desprovida de todo o fundamento no raciocínio.
Recorrer à veracidade do Ser supremo para demonstrar a veracidade dos nossos sentidos é, sem dúvida, realizar um circuito muito inesperado. Se a sua veracidade estivesse nesta matéria deveras implicada, os nossos sentidos seriam totalmente infalíveis, porque não é possível que Ele nos possa enganar.
 
David Hume, trad. port. Artur Morão, Investigação sobre o Entendimento humano, XII, Parte I, 118-120.