25.2.24

A nossa própria inteligência artificial

Nos últimos tempos, tem estado em discussão o desenvolvimento exponencial dos programas de inteligência artificial. De um lado, alinham-se os detratores que veem, nessas inovações, o progressivo fim da humanidade, substituída definitivamente pela sua própria criação. Em alguns casos, admitem as vantagens (por exemplo, no domínio das intervenções médicas), mas enfatizam as consequências nefastas que já estão a ter no domínio da educação e que determinarão uma cada vez maior obsolescência do próprio ser humano. Do outro lado, enfileiram-se os entusiastas que encaram esses programas como instrumentos que potencializam as próprias faculdades humanas, permitindo um sucesso fácil onde antes avultava a frustração da maioria – e aí incluem a própria aplicação dessas ferramentas à educação. Claro que é muito difícil perceber porque consideram como sucesso educativo um simples plágio potencialmente indetetável, mas tal decorre diretamente da distorcida noção de aprendizagem que tem sido forjada nas últimas décadas e que se autoestimula pela constante confirmação dos seus postulados que nunca são submetidos a verdadeiro escrutínio.

Uma outra discussão que se intersecta com esta é a que diz respeito às possibilidades futuras, até onde poderá ir a inteligência artificial. O caricato desta discussão reside na tradicional antropomorfização. Tal como os deuses não eram mais do que homens com superpoderes, tal como o Deus único não era mais que a negação dos limites das faculdades humanas, tal como os extraterrestres dos livros, banda desenhada e cinema não eram mais que homens com caraças, também aqui os homens, habitualmente, não parecem ser capazes de imaginar qualquer inteligência artificial se não à sua imagem e semelhança. Daí, porem-se a discutir se a IA poderá vir a ter sentimentos, se poderia ter uma alma, se poderia ter livre-arbítrio, sem reservarem um segundo para se questionarem porque ter sentimentos é um requisito necessário à inteligência, o que é essa alma que referem ou se existe verdadeiramente algum livre-arbítrio. Se se chama a atenção para as simulações artificiais de sentimentos, salientam ser meras imitações, nunca se questionando se os sentimentos humanos não serão, eles próprios, resultado de um gradual processo de imitação, tal como evidencia a variação dos mapas sentimentais conforme a cultura, ou seja, conforme os padrões que foram inculcados em cada caso. Curiosamente, muitas vezes aqueles que descartam as simulações como imitações são os mesmos que sobrevalorizam o sucesso educativo dos alunos que recorrem às aplicações de IA. Por outro lado, supondo que existe mesmo uma alma, ou seja, uma substância individual que permanece idêntica a si mesma, também não se percebe porque uma inteligência teria de ser individual, porque não poderia ser uma colónia a funcionar em algum tipo de rede ou outro tipo de funcionamento global, com base, por exemplo, na nuvem virtual. Além disso, o próprio indivíduo, apesar de tão cheio de si, não é mais que uma colónia multicelular, um ecossistema precário de que a consciência não é mais que epifenómeno derivado. Essa própria consciência, na esmagadora maioria dos seus pensamentos, mais não faz do que reproduzir o seu ambiente social, mostrando o seu caráter ressonante a cada instante, mera peça emanada de um todo coletivo. De facto, a única individualidade radical da maioria reside no desejo que a faz submeter-se ao coletivo. Mas até esse desejo, exatamente por ser antepredicativo, parece provir de uma instância indiferenciada, só tendo a consciência que reconhecê-lo e ser determinada por ele, sem nunca o ter escolhido, mas apenas escolhendo segundo ele. E assim se chega à derradeira ilusão acerca do humano, o livre-arbítrio. Cada vez que um programa informático opta pelo 0 em vez do 1 está a escolher porventura de forma mais consciente do que a escolha feita por humanos. Dir-se-á que é uma escolha inteiramente determinada, sem alternativa. Alternativa existe, o 1 em vez do 0, não existem é motivos para o programa a escolher, visto não cumprir da melhor forma o seu fim. Da mesma forma, um humano escolhe aquilo que tem motivos para julgar que satisfaz melhor o seu desejo. A única diferença é que erra muito mais que o estrito cálculo artificial operatório na prossecução da satisfação desse desejo que o anima e que, é claro, nunca escolheu, mas em função do qual faz todas as escolhas. Assim, a ilusão do livre-arbítrio parece radicar não apenas no desconhecimento das causas que determinam o desejo, mas também na incerteza quanto aos meios para alcançar os fins. Ora, a escolha de fins inadequados para satisfazer o desejo não é, de facto, sinal de um poder misterioso de escolha livre, mas apenas de um conhecimento deficiente e/ou limitado. Se o conhecimento de cada qual quanto aos meios para satisfazer o desejo fosse perfeito, não haveria qualquer variação nas escolhas. Dir-se-ia que ainda aí diversos indivíduos se satisfariam com diversos fins, mas, na verdade, esses fins não passam dos meios projetados para a satisfação que quase invariavelmente acaba por não ser plena exatamente pelos erros de cálculo em relação ao que satisfaria o indivíduo. E mesmo que houvesse diversas formas de satisfação plena, ainda aí não se veria em que é que isso demonstraria um livre-arbítrio diverso de uma máquina, pois também diversos programas podem ter diversas escolhas conforme o tipo de programa, não encontrando todos a satisfação nos mesmos fins.

Porém, todas essas discussões me parecem laterais ou menores, visto nunca se questionarem em relação àquilo que supostamente pretendem proteger ou potenciar. De facto, antes de questionar os perigos de uma eventual inteligência artificial dura, completa ou forte, a questionação deveria incidir sobre o domínio da inteligência artificial nos próprios humanos. Apesar desta questão estar implícita num grande número de abordagens do pensamento do séc. XX, talvez devido ao cada vez maior domínio da filosofia analítica, talvez a mais rígida versão filosófica dessa inteligência artificial que, muito naturalmente, não se quer reconhecer como tal, ocorre, atualmente, uma amnésia generalizada quanto ao poder da técnica moderna na formatação do pensamento humano, concentrando-se toda a discussão nos perigos de alguns dos seus produtos. De facto, a discussão assemelha-se à discussão da época de fogos, em que se vê o problema nos incêndios e não nos incendiários e nas condições que os propiciam, os interesses envolvidos nos próprios incêndios ou nas produções incendiárias, incluindo a redução da floresta a recurso industrial, a negligência indolente e/ou dolosa do Estado e as variáveis climatéricas efetivamente desprezadas. Da mesma forma, teme-se o domínio da IA e ninguém se questiona até que ponto não é já a inteligência humana artificial, razão, aliás, de a IA se poder tornar todo poderosa, visto já não existir nenhuma inteligência humana que não a artificial e, à medida que a IA se desenvolver, se tornar notório que, não tendo nada de específico ou diverso, a inteligência humana nada terá para oferecer ao caos do domínio técnico a não ser uma inteligência de pior qualidade, cada vez mais obsoleta.

Não me estou aqui a referir à acefalia da gente, reduzida a ressoar o coletivo. Há alguma coisa que sempre ficou entre esta acefalia e o raríssimo pensamento autónomo. Partilha com a acefalia a necessidade de seguir modelos, mas tenta pensar a partir desses modelos, dentro do espartilho por eles proposto. Um exemplo bem tradicional desse pensamento artificial é a Escolástica. Porém, mais do que o referencial dogmático das crenças religiosas que traça o limite que os autores não poderiam transpor, o que caracteriza o caráter artificial desta inteligência é a metodologia, sobretudo após a fixação do enquadramento aristotélico. Qualquer um que leia a Suma Teológica não pode deixar de traçar o paralelo com as abordagens atómicas, sempre subordinadas aos mesmos procedimentos de cálculo, dos modernos papers analíticos. É por isso, aliás, que muitas vezes tenho chamado à filosofia analítica uma nova Escolástica, mesmo para lá de alguns dos seus autores serem de facto escolásticos de forma literal, pois o que lhe dá consistência é uma forma sempre idêntica de tratar os problemas, uma inteligência domesticada que consideram um paradigma de rigor, mas que, na verdade, se reduz a uma abordagem atómica inteiramente artificial e intencionalmente ignorante de todo o contexto e de toda a articulação que vá para lá da discussão do minúsculo esqueleto argumentativo. Ora, mesmo tendo havido modelos anteriores deste pensamento artificial, ele começa a tornar-se todo-poderoso na revolução científica do século XVII, alcançando a sua maior expressão na res extensa de Descartes, mas sendo antecipado no ideal de ciência-técnica de Bacon, nas fórmulas de Galileu ou no pensamento reduzido a cálculo de Hobbes. Naturalmente, não são esses autores que desenvolvem a inteligência artificial, eles fornecem modelos de artificialidade que, depois, servem de bitolas pelas quais se regem os seguidores. Aliás, todo o espírito académico enquanto académico (moderno, entenda-se – não me estou a referir à escola de Platão) caracteriza-se por esta exigência de operar com os modelos já dados, modelos tão artificiais quanto for possível, de forma a facilitarem a reprodução. Invariavelmente, esse espírito opõe-se ao radicalmente novo, mesmo quando se julga muito moderno por estar a reproduzir modelos disruptivos. Na verdade, o que esse espírito faz, em cada caso, é extrair a estrutura, o esqueleto, a armação de um autor ou corrente que porventura nem as reconheceriam, tornando esses esquemas artificiais em normativos que passam a ter de ser seguidos na academia. Essa extração de modelos artificiais atinge o seu paroxismo caricatural na arte, pois transforma puras manifestações da espontaneidade individual em referências dogmáticas, sem que se consiga sequer explicitar qualquer verdadeira razão, mesmo que circunstancial e forçada, para ser assim em vez de outro modo. A ocultação dessa falta de razões por trás de discursos pretensiosos e vazios, cheios de declarações que não significam nada, já não engana sequer os interessados. Mas tal dogmatismo constitui um referencial precioso, mesmo que totalmente arbitrário, para a manipulação especulativa do mercado.

Na própria tecnociência, o seu ambiente quase natural, esse pensamento artificial está sempre em expansão. A insistência no método científico, já assim chamado dogmaticamente, não determina a menor descoberta, sendo apenas uma superstrutura ideológica justaposta sobre o trabalho científico que, depois, depende dos méritos dos cientistas individuais que chegariam às suas descobertas com ou sem tal referencial dogmático. Já Leibniz chamava a atenção que o método cartesiano não tinha permitido a menor descoberta dos seguidores, muito embora todos acreditassem piamente no seu valor. Muitos cientistas tiveram que mentir quanto ao seu cumprimento do método positivista, para que as suas hipóteses fossem aceitáveis, muito embora essas hipóteses nunca pudessem ter sido obtidas por estrita indução. As ciências sociais e os seus sucedâneos políticos multiplicam a inteligência artificial de vários modos, sendo seu emblema maior o organigrama. Tal qual Descartes pensava um mundo físico reduzido a figuras geométricas, sendo seu fundamento único os modelos abstratos mentais da matemática, todo o mundo prático, no sentido tradicional aristotélico, procura reduzir a realidade a essa arrumação abstrata e estritamente artificial do organigrama. Esses organigramas raramente servem para alguma coisa, mesmo na educação, visto não fornecerem o crucial, a compreensão das relações. Mas são considerados indispensáveis, chegando a ser exclusivos, porque o que é fundamental para o pensamento artificial é ter um modelo que se siga, mesmo que não potencie nada, não permita a compreensão de nada, nem resolva nada. O mesmo se diga dos mil e um documentos que se julgam estruturar burocraticamente a atividade nas escolas e que os fiéis acreditam piamente, sem nenhuma evidência para tal, a não ser os produzidos pela sua própria adulteração dos dados, produzir efeitos mágicos nas aprendizagens. Da mesma forma, os governos desdobram-se na reprodução desses modelos artificiais, sem qualquer efeito benéfico que não seja o de produzirem a tal referida deformação dos dados, acabando por inevitavelmente estarem dependentes de algum bom trabalho individual para não darem origem ao desastre. Na verdade, aliás, esses modelos revelam todo o seu poder antes de mais em ambientes totalmente artificiais, como o dos mercados financeiros. Estes, por si, não produzem coisa alguma e falham constantemente não só na compreensão da realidade, como até nas previsões que lhes dizem diretamente respeito, mas quase parece que seria impossível viver sem eles, tal a formatação já obtida do pensamento por tais modelos artificiais, abstratos e especulativos. A subordinação a paradigmas indiscutíveis não ocorre apenas na ciência normal, mas na economia normal, na medicina normal, na educação normal, na política normal, na arte normal e na filosofia normal (à qual, aliás, querem garantir o estatuto de ciência normal, como é característico de uma escolástica).

A vitória da máquina na era moderna, a vitória das redes comerciais proporcionadas pelos meios de transporte, a vitória da eficácia da produção industrial, a vitória da aplicação das inovações técnicas e científicas, tornou-se um modelo para o próprio pensamento que procurava replicar o seu sucesso, eliminando todos os elementos prejudiciais à sua operatividade, por muito que fossem necessários à compreensão. Kant, embora referindo-se porventura mais ao que hoje é habitual chamar senso comum, a acefalia das gentes, sublinha, num famoso opúsculo, o caráter artificial desse pensamento: “Preceitos e fórmulas, instrumentos mecânicos do uso racional ou, antes, do mau uso dos seus dons naturais, são os grilhões de uma menoridade perpétua.” Instrumentos mecânicos assinalam a transformação da inteligência em maquinal. Mas não só. Asseguram uma eterna subserviência, uma negação da própria possibilidade de pensamento autónomo, a não ser talvez o vocacionado para sujeitar os outros, o dos tutores, ou até nem esse, pois mesmo os tutores tendem a reproduzir os modelos já dados. Esse pensamento mecânico, essa inteligência artificial, tornou-se, entretanto, omnipotente. Toda a inovação consiste na mera combinação dos mesmos modelos mecânicos, um pouco como a res extensa cartesiana permitia a mais diversa combinação da mesma suposta realidade homogénea. Todas as soluções apresentadas só são apreciáveis seriamente se forem técnicas e só são técnicas se reproduzirem a eficácia das máquinas. Feyerabend sublinha, com base noutros autores, como os médicos deixaram-se formatar pelos instrumentos, ao ponto de nunca confiarem no seu juízo independente das máquinas, contribuindo isso para uma degradação da medicina que foi camuflada pelos resultados do desenvolvimento social. O mesmo se diga de inúmeras outras áreas. Durante os últimos séculos, pesem embora as reações que podem ter tido algum eco durante algum tempo, mas que acabam por nada alterarem a médio prazo dado o ímpeto imparável da gigantesca vaga técnica, os homens foram anulando, passo a passo, todas as potencialidades alternativas do seu pensamento, a interpretação simbólica, a crítica sistemática, o próprio espírito de sistema, a busca de sentido último da vida e da ação, a imponderabilidade da beleza, para só admitirem os modelos de pensamento inspirados na ou até ditados pela máquina. A inacreditável pobreza de espírito que daqui resultou ainda se agravou ao tomar-se como referência o exequível pelos programas informáticos. Na educação, a progressão foi não só imparável, mas hiperbólica: embora se diga o contrário, eliminou-se toda a promoção de autonomia crítica, toda a hermenêutica não estereotipada (e, em muitos casos, até a estereotipada), toda a criatividade não tutelada. Os adolescentes com sucesso são os que mimetizam ou operam, sem qualquer coragem de afirmar uma tese própria. São condicionados a desenvolver competências, vendo-se a si próprios como peças disponíveis para o tecido produtivo. Os professores reduzem-se a reproduzir os modelos informatizados. Tudo isto preparou o fácil domínio, na educação, como na medicina, no tecido produtivo, na arte, etc., da IA. Se os próprios docentes já não faziam mais do que ecoar os produtos fornecidos digitalmente, produtos até já atrasados e ultrapassados, que resistência poderiam fornecer a produtos digitais bem mais avançados que já não conseguiam acompanhar? Não deixa de ser caricato o entusiasmo de certos docentes pelas ferramentas que os irão substituir, mas, habituados como estão aos modelos de pensamento artificial, como poderiam justificar uma recusa ou até qualquer resistência? E haverá alguma razão para se opor ao triunfo da inteligência artificial quando esta há muito já triunfou na própria mente dos humanos?

Porém, o homem sempre se fez ao fazer. Cada inovação produzida pelo homem tornou-se não só um apoio, não só uma inspiração, mas um modelo para o pensamento, quer isso se traduzisse numa bênção ou numa maldição. Além disso, a maioria da humanidade sempre precisou de modelos normativos que fossem fáceis de seguir, receitas que só houvesse que aplicar, instruções para operar os instrumentos. Para que a massa o pudesse fazer, sempre foram necessários inovadores e replicadores dentro dos estritos quadros fornecidos para obter as soluções. Tudo isso é inerente às sociedades e culturas humanas. Assim, esta defesa de uma inteligência artificial na própria mente humana parece não ser mais que uma banalidade. Não digo que não. A unilateralidade da mentalidade habitual não é nenhuma novidade, nem sequer relativamente à era.

A novidade está na anulação do resto e na eliminação de modelos de real diferenciação. Já foi muitas vezes sublinhado que a dessacralização da nossa era não foi obtida por qualquer superação do homem, ao contrário do desejado por tantos no séc. XIX, até mesmo por aqueles que reconheciam a verdadeira origem de tal dessacralização, mas pelo facto de o homem habitual se ter tornado incapaz de transcendência, até mesmo da que resultava do reconhecimento da sua limitação e impotência, pois remetia para um além inatingível. Uma tal transcendência, na verdade vazia, era, porém, muito importante para que o ser humano não julgasse a sua realidade a totalidade absoluta. O servo da gleba que era esmagado pelo mistério e/ou majestade de uma igreja onde se cumpriam rituais insondáveis com riquezas insuspeitadas e uma língua incompreensível, tinha uma consciência vaga, mas omnipresente, da insuficiência de tudo o que pensava, o que dizia, o que fazia, todas as normas, todos os preceitos, todos os ditados, todas as crenças que estruturavam tudo o que compreendia do mundo, mais não sendo do que proclamações de que muito mais havia que não alcançava. O cidadão do nosso tempo está convencido que nada mais existe senão o que é similar aos negócios com que ocupa o quotidiano, que nada mais existe senão a sua obscenidade e ganância, e tudo se reduz, mesmo na caricatura a que hoje se chama religião, ao cálculo das vantagens e prejuízos, às operações que permitem alcançar resultados tangíveis e ao consumo possível dos produtos dispensados pelo mercado. E o último homem retratado por Nietzsche tem progredido sem cessar a sua lógica de dominação do conjunto do que entende por real. Durante muito tempo, mesmo transmitindo tudo de forma dogmática e acéfala, a educação e a cultura dominantes iam buscar modelos de interpretação, de crítica, de construção de mundos de sentido, de diferenciação pessoal – mesmo que apenas para os destruir, com a sua alarvidade, em estereótipos icónicos. Isso deixava uma nesga da porta para o futuro entreaberta para que alguma consciência fosse capaz de superar a condição a que a queriam submeter, para ser algo mais e poder ser a vítima das deturpações futuras. Assim, sempre a custo, mas sempre de forma regular, era renovada a criação humana, tão necessária para que os futuros coletivos tivessem novas respostas a novas situações. Mas é cada vez menos assim. Todo o processo, atrás referido, de artificialização contemporânea da educação e da cultura caminha no mesmo sentido. Cada suposta inovação educativa é um cancelamento de possibilidades não maquinais de pensamento, cada novo sucesso musical reduz o som a elementos cada vez mais estereotipados, cada nova figura icónica é apenas um reflexo do vazio da massa ou uma caixa-de-ressonância de lugares comuns. O nosso último homem não rejeita apenas o super-homem, já não tem a menor consciência da sua possibilidade ou sequer da possibilidade de qualquer coisa que não os meros interesses, desejos e medos imediatos e mesquinhos que o movem. O último homem tornou-se a realidade toda e não tem qualquer consciência de algo mais para lá dela. As transcendências são-lhe dadas nas prateleiras dos mercados como tudo o resto que, segundo ele, existe. Os modelos de superação são fáceis e acessíveis a toda a gente, vendem-se ou oferecem-se como tremoços e preservativos, e não têm maior valor que eles. O último homem só não atingiu a mais completa felicidade porque ainda não é tudo absolutamente fácil e acessível. É por isso que receberá entusiasticamente o triunfo da IA. Nada nela será diverso da forma como ainda pensa seja o que for e a IA seduz a sua infinda preguiça, permitindo-lhe nem sequer isso ter de pensar. A IA acabará por produzir a superação de que o último homem é visivelmente incapaz e fá-lo-á não produzindo um super-homem artificial, mas um infra-homem sem as limitações que o último homem ainda tinha.

O homem não está a alienar tudo aquilo que lhe era próprio, o pensamento, a criatividade, a produção, o trabalho, a política, etc., numa entidade que lhe é estranha. Não está porque já o fez antes. Todos os resquícios da antiga atividade humana só são ainda cumpridos forçadamente. Mesmo que não surgisse qualquer verdadeira IA, todos eles seriam eliminados, um após outro, como resíduos obsoletos. A entidade estranha invadiu a mente humana e transformou-a, a pouco e pouco, no reverso de si própria, uma monstruosidade artificial onde nem há consciência de contexto, de história, de responsabilidade ou de finalidade que não a satisfação imediata. Mas não é essa consciência que, por exemplo, o movimento ambiental mostra? Não, não é. Os governos fingem tomar consciência ambiental, elegendo apenas um fenómeno entre miríades para tomar medidas; mesmo essas, só são tomadas perante a absoluta evidência dos efeitos já presentes; e, ainda assim, tais medidas são meramente simbólicas, um pouco como as medidas do passado contra a pobreza, tomadas por um punhado de almas pias, enquanto a maioria se mostrava indiferente; por fim, os próprios governos que as tomam e fazem figura de ambientalistas mantêm os seus níveis de produção e de consumo comprando aos outros as sujidades que alegam ter banido. Os ativistas culpam os outros (os pais e avós, os capitalistas, o sistema, os políticos, etc.) e reivindicam energia barata para poderem continuar a manter os seus padrões de consumo. Nas escolas, defende-se o desenvolvimento sustentável e exige-se o recurso exclusivo a ferramentas digitais, sem pensarem um segundo na insustentabilidade da sua criação e em quão nocivos serão os seus componentes, isto para nem referir a eletricidade necessária. Nessas mesmas escolas, os ativistas não se coíbem de usar ar condicionado na menor flutuação da temperatura. E todos falam só de uma determinada sujidade, apenas num aspeto mais visível (o da emissão no consumo e não, por exemplo, na fabricação), ocultando todas as outras que não cessam de crescer e a rapina de cada recanto do planeta para a satisfação do último homem, nem admitindo sequer a possibilidade de uma outra vida bem mais pobre, muito mais contida, muito mais sensata. Alguns dirão que há quem tenha consciência de tudo isto e muito mais. Poderá haver, mas não tem voz sequer para ser ouvida no futuro como as vozes ignoradas do passado. Na profusão dos meios de comunicação, só tem alcance o que se expressa da forma mais esquemática e imediata, e o que reflete e ecoa a indigência intelectual cada vez mais simplificada e reduzida a uma superfície. Os modelos mais complexos e já imitados e distorcidos no passado, são descartados por serem demasiado opacos e espessos para os automatismos do pensamento ainda possíveis. Pouco interessa se a sua compreensão da realidade era mais adequada, a realidade atualmente concebida é aquela que é operável de forma simples, mesmo que as operações sejam feitas usando como conceitos generalidades vagas que correspondem apenas a uma ficção inconsequente. Seja sobre as guerras e o panorama geoestratégico, seja sobre a saúde e as medidas sanitárias, seja sobre as realidades étnicas e as raízes dos diversos comportamentos, seja sobre as crenças religiosas e as receitas ditas espirituais, seja sobre a orientação sexual e a identidade de género, seja sobre os movimentos artísticos e suas manifestações, seja sobre as ideologias políticas e as medidas que delas decorrem, seja sobre os problemas ambientais e a sustentabilidade económica, seja até sobre a investigação científica e as inovações tecnológicas, tudo é tratado no espaço público através de uma pré-catalogação das aparências que nem consegue cumprir as mais elementares regras lógicas da classificação, e depois tagarela-se ilimitadamente sobre esses rótulos absurdos, inviáveis e/ou peliculares como se fossem realidades rigorosamente observadas, nunca se permitindo a mais ínfima consideração da própria realidade, das suas causas, das consequências e dos verdadeiros contextos.

Poder-se-á dizer que sempre assim foi, a tagarelice sobre os lugares-comuns, as novidades, os conceitos na moda, o quotidiano, sempre foi uma característica da existência inautêntica das gentes. Porém, noutras eras, sempre se ouviam ou acabavam por se ouvir mais tarde vozes que se impunham como mais penetrantes, capazes de ir para lá do véu da incompreensão pública e académica, capazes de chegar a fontes e de iluminar de sentido o caos da dita cultura coletiva. É natural que continuem a existir, mas não é possível ouvi-las, silenciadas pela profusão de ruído que apenas ecoa as platitudes sem sentido que, devido à familiaridade, se consideram evidências sem qualquer questionação. Os trabalhos académicos sempre foram redutores, rígidos, deformadores, redundantes, palavrosos sem dizer palavra alguma que merecesse ser dita – mas eram feitos, muitas vezes, relativamente a autores, a obras, a investigações que tinham permitido ir além do discurso pelicular. Agora, são cada vez mais feitos com base nas próprias conceções peliculares por já não existir noção de poder existir algo mais, investiga-se com base em noções absurdas, contraditórias e, como estão generalizadas, nem por um momento se admite a possibilidade de poderem não corresponder a qualquer realidade. Tudo se agrava mais num país como o meu na medida em que, cada vez mais, apenas imita a superpotência técnica por excelência, um país que durante muitas décadas não fazia mais que parasitar culturalmente a Europa que tendia a compreender muito mal por ser dificilmente compatível com a grosseira simplificação de tudo que operava em correspondência com a redução do mundo ao negócio realizada na própria linguagem, na verdade até na própria língua, mas que é agora, cada vez mais, a única fonte considerada aceitável de pensamento, investigação e criatividade – à qual se juntam, naturalmente, todos os seguidores de outras partes, reconstituindo, a pouco e pouco, a ilusão de uma diversidade que já não existe. Assim, por toda a parte se reproduzem as suas classificações políticas, psiquiátricas, artísticas, filosóficas, literárias, morais, etc., sem capacidade de equacionar outras distinções, dilemas e alternativas que não as produzidas no Império. É verdade que isso apenas replica o que acontecia no passado com outros Impérios, mas a cultura que destes provinha estava longe de ser a comida rápida nociva que é fornecida pelo atual.

No meu país, logo a seguir ao período revolucionário de 74/75, onde o mais completo descontrolo tendeu a imperar momentaneamente no sistema educativo, seguiu-se um período de rápida estabilização, mas com níveis de exigência muito inferiores aos anteriores. Justificou-se tal situação com a democratização do ensino que, na verdade, já tinha começado um pouco antes, considerando que era inevitável a descida dos padrões de exigência quando se pretendia uma generalização do ensino que não existiria antes. Sem dúvida. Porém, se o argumento fosse consequente, tal seria um aspeto da democratização a ser superado, alcançando, gradualmente, um ensino de melhor qualidade. Os nossos políticos muitas vezes fazem declarações em que parecem crer que foi isto que se passou, mas não creio que sequer eles, a não ser que sejam mentecaptos (e só alguns o são), possam acreditar nessas declarações. Adotando exatamente modelo norte-americano após modelo norte-americano, cada vez mais redutores em termos técnicos, até o ponto de já se poder usar modelos de outras paragens, pois já todo o mundo ocidental seguia os modelos norte-americanos, apesar da deterioração cultural cada vez maior observável nos próprios cidadãos norte-americanos, as exigências educativas foram se reduzindo cada vez mais, não só nos conteúdos, mas nos próprios processos de aprendizagem e de pensamento, cada vez mais incapazes da mais ínfima subtileza ou compreensão aprofundada, e reduzidos a uma cada vez maior e ostensiva mecanização, contraditória, aliás, sempre com aquilo que se declarava estar a fazer.  Essa redução atingiu, recentemente, a forma das “Definições das Aprendizagens Essenciais” e é óbvio que o objetivo que elas procuram atingir ainda não está plenamente atingido, pois ainda há muitas resistências disciplinares a que seja operada a simplificação desejada pelos políticos e pedagogos. Entretanto, alega-se que isso é feito para possibilitar que se realize a verdadeira educação, simultaneamente transversal e diferenciadora, e, na verdade, há pressões entre os progressistas que mesmo as exigências disciplinares das DAE sejam ignoradas ou menorizadas. Assim, de facto, consegue-se, enfim, superar a mecanização acima referida, mas como? Não é necessária qualquer mecanização se já nada existir para aprender. Claro que não é isso que é dito, mas há sempre um abismo entre o que é dito e o que é feito, e o que é dito nunca é o que se pretendeu fazer, nem agora, nem nunca. A alegada autoconstrução do conhecimento pelo aluno é uma pura e simples mentira enquanto declaração geral. Aliás, já nem é isso que se defende por se ter passado a considerar negativo qualquer conhecimento como mero conhecimento. Tudo é camuflado numa linguagem retórica gongórica em que se concede o primado a umas misteriosas e mágicas competências transversais que não correspondem a qualquer conhecimento disciplinar. Mas o que, de facto, ocorre na maioria dos casos é que se hiperboliza o valor dos resultados de projetos que consistem em simples cópias mal feitas. Com honrosas exceções, a maioria do que se produz para realizar a aprendizagem das chamadas competências transversais é de muito pior qualidade que o que se produz com a tradicional mecanização e ainda é mais mecânico e acéfalo. Pior ainda, a tendência, já evidente em anteriores experiências e correspondente ao ensinar da e para a vida, publicitado pelas redes sociais como devendo ser o que deveria ser ensinado nas escolas, reduz a aprendizagem à reiteração do que já se sabe coletivo, uma mera replicação do popular e generalizado, e que os alunos já saberiam antes ou acabariam por saber de outra forma. Assim, a escola é reduzida a um sítio em que as crianças se podem encontrar para continuar a tagarelice superficial que já domina o ambiente público. No passado, replicavam-se os ambientes populares e mediáticos para, supostamente, chegar à vida dos alunos, levando-os, depois, a aprender os conteúdos. Agora, essa replicação tornou-se um fim em si e a escola só serve para ecoar a vozearia pública. Longe de se formar o cidadão informado, deforma-se o indivíduo na conformação ao coletivo e é nesse ambiente propício que prolifera a colheita dos grunhos com certificação. Quanto à visada diferenciação da aprendizagem, pode-se sempre considerar que ela é atingida se, como na cultura popular, qualquer disparate sem nexo é objeto de sucesso, como os vídeos do TikTok ou as ditas músicas populares.

Não vou aqui tratar das razões porque isso está a acontecer, embora as razões sejam fáceis de identificar e se possam fazer remontar à crítica platónica da democracia e da sua busca de sucesso através da lisonja do povo. Também não vou abordar as consequências terrivelmente nocivas destas orientações que acabarão por se virar contra aqueles mesmos que se visava agradar (o que é, aliás, o que costuma acontecer quando apenas se tem como objetivo o agrado). Escrevo sobre isso noutros artigos. O que me interessa é mostrar que toda a progressão foi no sentido de reduzir a um esqueleto elementar as aprendizagens que, aliás, continuam ainda a ser assimiladas da mesma forma mecânica na maioria dos casos, e que ainda isso parece aos progressistas demasiado complexo, defendendo uma anulação final de toda a aprendizagem que não seja a da reprodução de todo o ambiente social. Longe de esse processo ter permitido níveis de exigência superior aos do período pós-revolucionário, assim como o desenvolvimento da autonomia e do espírito crítico, os resultados são confrangentes e não passam de uma vaga sombra dos anteriores, muito embora sejam ocultados por um sucesso sistematicamente forjado. Esse processo torna muito fácil o desenvolvimento da chamada IA porque, mesmo programas de qualidade muito pobre, conseguem fazer mais e melhor do que o elementar pensamento artificial a que a educação humana está reduzida e a substituição desta por programas de ensino tornar-se-á natural por os professores nada fornecerem de melhor e o recurso à IA se corresponder de forma muito mais eficaz à tendência cada vez maior para a preguiça longamente estimulada na sociedade e na escola.

Poder-se-á pensar que algumas referências feitas anteriormente ao nível de abordagem vago da linguagem contemporânea, tornada a única audível, se caracterizam elas próprias pela sua vagueza. Isso é inevitável tendo em conta a vastidão que se procurava englobar. Posso, porém, dar um exemplo muito elucidativo. Um texto que uso para os alunos fazerem a distinção entre juízos de facto e juízos de valor parece-me esclarecedor: “De acordo com a comunicação social ocidental, as guerrilhas iraquiana, afegã e palestiniana são terroristas. Na Síria, umas eram considerados terroristas, outras forças rebeldes. Mas para o regime sírio ou para os russos, eram todos terroristas. No Estado Novo, os movimentos de libertação das colónias eram terroristas. Os grupos de guerrilha norte-americanos ou israelitas durante as respetivas guerras de independência ou a resistência francesa durante a 2ª Guerra Mundial, tendo feito exatamente o mesmo, são qualificados como heroicos. Nos órgãos de comunicação social de alguns países islâmicos, os bombistas suicidas árabes são qualificados de mártires. Muitas são as vítimas que acusam de terrorismo de Estado os bombardeamentos russos, norte-americanos, israelitas ou sauditas, entre outros. Isso evidencia que tais qualificações são valorativas e não factuais. A utilização de tal terminologia é por si só propagandística. Alguém fazer explodir outras pessoas é o que é, seja feito por quem quer que seja, por que motivo seja ou por que meios for feito. Herói, mártir ou terrorista, só depende do lado da barreira que o afirma.” Reparar-se-á que o próprio texto contém a chave para identificar os juízos de facto e os juízos de valor. Apesar disso, inúmeros alunos falham, ao menos parcialmente a identificação. Curiosamente, acertam mais em relação às qualificações “herói”, “mártir” e até “rebelde” do que em relação a “terrorista”. Porquê? Os jornalistas usam, sistematicamente, o termo como se fosse uma descrição factual. A ONU tem até definições, supostamente, objetivas do termo. Ainda agora vi uma amiga comunista a partilhar um post onde se defendia que resistência não é terrorismo, referindo-se à causa palestiniana. Ou seja, mesmo quem discorda das qualificações feitas por jornalistas, por políticos ou por Estados, mesmo tendo formação filosófica, não deixa o âmbito de formulação em que é colocada a abordagem. Todos se referem, no âmbito dos media, de um lado e de outro de cada conflito, a “terrorista” como se fosse a nomeação de uma realidade, como se descrevesse uma coisa que aí está disposta objetivamente entre as outras coisas do mundo. Ora, o que se diz ao se usar o termo “terrorista”? Os defensores da objetividade do termo procuram superar a sua manifesta subjetividade ou relatividade defendendo que se refere a um ato que tem a intenção de provocar terror. Nem reparam que supor uma intenção acaba por ainda ser mais duvidoso que a alternativa subjetiva. Na verdade, cada qual que usa a palavra usa-a por considerar que o ato em causa lhe provoca terror – e já não usa a palavra se se trata das ações de um grupo que considera legítimo por estar, por exemplo, a lutar contra um opressor, preferindo as outras palavras referidas, rebelde, herói ou mártir, mesmo que esse grupo tivesse a intenção de provocar terror. Trata-se pois de um puro juízo de valor, um juízo que diz mais como o sujeito se sente afetado pelo objeto do que descreve o objeto ou narra uma ocorrência. Ainda aí, pode entrar alguém que defenda que os juízos de valor podem ser objetivos. Na verdade, é uma discussão legítima se alguns juízos de valor podem ter algum tipo de legitimação universal e outros não, mas isso não altera o facto de se referirem a uma apreciação subjetiva que diz mais sobre o sujeito do que sobre o objeto. Eu posso ter boas razões para considerar um ato bom, mas dizer que ele é bom não descreve ou narra em nada o ato. A legitimação objetiva da minha apreciação, se existe, não altera a classificação do tipo de juízo. Ora, apesar de todos os anos fazer esta abordagem da noção, dada a forma todo-poderosa como o discurso público impera sobre as consciências, tenho a certeza que muito poucos (se é que algum) dos meus alunos deixaram de usar a palavra terrorista como se fosse um termo da ordem factual. Tenho e sempre tive consciência de estar a lutar contra a maré, mas fá-lo-ei enquanto me restar alguma consciência.

            Poderia prosseguir ilimitadamente a dar exemplos, alguns bem mais complexos de explicar, de como o discurso patente, aparentemente transparente, que domina o falar público desde a rua ao laboratório, passando pelo media, é sistematicamente velador até da sua falta de sentido, mas ainda mais da indagação das causas, dos pressupostos e do contexto. Toda a estruturação do discurso público, de todo o discurso que é admitido e ouvido publicamente, depende de noções que não são examinadas, que se consideram muito naturais e evidentes e que nem sequer congruentes são, e, depois, todos os debates já ocorrem com base nessas noções ou pseudonoções (pois algumas nem significado têm), dando origem a uma discussão pelicular em que ninguém se atreve a pôr em causa a própria linguagem. Se acaso algumas noções são alvo de ataque, como, por exemplo, na noção de género, ainda aí não se questiona se é uma noção que faça sentido, mas a sua aplicação, conforme cada ideologia. Nada é examinado com detalhe, nada é submetido a verdadeira crítica, as causas são confundidas com os sintomas, o fenómeno é considerado a coisa em si. Qualquer tentativa de ir para lá disto é ignorada porque remete para uma indagação que o discurso pelicular considera confusa por não se corresponder à linguagem familiar. Ora, esta imensa simplificação do pensamento que torna tão fácil o domínio da IA corresponde à omnipotente omnipresença sem alternativa da gente. E as aplicações a que se chamam agora IA (já chamavam IA a outras coisas antes, mas o pessoal, para variar, já esqueceu esse facto) parecem ser, não mais, nem menos, que um reflexo informático dessa mesma gente. Usa como fontes os sites disponíveis livremente na internet que são, muitas vezes, produzidos pelos contributos dispersos dos mais diversos indivíduos. Muitas vezes esses contributos já são cópia da cópia da cópia, com as eventuais deformações que poderão ocorrer. Depois, vai “aprendendo” com as próprias reações dos usuários, independentemente de qualquer saber que possa ser aferido. Pelo menos por enquanto, estas IA parecem o resultado da nuvem informática e apenas realizam a gente, pela primeira vez, como uma aparência de uma verdadeira mente. Se a gente é o infra-homem, estas IA são uma espécie de super-infra-homem. Acho que há razões para as temer, mas como potenciação de algo que sempre foi temível, até por já ter reduzido todo o discurso público a si: a gente. À medida que se for aperfeiçoando, esta super-gente poderá, de facto, substituir a gente que se tornará irrelevante, inútil, obsolescente. Nessa altura, porquê manter essa gente absolutamente indolente a viver? E tendo a mesma natureza da gente, admitirá sequer a possibilidade da pessoa? E será essa superação verdadeiramente má, tendo em conta a pouca inteligência artificial própria da gente? Deixo estas perguntas sem resposta.

26.1.24

Sob o signo da morte de Deus - II

 

(Adaptado de texto do início de 2019)

A abordagem filosófica mais superficial da questão religiosa é a das provas da existência ou inexistência de Deus, ou seja, dos argumentos elaborados para sustentar diretamente cada uma das teses. Apesar desta superficialidade, cara à abordagem analítica, existem componentes ontológicos destas provas muito interessantes para qualquer pensamento que intente indagar o fundamento da realidade. De facto, embora tenha afirmado e reafirmado, repetidamente, o meu ateísmo, também me pronunciei, com significativas restrições, favoravelmente a aspetos dos argumentos cosmológico e ontológico. Isto indiciará que o meu ateísmo não será dos mais habituais, pois os agnósticos e ateus não genealógicos adotam, invariavelmente, como estratégia, a rejeição de qualquer tipo de validade às provas teístas e deístas. O mesmo, aliás, é feito pelo fideísmo. Além disso, não partilho a indiferença habitual do ateísmo prático, não defendo um nominalismo que rejeitasse significado à própria ideia de Deus por falta de referência empírica, não considero que a metafísica tenha morrido e que já não haja qualquer sentido para qualquer reflexão metafísica. Pelo contrário, é sobretudo a partir do ponto de vista da reflexão metafísica que coloco o problema. Por outro lado, não considero que faça sentido considerar a noção de Deus a não ser pelo menos no âmbito de uma conceção abstratamente teísta. Em Deus, é pensado um indivíduo, mesmo que universal e infinito, com vontade e entendimento, em relação com o mundo, para o qual tem algum tipo de desígnio. Outras variações (criação num momento ou eterna, causa final ou causa eficiente, transcendente ou imanente, etc.) podem ser comportáveis na noção de Deus. Admito que existam algumas conceções deístas que se aproximem de uma conceção teísta, personificando de algum modo Deus, por exemplo, através da admissão de um desígnio original. Porém, qualquer conceção deísta que anule toda a personificação ou qualquer conceção panteísta que o reduza a uma entidade abstrata global só guardam de Deus o nome, sem que se veja por que razão não preferiram outra palavra para designar o princípio geral de toda a realidade, pois já não pensam neste qualquer individualização ou personificação. Quanto ao fideísmo que só admita, como acesso único ao divino, a fé, não me parece que seja relevante considerá-lo num âmbito argumentativo, a não ser como corolário final de uma resposta cética ou como variação extrema da exigência teísta de fé. 

Na fronteira entre o fideísmo e a argumentação pura, existem diversas tentativas de pretensas provas empíricas que, na verdade, associam sempre uma componente de suposta verificação empírica a sustentações argumentativas e interpretativas. Considero todos esses argumentos extremamente fracos, na verdade sempre supondo o que afirmam por mero ato de fé, o que é autossuficiente e, como tal, não requer qualquer argumentação. Aliás, existe uma forte tradição teológica que equipara as diversas revelações à parte empírica da religião e que pretende que elas constituam provas empíricas por si, tal como aquelas que qualquer um pode ter na sua experiência habitual. Ora, como é evidente, a possibilidade de considerar um dado evidência empírica depende da possibilidade de repetição da experiência por qualquer um em qualquer lado, o que exatamente está vedado ao comum dos humanos nas alegadas experiências de revelação. Assim, já aqui, há um elemento argumentativo falacioso, o da equiparação com a experiência comum, que ignora uma das condições mais essenciais para a satisfação das exigências experimentais, tudo fazendo depender, ao contrário, de testemunhos extraordinários. Na verdade, a aceitação de tal argumentação levaria a ter de se aceitar a mais disparatada das patranhas, legitimando a tão humana tendência para a fabricação e a pura e simples mentira, quando não para o delírio e para a alucinação. Exatamente devido a esta fragilidade das experiências extraordinárias, seguindo a mesma busca de sustentação empírica, surgiu a pretensão de provar a existência de Deus, independentemente de quaisquer considerações racionais, por um “sentimento”. Neste sentido, pretendia-se que assim como se provam as existências sensíveis, também se sentiria sempre e por todos o próprio Deus. De certa forma, as conceções fideístas sustentavam algo similar a esta prova, visto a fé ser do domínio afetivo e a única forma de aceder a Deus segundo o fideísmo. Porém, aí, sustentam esse acesso a nível pessoal, ao passo que esta “prova” defende um “sentido” universal. Isso corresponde ao sensus divinatis de Calvino (muito embora se possa encontrar noções precursoras, nomeadamente em Aquino). Poderia parecer uma conceção anacrónica, mas, na verdade, tem vindo a ser sustentada, ao longo dos séculos, sobretudo nas tradições calvinistas (muito embora haja outros casos, incluindo teólogos católicos). Mostrando como a suposta filosofia da religião norte-americana não passa muitas vezes de teologia dogmática camuflada, essa “prova” também foi sustentada pela filosofia analítica recente, com a argumentação adicional de que o habitual não reconhecimento desse “sentido” por todas as pessoas se deveria aos efeitos noéticos do pecado. O caráter falacioso deste argumento é tão grosseiro que quase dá vontade de o passar em silêncio. Trata-se de um caso extremo da rejeição de qualquer refutação empírica, pois qualquer ocorrência em contrário poderá ser interpretada como decorrente da distorção provocada pelo pecado. Claro, está decidido à partida que os fiéis seriam os justos, o que é de uma arrogância desmedida, nem admitindo sequer a possibilidade dessa mesma distorção pelo pecado poder dar origem à própria crença nesse tal sentimento.

Uma outra suposta prova do mesmo género, mas um pouco mais indireta, é a pretensão de provar a existência de Deus pela universalidade da sua crença na história do homem. Muito comum no passado, à medida que se foram conhecendo outras tradições, levaram a uma interpretação, cada vez mais forçada, das mais diversas conceções dos mais diversos povos, no sentido de ver uma preconceção da divindade nos povos primitivos e uma conceção deturpada ou degenerada noutros. Newton, por exemplo, defendia que todas as religiões derivariam da religião adâmica, não passando a diversidade das crenças de distorções da religião original. Naturalmente, trata-se de uma argumentação muito defeituosa, dependente de uma interpretação que supõe aquilo exatamente que haveria a provar, que todas as tradições culturais teriam na sua base a crença no Deus único. Esta suposta prova tornou-se muito difícil de defender, devido a uma menor ignorância atual acerca da diversidade das crenças. Existem, porém, outros argumentos baseados na história e na tradição, supondo já sempre a fé numa tradição e adicionando-lhe este ou aquele componente, até argumentos de ordem estética. Lembro-me de um suposto filósofo analítico, na verdade um teólogo dogmático, que alegava não ser possível uma história mais bela e empolgante do que a da Encarnação. Ora, poderia recomendar-lhe ler O Senhor dos Anéis que está escrito na sua língua, assim como muitas outras histórias fantásticas, que, para além de serem esteticamente superiores, têm a vantagem de conterem muito menos absurdos. É difícil, aliás, debater com crentes que calam de tal forma a sua razão que podem com facilidade defender os argumentos mais insustentáveis, como a unidade e consistência absoluta da Bíblia que provaria a existência de um único verdadeiro autor transcendente, ou a total racionalidade de tudo quanto foi revelado. De facto, a fé afirma-se muitas vezes racional, quando na verdade tem como único suporte a própria fé. Ora, a fé é um puro ato de vontade que não requer nada que não uma adesão afetiva, sem necessidade de qualquer argumento. Costumo dizer que para crer basta querer, mas tenho reparado que uma tal declaração, tão evidente que poderia ser tomada como axioma, tem reiteradamente provocado a ira dos crentes. Os crentes querem em geral que haja, para a sua crença, uma sustentação superior à sua mera vontade subjetiva. Mas isso mesmo reitera o alegado axioma, pois mais não mostra senão uma crença adicional igualmente alicerçada na vontade.

Uma última variante das tentativas de sustentação empírica da existência de Deus é a existência, na nossa consciência, da lei moral. A estrutura do argumento é similar aos anteriores, mas com recurso a uma primeira justificação causal. Toda a gente teria consciência moral. A consciência moral seria uma espécie de marca do criador no criado. Logo, é um efeito que remete para a causa, um pouco como a prova causal com base na ideia de Deus de Descartes. O primeiro defeito do argumento está logo na primeira premissa: nem todos têm consciência moral, como se pode verificar nos psicopatas. Estranhamente, Kant que rejeitou todas as pretensas demonstrações da existência de Deus, apenas admitindo que, do ponto de vista prático, se possa sustentar que há crenças mais racionais do que outras (os postulados), acabou por dar um argumento adicional a esta via. Na verdade, Kant constata a lei moral como um facto da razão, o único facto da razão que atesta a liberdade, visto ser constituída unicamente por uma aspiração incondicionada que escapa à determinação empírica. Ora, mesmo um psicopata tem a mesma razão, a mesma faculdade de raciocinar. Embora possa escolher nunca seguir a determinação da razão, o critério formal da razão, a sua forma universal, está sempre disponível no seu pensamento. Mas porque razão isso poderia constituir uma marca deixada pelo próprio Deus? Naturalmente, Kant não poderia aceitar tal raciocínio, visto a causalidade apenas poder ser determinante no âmbito fenoménico. Aqui, estaríamos perante um uso transcendente da categoria. Porém, o incondicionado presente na lei moral aspira ao cumprimento segundo um critério que, se fosse considerado como substância, corresponderia exatamente ao representado na ideia de Deus, o absolutamente incondicionado. Aqueles que procuram dar a este argumento um teor demonstrativo falham, porém, exatamente no mesmo ponto que falham os argumentos cosmológico e ontológico. Mas esse é o teor essencial deste artigo e deixá-lo-ei para mais tarde. Ainda antes disso, a maior fraqueza do argumento é a mesma que a do argumento cartesiano, a defesa da impossibilidade do nosso espírito ser a causa da ideia de Deus ou da lei moral. Ora, quer na ideia de Deus, quer na lei moral estritamente formal, apenas se encontra presente o resultado de uma elementar operação formal. Como sublinhava Hume, os únicos conteúdos da ideia de Deus são as capacidades humanas que internamente podemos experienciar. Porém, todas elas, entendimento, previsão, poder, bondade, presença, etc., são limitadas. Basta colocar uma negação nessa limitação para ter Deus. Ora, por acaso Descartes consideraria inacessível ao espírito humano o ato de negar? Na verdade, seguindo o próprio Descartes, se negar é um ato não do entendimento, mas da vontade, nem mesmo seria requerido grande entendimento da ideia assim produzida. É fácil ver que a lei moral é determinada de igual modo, negando as condições, os limites. Só que a ligação a Deus é ainda mais indireta, pois a moralidade estabelece um critério incondicionado na ação e não se refere diretamente a um ser incondicionado.

Quanto à pretensão contemporânea de encontrar vias obscuras de sustentação de crenças como a abertura a Deus pela ética em Levinas, por muito que haja momentos interessantes no seu pensamento, constitui uma eloquente evidenciação de como a distorção de escolas de pensamento, como a fenomenologia ou a hermenêutica, pela fé se destina apenas a, através da opacidade do discurso, poder defender todo e qualquer disparate. Embora este tipo de velamento discursivo, que permite depois que se possa apresentar como desvelamento seja o que for, constitua uma forma de dar razão ao rigor da filosofia analítica, importa lembrar que esta também foi parasitada com os mesmos intuitos pelos homens de fé. Plantinga usa tanto os meios da filosofia analítica para defender os maiores disparates da sua fé, quanto Levinas ou Ricoeur usam os meios da fenomenologia ou da hermenêutica. Qualquer escola de pensamento com algum sucesso atrai sempre um número indeterminado de soldados da fé cujo desígnio único é tentar apropriar-se da nova escola para a pôr ao serviço da sua fé. Não têm a menor preocupação de procura isenta da verdade, de desbravamento de novos caminhos ou de criação de pensamento verdadeiramente inovador, o seu único objetivo está decidido à partida, o de encontrar uma brecha para conseguir restaurar a apologia da sua velha doutrina. Muito rapidamente, o rosto alheio tem, de facto, para a nossa consciência, uma função simbólica, posso mesmo dizer que é o símbolo por excelência de abertura ao infinito, uma abertura que rompe com a totalidade fechada do sistema. Mas considerar, depois, que é o próprio infinito que tem rosto revela apenas uma imaginação inconsistente que não se coíbe nas mais grosseiras irracionalidades. Ter rosto e ser infinito são conceitos incompatíveis a não ser para quem quer restaurar a subordinação a uma fantasia alucinada. Qualquer psicótico pode pretender que a sua alucinação seja um ensinamento do além, mas não há qualquer razão para a filosofia considerar com seriedade tais absurdos que se procuram ocultar por trás de uma linguagem propositadamente camufladora do seu teor patente. Mas uma consideração mais detida destas vias recentes deverá ser feita noutro artigo desta série.

Passando agora para os argumentos mais fortes, começo por salientar que todas as versões do argumento teleológico, muito diversificadas até de acordo com as teorias consideradas científicas em cada época, desde as esferas concêntricas e a teoria do lugar natural de Aristóteles até à recente teoria do big-bang, inspiradora do argumento do fine-tuning, passando pela teoria da gravitação universal de Newton, a harmonia de Leibniz, a investigação teleológica dos organismos vivos, etc., acabam sempre por estabelecer uma analogia entre as obras humanas e a autoria suposta em todas essas ordens. Ora, ao contrário do que muitos chegaram a defender no passado, a analogia, sendo um argumento informal, podendo ser muito útil para orientar a nossa vida e até a investigação, não tem propriedades demonstrativas. Por muito rigorosa que seja a analogia, estabelecida com base em grande número de semelhanças relevantes e verdadeiras, a conclusão pode vir a verificar-se falsa. Se se aceitasse que os argumentos analógicos fossem demonstrativos, atrevo-me a dizer que não haveria nada que não pudesse ser provado. Com facilidade, se encontraria uma semelhança estrutural que se poderia acreditar ser relevante, para defender seja o que for. Logo, existe uma fragilidade argumentativa de raiz nestes argumentos que não ocorre nos argumentos cosmológico e ontológico. Por outro lado, onde estes últimos acabam por falhar é onde os argumentos teleológicos mais resistem.

Os argumentos cosmológicos causais são, porventura, a forma mais intuitiva de defesa da existência de Deus. O mais completo analfabeto pode argumentar que isto tudo tem de ter vindo de alguma coisa, ou de alguma causa, ou ter alguma origem. A estrutura do argumento é muito elementar. Tudo no mundo tem de ter alguma causa. Logo, o próprio mundo tem de ter uma causa. Mas, se essa causa tiver, por sua vez, uma causa, então entraríamos numa regressão infinita. Mas não é possível uma regressão infinita. Logo, tem de haver uma causa primeira. Considero que as objeções ao argumento são, frequentemente, mal pensadas. Porém, uma primeira estratégia e talvez a melhor pensada é negar a própria possibilidade de argumentos causais demonstrativos. É conhecida a crítica de Hume à noção de causalidade. Hume reconhece que todas as nossas conclusões acerca da realidade se baseiam no princípio de causalidade entendido como princípio de associação de ideias. Porém, tal princípio quando visa descobrir conexões necessárias na própria realidade não tem justificação racional, nem empírica objetiva. Ao contrário, resulta de uma expectativa interna, uma propensão instintiva que é ativada pela repetição de sucessões de impressões semelhantes. No entanto, o hábito não explica os raciocínios causais negativos que não resultam de qualquer repetição. Se a água de um fervedor colocado ao lume, em vez de ferver, gelar, eu não concluo que o fenómeno não tem causa, mas sim que não sei qual a causa. Se investigar o assunto e continuar a não encontrar um fenómeno que explique a ocorrência, acabarei por reconhecer não conseguir descobrir a causa, mas nunca concluirei que o fenómeno não tem causa. Se avançar com hipóteses acerca do estranho fenómeno, bruxas, demónios, extraterrestres, alucinações, etc., serão sempre tão só e apenas hipóteses causais. Por outro lado, embora não seja grande argumento (a associação deveria ser com a presença ou não do sol), é sabido como Reid caricaturou a redução da causalidade ao hábito na sucessão entre dia e noite. Mesmo não sendo bom o exemplo, com facilidade se poderia argumentar com outros exemplos (assim, aliás, se estabelecem correlações causais supersticiosas – maus olhados, astrologia, etc. –, consideradas normalmente infundadas, mas que poderiam ser sustentadas pelo hábito e, assim, ter tanta legitimidade quanto a causalidade considerada científica). Ou seja, o princípio de causalidade é aceite porque não conseguimos pensar a realidade senão com ele, muito embora não se possa descobrir a realidade só com ele. Considerar que a sua base é instintiva é perfeitamente concordante com o facto de nos parecer indispensável. Aliás, pergunto-me se a validade dos princípios formais como o da não contradição não radica exatamente no mesmo facto, não conseguirmos pensar de outra forma. Mas pensar tudo de forma causal não significa descobrir, seja o que for, por mera demonstração causal. O princípio é, na minha opinião, formal, mas vazio, não transpondo de todo a sua necessidade formal para as aplicações empíricas. Não garante resultados apodícticos na ciência da natureza, como Kant pretendia no uso fenoménico. Encadeados pelo ataque kantiano ao dogmatismo da metafísica especulativa, os comentadores nem reparam que a sua metafísica da ciência da natureza era também dogmática, tentando fundamentar a priori conhecimentos necessários que corresponderiam à física newtoniana. Já na altura se poderia ter identificado tal dogmatismo, mas não sei como ele não se tornou evidente após a refutação de boa parte dessa física que supostamente deveria ter uma certeza apodítica e uma verdade necessária.

Regressando à causalidade, para negar a formalidade vazia deste princípio, seria necessário mostrar que algo poderia vir do nada. Eu posso não saber o que deu origem a algo, mas não posso conceber que algo surja do nada porque o nada não pode ter quaisquer características capazes de dar origem a algo. Tão-pouco se torneia tal evidência, referindo este princípio, o de nada poder vir do nada, à substância e não à causalidade, pois não são de todo duas questões diversas, mas apenas aspetos diversos do problema ontológico. Mas mesmo considerando-as separadas, eu posso admitir que algo dê origem a uma coisa diversa, mesmo que seja mera aparência, através de poderes inerentes aos seus predicados; não posso, ao contrário, admitir que algo provenha do que não tem nem poderes, nem predicados, nem ser, o que é a limitação, no pensamento, própria da noção de causalidade. Suspendendo por agora esta questão, todos os diversos detratores da causalidade que se foram sucedendo mais não fizeram que aproveitar a limitação kantiana para pretender que só se poderia aplicar a causalidade ao âmbito fenoménico, acabando sempre, porém, por não poder deixar de pensar causalmente o âmbito que supunham escapar à determinação causal por não ser empírico, seja referindo a possibilidade de uma causalidade pela liberdade, a tese da vontade universal como origem (em vez de causa) das vontades individuais fragmentadas, a atribuição ao ser de um destino ou até a espontaneidade da consciência, apenas protegida do pensamento causal através da suspensão de juízo que impedia a indagação da causa. Tal ignorância da causa da espontaneidade da consciência foi transformada, depois, na absurdidade de uma aparente causalidade (embora assim não chamada) a partir do nada, mas apenas por uma gigantesca falácia do apelo à ignorância, transformando o não conhecimento da causa da espontaneidade da consciência numa pseudocategoria ontológica, o nada. Aqui, como em tantos outros assuntos, existe uma constante e, por vezes, intencional confusão entre a ordem do ser e a do conhecer. Para conhecer, tenho de estabelecer uma correspondência adequada entre o enunciado e o objeto. Essa correspondência é sempre precária porque eu não domino o objeto, mesmo que o objeto seja eu próprio, e o objeto poderá vir sempre a mostrar uma face antes não desvelada que revela a inadequação do que antes julgava certo. Isso pode ocorrer pela experiência, pela reinterpretação dos dados e pela reinterpretação que leva a novas experiências. A limitação do conhecimento é insuperável e cada nova superação apenas coloca esse limite noutro sítio. Ora, a realidade é, por isso mesmo, inacessível em absoluto, mas há algo que posso garantir, independentemente de todas as vicissitudes do conhecimento, é que só posso considerar o ser que posso pensar. Se nada do que ocorre é pensável se não causalmente, pretender que algo não pode ser determinado causalmente visto não termos meios de o conhecer causalmente (a não ser de forma imprópria), é entrar em contradição com o próprio pensamento. Ou será ilegítimo perguntar pela causa daquilo cuja causa desconheço? Não se trata apenas de o poder fazer, eu não consigo pensar que algo não tenha causa. Mesmo uma entidade eterna que não tivesse sido causada por outra coisa, se não barrar a marcha do pensamento, devo me perguntar a que se deve tal eternidade. E isso significa que, ainda aí, estou a pensar causalmente.

Mas isso não impede que se possa admitir uma causa primeira, ou seja, uma causa incausada? Em primeiro lugar, o que se afirma ao afirmar uma causa primeira é que se trata de algo que não é causado por outra coisa – daí, aliás, o conceito tradicional de causa sui. Em segundo lugar, é exatamente essa diferença em relação a tudo o resto que implica a exigência de que só possa ser causa primeira um ser máximo. Admitindo que seja necessária uma causa primeira, porque não várias ou causas de uma ordem inferior à divina (o que constitui uma objeção comum e bastante menos pensada)? É exatamente o caráter único do ente perfeito, transcendente à ordem sensível, onde tudo é causado por outra coisa, que permite pensar uma causa primeira. Se fosse algo condicionado, como ocorreria com a concorrência entre várias causas, não haveria razão para não ser causado por outra coisa. A própria possibilidade extraordinária de uma causa que possa não ser causada por outra coisa é que exige que nada possa ser essa causa primeira senão um ser máximo, incondicionado, não sujeito a qualquer limitação, nem sequer a limitação da sua existência (contingência).

Por outro lado, há ainda uma objeção que consegue ser menos pensada porque não consegue ir para lá da mera declaração numa proposição, não intentando articular o pensamento para lá disso. É a tal indigência de pensamento que Leibniz chamava filosofia de noções incompletas e outros mimos do mesmo género. O argumento cosmológico afirma que, se não existisse uma primeira causa, também não poderiam existir qualquer dos seus efeitos. E, assim, as cadeias causais não podem regredir infinitamente. Ora, os defensores da objeção que se irá agora considerar, consideram que uma cadeia causal que regride infinitamente não tem, por definição, uma causa primeira. Portanto, concluem que, se não existir causa primeira, os efeitos da cadeia causal não deixam de existir. A objeção inclui, de facto, uma disfarçada petição de princípio. Embora se refira à definição, já supõe que o conceito de uma cadeia causal que regride infinitamente é algo que pode existir, que é o que é posto em questão, sustentando-se que essa existência é paradoxal, absurda. Como é que são pensáveis efeitos finitos se supomos uma cadeia infinita na origem desses efeitos? Tal como Leibniz criticava, no seu tempo, noções imaginárias absurdas como a de número infinito, exatamente por qualquer número a que uma contagem, mesmo que eterna, pudesse chegar, ser sempre finito, só sendo identificável como infinita a lei da série, o mesmo se passa com a pretensão de negar a impossibilidade concreta através de uma definição abstrata. Vejamos. Se houver uma cadeia causal infinita no passado, como seria possível ter chegado aqui? Visto ser infinita para trás, por maior que fosse a sucessão causal percorrida, haveria sempre mais a percorrer. Caso contrário, não seria infinita. Isto equivale a dizer que, se supuséssemos uma regressão infinita das causas, este mundo aqui e agora nunca poderia ter sequer chegado a existir. Como existe, não pode depender de uma cadeia causal infinita. Uma definição de um conceito não altera nada quanto à sua possibilidade efetiva, sobretudo se se tem de considerar como uma premissa geral a efetiva existência do mundo observável.

Naturalmente, o argumento não elimina o caráter paradoxal da antinomia entre finito e infinito. Admitindo, por exemplo, o caráter infinito desse ser máximo, visto o máximo não admitir qualquer limitação, haveria que pensar como poderia ser causa do finito. Porventura, seria difícil sustentá-lo se não de forma imaginária, fantástica, que deixaria boa parte por explicar racionalmente, ou então teria que se admitir o finito como mera aparência desse mesmo infinito, o que equivaleria ao panteísmo. Da mesma forma, se se não consegue conceber uma cadeia infinita na origem deste mundo, agora, aqui, e se não se consegue conceber uma limitação da ordem temporal, talvez se deva admitir que essa ordem causal temporal só possa ser aparente, fenoménica e não numénica. Mas que essa ordem numénica possa ser não causal, é algo que é, de facto, impensável. Porém, a honestidade intelectual pode passar por reconhecer que algo é não somente incognoscível, mas também impensável. Mas se é impensável, como pode ser referido no pensamento a não ser como um flatus vocis (ou voci, caso se prefira o dativo)? Outra possibilidade que pode não parecer incompatível seria pensar que o tempo do ser máximo é um eterno hoje e que a criação criou o próprio tempo para a ordem mundana. Mas tal possibilidade volta a cair na falta de explicação da própria criação do tempo e do mundo temporal. Dificilmente seria sustentável, a não ser que o ser máximo fosse criador por essência, desde sempre e para sempre. Mas isso implicaria uma coeternidade do mundo e não sei se superaria a redução ao absurdo da série causal infinita, desta vez sob a figura do tempo, e acabaria por requerer que a ordem temporal fosse meramente aparente. A reflexão platónica postuladora de universais na base de toda a realidade não altera o problema. Ao se afirmar que os sensíveis participam no inteligível, estabelece-se um laço causal entre a realidade e a aparência. Tanto assim é que o próprio Platão intenta imaginar essa relação no Timeu. Mas, tal como na possibilidade divina, não se compreende porque é que a realidade eterna das Ideias produz os reflexos distorcidos dos sensíveis. A figura demiúrgica só complica ainda mais a explicação. Com certeza que se deve compreender o devir como uma conjugação de ser e não ser relativamente a cada uma das coisas que, nele, aparecem, mas, se se opuser devir e ser, a que propósito ocorre o devir, o que lhe dá origem? Ou será antes o devir, no seu todo, a mais direta e cega manifestação do próprio ser? Sem pretender fornecer agora uma resposta, espero que estas questões mostrem como estão ligadas as questões da causalidade e da substância.

Intimamente ligada a todas estas questões, até mais diretamente que a versão causal, é a prova cosmológica modal. As coisas que vemos existirem podem existir, mas também podem não existir. De facto, é impossível que existam sempre, ou seja, necessariamente. Na verdade, já houve tempo em que qualquer delas não existiu e poderia ter havido tempo em que nenhuma existisse. Nesse caso, se apenas existissem coisas assim, nada existiria hoje, pois não poderia vir a existir a partir do nada. Logo, para que seja possível a existência contingente, requer-se o suporte da existência necessária. Uma existência necessária causada, porém, estaria dependente de outra existência necessária (e aqui reproduz-se exatamente o mesmo procedimento da versão causal – aliás, a ligação entre necessário e contingente pode ser vista também como causal). Dito de outra forma, tudo o que vemos existir, embora exista, poderia não existir, não tem em si qualquer necessidade de existência. Porém, o nada não poderia existir. Logo, parece ser necessária a existência. Porém, nenhuma das existências observáveis é necessária. Logo, tem que existir uma existência necessária que para ter em si mesmo a razão da sua existência, tem que ser sumamente perfeita. Outra forma, mais leibniziana, de expor o argumento é a seguinte: tudo tem que ter uma razão suficiente para ser assim em vez de outra forma e para existir em vez de não existir. Nada do que observamos tem essa razão em si mesmo. Logo, tem de existir algo que constitua a razão suficiente de todas as coisas, a sua causa, a existência necessária que subjaz a e de que dependem todas as existências contingentes. Como este argumento está intimamente ligado ao argumento central deste artigo, deixarei a sua crítica para mais adiante.

É, porém, o argumento ontológico que tem suscitado, desde Anselmo até hoje, as discussões mais acaloradas. É sabido que foi rejeitado por muitos teístas (como Aquino), para não falar de fideístas, agnósticos e ateus, visto estes também rejeitarem os outros. Talvez este artigo possa trazer alguma novidade ao ser aceite por um ateu. Quanto à sua rejeição, ainda hoje se refere a crítica de Gaunilo como sendo procedente, o que mostra bem o deficit de pensamento que por aí abunda. É inerente à noção de ilha a limitação. Logo, não poderia ser equiparada à noção de um máximo de ser. Muitas das pessoas que dão o aval à crítica seguem a tendência contemporânea de considerar apenas a estrutura formal superficial das proposições, não tomando atenção à interpretação conceptual. Uma ilha maior do que a qual nada pode ser pensado existe na mente (isto é, no entendimento) quando se ouve falar de uma tal ilha? Não, não existe, ou só existe sob a forma de sons sem significado, mesmo sendo a noção formada por noções com significado, como no caso do círculo quadrado. Podemos conceber um círculo, podemos conceber um quadrado, não conseguimos conceber um círculo quadrado. Podemos dizer “círculo quadrado”, mas não há qualquer significado que lhe possa ser atribuído. Leibniz viu bem que, porém, este argumento grosseiro mostrava que era preciso estabelecer a própria possibilidade da noção de Deus ou, o que talvez não seja a mesma coisa, daquilo maior do que o qual nada pode ser pensado. A partir de Leibniz (embora a versão hoje mais usualmente referida seja a de Gödel), a prova tem sido reforçada pelo recurso à lógica modal. Leibniz considera que, para se poder asseverar que Deus existe, é necessário estabelecer a sua possibilidade. De facto, há noções impossíveis, por implicarem contradições insolúveis, como um círculo quadrado, uma montanha sem encosta, uma ilha perfeita ou o pseudoparadoxo de Deus poder criar uma pedra que não possa erguer. Logo, para se poder concluir a primeira parte do argumento de Anselmo, é necessário provar a possibilidade da própria noção de Deus. Se esta for provada, então segue-se que Deus existe necessariamente pela segunda parte do argumento anselmiano. A noção de possibilidade de Leibniz é estritamente lógica, exigindo apenas a consistência, a sua não contradição. Leibniz considera que os predicados de Deus, sendo simples e positivos, ou seja, não sendo decomponíveis em predicados mais elementares e nada contendo de negativo, não podem entrar em contradição entre si. Sendo pois a noção de Deus possível, a existência pertence-lhe necessariamente, seguindo a prova anterior. A melhor objeção que conheço a esta versão incide, exatamente, sobre esta noção de possibilidade. A pedra referida há pouco era uma impossibilidade que não negava a omnipotência porque a omnipotência só pode o possível. Mas, como escreve Domingos Faria, “se Deus é omnipotente, então pode fazer tudo o que é logicamente possível; mas se é sumamente bom, então Deus não pode fazer tudo o que é logicamente possível (por exemplo, não pode pecar). Nesse raciocínio parece haver uma inconsistência entre omnipotência e suma bondade, colocando em causa a fundamentação de Leibniz.” Porém, o próprio Leibniz poderia responder que o que a suma bondade impede é querer pecar; ora, não querer não significa não poder. É verdade que, como Faria refere, se poderia afirmar aqui uma impossibilidade metafísica, mas, exatamente, a noção de impossibilidade usada por Leibniz é a lógica e não a metafísica.

É habitual considerar que a mais demolidora objeção ao argumento é a de Kant. Kant considera que a existência não é um verdadeiro predicado tal como o é uma propriedade que pode caracterizar uma coisa (ou seja, “existente” não é uma propriedade como “gordo”, “velho” ou “triste”). A existência não acrescenta nada ao conceito de uma coisa. Pelo contrário, a existência é apenas a instanciação de uma coisa, a constatação da ocorrência de algo que foi significado, não havendo algo mais do que 200 euros no meu bolso pelo facto de eles existirem. Os 200 euros pensados tinham exatamente o mesmo valor que os existentes. Neste caso, a existência não é um predicado que se acrescenta ao conceito de um ser maior do que o qual nada pode ser pensado. Não há diferença de propriedades entre o conceito de um Deus existente e de um Deus não-existente. Ora, se a existência não é um predicado, então um ser maximamente perfeito não é maior se existir do que se não existir. Porém, Anselmo não pretende provar, em absoluto, a existência. Uma das suas premissas, aceitável mesmo pelo bíblico insensato, é a de que Deus existe na mente, na medida em que é entendida a sua definição, aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado. O argumento pretende passar de um atributo (ser mental) para outro atributo (ser real fora da mente). Ser fantástico é um atributo dos unicórnios que, de facto, existe. Se se descobrisse um unicórnio físico, por exemplo, no Monsanto, ele teria um atributo, ser físico, que os unicórnios da ficção não teriam. Logo, não é verdade que o argumento não estabeleça um predicado adicional. Assim, não existe, quanto a mim, nenhuma objeção procedente ao argumento, a partir do momento em que se aceita a definição. Porém, no Proslogion, mais do que reduzir Deus à definição, defende-se, posteriormente, todos os atributos  tradicionais do Deus teísta. Ora, se é o Deus teísta que está em questão na prova, a grande questão volta a ser se se pode aceitar que esse Deus teísta seja o algo maior do que o qual nada pode ser pensado. De facto, mesmo aceitando a possibilidade da ideia de Deus seguindo a defesa de Leibniz, o que talvez também não possa ser correspondente ao Deus teísta, ainda não está garantido que isso corresponda ao máximo de ser da definição anselmiana.

Ora, mesmo considerados como puro pensamento sem conhecimento, os argumentos ontológico e cosmológico apenas parecem procurar estabelecer um máximo de ser, uma existência necessária e uma causa sui que se constituam como sustentação dos seres limitados, das existências contingentes e das cadeias causais. Como Kant procurou mostrar, mesmo os supostos argumentos cosmológicos acabam por não ser a posteriori, na medida em que têm de efetuar a passagem da existência necessária para Deus, o que Kant afirma acabar por se reduzir ao argumento ontológico.[1] Porém, no próprio argumento ontológico, existe um salto lógico, visto também se poder questionar se um máximo de ser ou se um ser soberanamente real correspondem à noção de Deus. Na verdade, parece-me que quer a noção de ser supremo, quer a de existência necessária não passam de paráfrases do poema de Parménides, assentes na inconcebilidade da existência do nada. Se o nada não pode existir, existe sempre necessariamente alguma coisa. O nada só é referível de forma relativa, por exemplo, quando quero dizer que não estou a agarrar nada sólido. O próprio vácuo não pode corresponder a nada visto que, mesmo supondo nada lá existir de material, tem dimensões suscetíveis, aliás, de serem medidas, ao passo que o nada não pode ter quaisquer predicados.[2] Se existe necessariamente alguma coisa e não vejo nada que exista senão contingentemente, a necessidade da existência dever-se-á situar a um nível não sensível. Da mesma forma, visto nada vir do nada e tudo ter de ter uma causa, dada a impossibilidade de uma regressão causal infinita, seria necessário supor uma causa primeira que só o poderia ser se fosse causa de si mesma ou, o que vai dar no mesmo, não requeresse por natureza qualquer causa, o que só poderia ocorrer se tal entidade fosse uma existência necessária. Isso mostra, aliás, como as versões causal e modal do argumento ontológico se encontram estreitamente associadas. A própria noção de um máximo de ser do argumento ontológico pode ser vista como decorrente da impossibilidade do nada: a causa sui é causa sui por ser existência necessária, a existência necessária é necessária por pertencer aos atributos do máximo de ser e este é máximo de ser por se excluir qualquer possibilidade de nada. Neste contexto, porém, a questão que me parece fulcral é, antes de toda a discussão do valor de tais argumentos, o que é que tais noções de um máximo de ser ou de uma existência necessária têm a ver com a noção de Deus.

Na noção de Deus, está sempre presente a conceção de um indivíduo, por muito infinito que seja considerado. Se já não se está a conceber um indivíduo, seria melhor, como já disse, recorrer a outra palavra. Mais ainda, na personificação que, de raiz, se encontra associada à noção de Deus, concebe-se um sujeito com uma consciência, entendimento e vontade. Penso que a própria noção de um sujeito e de um entendimento implicam necessariamente uma limitação incompatível com a noção de um máximo necessário de ser. Porém, a conceção de uma vontade é um caminho mais rápido para expressar a incompatibilidade aqui presente. Só se pode querer alguma coisa, se se precisa disso nem que seja como capricho. A vontade poderá ser a nossa faculdade de desejar quando submetida à deliberação racional, mas, por muito racional que seja, não deixa de ser faculdade de desejar. Que sentido tem um ser soberanamente perfeito desejar seja o que for, ter desígnios e procurar realizar um projeto? Tradicionalmente, afirma-se que Deus criou o mundo para manifestar a sua glória. Para que precisa um ser soberanamente perfeito de manifestar a sua glória ou ser glorificado? E como é que a criação de um mundo necessariamente menos perfeito do que ele poderia adicionar alguma glória a um ser perfeito ou mesmo tão-só manifestar essa glória eventualmente já pré-existente? Porque é que um ser perfeito não estaria satisfeito com a perfeição absoluta que já tinha? Precisava de outra coisa para quê? Criou por amor? Mas como poderia ele amar o que ainda não existia? E mesmo podendo amar o que já imaginava, supondo que faz sentido um ser necessário e perfeito se entregar a uma atividade tão limitada como imaginar, como se precisasse de se entreter, porque se poria a amar o menos perfeito que ele próprio? Estaria já a dar-nos um modelo do que deveríamos fazer, amar o mais imperfeito, por exemplo, o puro mal? Ou aquilo que faz sentido para nós, amar o que julgamos melhor, já não faz sentido para Deus que, aliás, seria infalível no seu juízo? Toda a personificação presente na ideia de Deus é incompatível com as noções que se pretendem provar nos argumentos ontológico e cosmológico: ser soberanamente perfeito, existência necessária e causa sui. E ainda mais seria se se considerassem aspetos mais específicos da conceção teísta, as revelações, as intervenções na história, a Encarnação no cristianismo, o pecado original, etc.

Os diversos argumentos teleológicos têm a vantagem de suporem claramente a noção teísta de Deus e, como tal, não suscitarem a crítica antes feita à sua incompatibilidade com as noções ontológicas genéricas dos outros argumentos. De facto, não é contraditório pensar um ser muito poderoso que pudesse fabricar este mundo segundo um desígnio insondável. Da mesma forma, também seria possível ter sido fabricado por uma família ou raça de seres muito poderosos, ou, como num jogo que em tempos joguei, este mundo ser um jogo com que se entretinham seres de uma dimensão superior. Isto significa que um tal argumento, mesmo que provasse um desígnio, não garantiria um Deus monoteísta (ao contrário do máximo de ser, caso fosse compatível com a noção de Deus). Além disso, todos os argumentos do desígnio se articulam da mesma forma: há uma ordem na orgânica dos seres vivos, há uma ordem na gravitação universal, há uma ordem neste universo em expansão; não sabemos qual a causa dessa ordem; logo, essa causa é Deus. Parece-me desnecessário dizer que se trata de uma falácia de apelo à ignorância. Para lá das causas poderem ser outros seres poderosos, também poderiam ser determinações necessárias que apenas não conhecemos ou ainda não conhecemos, assim, como no passado, quando o homem desconhecia os mecanismos geradores das tempestades, atribuía a sua origem a deuses, à sua raiva ou à sua providência, ou seja, a desígnios. Por outro lado, pode-se estar a ver desígnios simplesmente por o homem tender a ordenar mentalmente qualquer caos, tal como via no passado (e, para alguns, ainda no presente) uma ordem até simbólica, tributária de um pensamento mágico, determinadora das mais ínfimas ocorrências humanas, na disposição das estrelas em constelações que, hoje, sabemos só aparentemente estarem próximas. Leibniz via na possibilidade de fornecer uma ordem matemática a qualquer distribuição arbitrária de pontos uma prova da harmonia pré-estabelecida, quando tal facto pode ser visto apenas como demonstrativo da compulsão humana para encontrar uma ordem em qualquer caos. Ou seja, os argumentos teleológicos aproveitam-se da nossa ignorância para tirar conclusões, utilizando a estratégia exatamente inversa à que o teísmo usa ao lidar com o problema do mal.

A objeção do mal atinge o teísmo exatamente por este estipular um desígnio no universo que, eventualmente entre outras finalidades, prossegue uma finalidade moral. De facto, as religiões monoteístas prometem uma justiça além para os abusos aquém, considerando que Deus é um ser bom que redime cada qual que o mereça das provações por que passa nesta vida, castigando todo o mal renitente. Porém, o juiz e algoz é também o criador dos acusados e condenados. Além disso, é considerado omnipotente. Logo, esta objeção parece criar um paradoxo. Tal paradoxo parece, desde a versão original atribuída a Epicuro, demonstrar uma contradição insanável entre bondade e omnipotência (em versões posteriores, juntando-lhe a omnisciência), dada a realidade do mal. Ora, frente ao mal natural, o filósofo teísta (e não apenas Leibniz que, aliás, pouco o distinguia do moral) segue um caminho exatamente inverso a e contraditório com o que segue ao defender o argumento do desígnio. Neste último, perante uma qualquer orgânica de que desconhece a causa, pretende deduzir um artífice. Ao contrário, perante os mais avassaladores desastres, defende que não é possível avaliar como tais desastres se encaixam no conjunto de uma obra de tal grandiosidade, assim como não se avalia uma sinfonia por uma pausa ou uma pintura pelas manchas em que a pintura se transforma se nos aproximamos em demasia da mesma. À perfeição de uma figura geométrica como a do quadrado é inerente a imperfeição da incomensurabilidade da diagonal. Faria sentido, pergunta Leibniz, exigir à omnipotência divina que fizesse quadrados perfeitos sem a irracionalidade da diagonal? Ora, é isso que se exige quando se exige que a omnipotência divina criasse um mundo sem mal natural, o que seria tão absurdo como exigir que criasse música sem silêncios ou pintura sem sombras. Ora, o mesmo argumento sustentado nas nossas limitações serviria para rejeitar a pretensão em ver um desígnio em qualquer pormenor da natureza, visto não estarmos em condições de avaliar aquilo de que ignoramos o contexto mais geral.[3] Claro que as nossas limitações cognitivas refutam as pretensões epicuristas de demonstração da inconsistência conceptual de Deus, o que era o objetivo leibniziano e não o de demonstrar a existência de Deus – mas o mesmo argumento lança sérias dúvidas sobre uma das suas vias de demonstração dessa existência que supõe uma harmonia que só poderia ter por autor Deus. Além disso, Voltaire caricaturou muito bem o caráter vazio do argumento do melhor mundo possível inerente à criação por um ser maximamente perfeito. No Cândido, escrito exatamente na sequência do terramoto de Lisboa, em 1758, Voltaire imagina todo um imenso conjunto de circunstâncias extremamente negativas, sempre explicadas como pertencentes ao melhor mundo possível à maneira de Leibniz. De facto, o argumento de Leibniz permitiria considerar o mundo o melhor possível mesmo que se tivesse vivido toda a vida no próprio Inferno. Sendo assim, a própria afirmação do melhor mundo possível revela-se vazia e estéril, pois poderia ser feita no pior mundo possível. Da mesma forma, um argumento similar ao do fine-tuning levava Schopenhauer a tirar a conclusão exatamente inversa à leibniziana: vivemos no pior mundo possível, pois o mais ínfimo desvio às condições pelas quais este mundo existe faria com que este já não fosse possível. Ou seja, este seria o pior mundo que ainda consegue existir.

Quanto ao mal moral, considera-se tradicionalmente que advém de um poder excecional dado a um conjunto de criaturas, homens e porventura anjos, para desempenharem um papel superior na criação, onde, aliás, parece se jogar o desígnio fundamental da mesma, o livre-arbítrio. Por muitos desenvolvimentos que tenha tido posteriormente, considero, aliás, que o puro libertismo nasceu desta necessidade de absolver o divino e culpar o homem do mal. Mesmo numa versão compatibilista como a do mito de Er, já existia a preocupação de isentar o divino de qualquer culpa.[4] Sumariando a tese teísta e esperando não produzir um espantalho, Deus que é sumamente bom decidiu criar um mundo necessariamente mais imperfeito que ele, onde permitiu o mal na medida em que isso contribuía para realizar o melhor desígnio mundano possível. Nesse desígnio, figura em plano de destaque o homem, visto ser dotado de um poder miraculoso de escolher a sua ação independentemente da determinação natural. A permissão do mal resultaria inevitavelmente desse dom, não se podendo falar verdadeiramente de livre-arbítrio se não existir a possibilidade de escolha entre o ser – o bem – a liberdade divinos, e a aniquilação – o mal – o encarceramento pecaminosos. O objetivo seria, no final, eleger os justos nas suas escolhas para um futuro de eterna bem-aventurança onde não haveria lugar para o pecado e condenar os perversos a um sofrimento igualmente eterno, resultante da sua perseverança no pecado. Ou seja, apesar de, supostamente, ser um dom superior a existência de livre escolha entre o mal e o bem, afinal o objetivo é uma forma superior de vida onde, como em Deus, não se pode escolher o mal. Se assim é, para que decidiu Deus criar, primeiro, a forma de vida inferior (que antes se justificava como superior)? Para avaliar o mérito das suas criaturas ou, visto Deus possuir presciência e já saber qual irá ser o seu valor, para manifestarem o seu mérito pelas suas ações. Porém, Deus criou tais criaturas do nada, ou seja, de si próprio. É claro que se pode imaginar facilmente um poeta que vai produzindo diversos poemas e elegendo os melhores de entre eles. Porém, é isso concebível num ser soberanamente perfeito? Que vá produzindo criaturas defeituosas, que sabe defeituosas e que, visto possuir presciência, predestina logo na sua criação a uma condenação eterna por pecados, afinal, necessariamente, limitados? E que, por méritos limitados, conceda a graça da eleição final para uma felicidade eterna logo na sua criação? Os teístas, mais cedo ou mais tarde, remetem sempre as explicações para as limitações do nosso entendimento. Porém, não é muito mais sinal das conceções antropomórficas este Deus arbitrário que cria este espetáculo da perdição e da salvação para manifestar a sua glória, sem que se perceba o sentido de um ser perfeito criar algo mais imperfeito e isso o glorificar, um ser bom criar um ser capaz do mal que já sabe que praticará esse mal e que castigará por praticar esse mal a que ele o predestinou, e um ser justo castigar e premiar ações finitas com punições e prémios infinitos? As noções do teísmo que, supostamente, procura conciliar fé e razão, só parecem racionais se não forem analisadas até o fim. Inevitavelmente, acaba por cair nos mais diversos absurdos e, aí, recorre aos mistérios divinos para fugir de objeções, tanto quanto ocorria na era da razão preguiçosa, na Alta Idade Média.

Humano, demasiado humano é este Deus e não necessariamente naquilo que o humano tem de melhor. Nele se concentrou todo o desejo de proteção e todo o ressentimento contra os abusos mundanos. Para isso, lhe foi concedida a omnipotência e a preocupação com a justiça. Porém, sendo a sua raiz o ressentimento e não a simples razão, não houve grande preocupação em tornar consistente tal ser superior. Que a raiz seja o ressentimento, é algo que se evidencia pelo caráter eterno das penas e prémios. Do ponto de vista da justiça, trata-se de uma ofensa básica ao princípio da proporcionalidade entre a pena e o crime (ou entre o mérito e o prémio), mas, do ponto de vista do ressentimento, é a vingança ideal. Quanto a todos os absurdos aqui descritos e muitos outros que poderiam ser referidos, Deus não foi concebido para responder a problemas filosóficos, mas sim para trazer conforto e uma satisfação mental pela redenção anunciada para quem assim o imaginava. E em nada se evidencia mais este caráter irracional que na exigência de fé, considerada sempre como uma condição necessária para a salvação, chegando ao ponto de ser, em certas confissões, a condição humana única, à qual se junta eventualmente a condição divina da graça. Quem exige, entre os humanos, uma crença cega em si e nisso vê mérito por vezes exclusivo são os tiranos de todos os tipos. Da mesma forma, só um ditador considera que duvidar já é um pecado, quando não o princípio do pior dos pecados, o da apostasia. E tal como o déspota, só se exige tal fé, se se quiser eximir a qualquer escrutínio. Ora, um déspota vingativo que criou o mundo para se vangloriar e para castigar e premiar as suas criações que já sabia o que fariam, destinando-as, aliás, a fazê-lo, é uma noção absolutamente incompatível com um ser soberanamente perfeito. Como tal, uma noção que una as duas conceções é um absurdo lógico, um círculo quadrado, não podendo, como tal, existir em qualquer mundo possível. Pascal aposta num círculo quadrado e, por isso, não tem qualquer possibilidade de ganhar. Melhor seria apostar no bule de Russell ou na Grande Abóbora de Charlie Brown, se trouxessem alguma vantagem, como o pote de ouro dos duendes. Mas ainda melhor seria não decidir a sua vida e as suas convicções pelo medo do desconhecido (como ao se preferir usar um amuleto apenas para o caso de a realidade ser absurda e as superstições corresponderem à realidade), o que acaba por ser apenas uma manifestação de irracionalidade e, por isso, uma antítese da filosofia.



[1] Immanuel Kant, Kritik der Reinen Vernunft, Riga, Hartknoch, 1781, 2ª ed., 1787; trad. port. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, Crítica da Razão Pura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 19858, pp. 509-510. E, na verdade, mesmo o fundamento de uma experiência em geral não parte de qualquer experiência em particular, apoiando-se em simples conceitos puros, ibidem, p. 514.

[2] Daí Newton não só ter considerado o espaço como absoluto, mas, inicialmente, como um atributo imaterial e, mais tarde, como o modo de um atributo da própria divindade, pois o espaço mesmo vazio não só não seria um nada, muito embora fosse imaterial, como mostrava a impossibilidade da sua divisão material. Os relativistas, como Leibniz, não podiam ser senão plenistas porque, se não o fossem, isso significaria dar ao espaço um estatuto ontológico, isto apesar de Leibniz acabar por reconhecer ao menos a possibilidade ideal (geométrica) do vazio.

[3] Apesar de elogiar um artigo de Desidério Murcho de 2019, critiquei a sua conclusão (2020) nos seguintes termos: “Bom artigo que desliza no final para um argumento de todo improcedente, claramente motivado pela crença do autor que facilmente poderia ver que, em todo o conhecimento, é mais fácil verificar que algo existe do que descobrir aquilo que esse algo é ou as características de todos complexos (neste caso, infinitamente complexos). Eu verifico a existência do mundo e estou longe de o poder compreender em toda a sua complexidade espacial e temporal. Um homem das cavernas verificava a existência do fogo e podia nem sequer ainda saber usá-lo, quanto mais produzi-lo ou saber o que era. Eu posso ser capaz de demonstrar a existência de Deus e ser incapaz de penetrar na complexidade dos seus desígnios ou no destino preciso de cada pormenor da sua criação. Uma incapacidade não implica de todo a outra. Non sequitur.” Pode parecer que entro em contradição neste artigo. Mas não. O que Murcho equipara às limitações cognitivas referidas por Leibniz é a nossa capacidade de saber se Deus existe ou não, em geral. O que eu equiparo é a pretensão de inferir uma harmonia universal e eterna a partir da nossa consideração de ordenações no mundo inevitavelmente limitadas, o que é característico dos argumentos teleológicos e só destes – e, porventura, até menos de Leibniz. Isto porque Leibniz poderia pretender que essa via não era estabelecida analogicamente, mas por ser impossível explicar de outra forma, por exemplo, a comunicação entre o corpo e a alma ou a conservação universal da quantidade da força (eventual antepassado da mais recente noção de energia, como admito no meu trabalho sobre Leibniz e Clarke), o que, porém, pode ser visto como uma transformação da fraqueza da insustentabilidade do dualismo cartesiano em força e dos pressupostos cosmológicos em provas. Reconheço, porém, que a apreciação de um sistema em que todos os elementos conspiram uns com os outros, torna difícil decidir a ordem demonstrativa de forma linear. De qualquer forma, como muitos autores da época, Leibniz não rejeitava de todo a possibilidade de demonstrações analógicas, como ocorre no salto da vida verificável pelo microscópio para a presunção que o mesmo ocorreria sempre progredindo para o infinitamente pequeno. Noutros casos, porém, como o dos indiscerníveis, ele apenas exemplifica empiricamente o que já tinha concluído especulativamente, apesar de também aí se poder detetar um pensamento simultaneamente lógico, metafísico, analógico e indutivo: “C’est tout comme ici”.

[4] Platão, ed. J. Burnet, Platonis Opera, T. IV, Oxonii e typographeo Clarendoniano, 1949; tr. port. Maria Helena da Rocha Pereira, A República, 11ª ed., Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 200810, p. 490, 617 e..