20.11.25

A promoção de ovelha negra para traidor

 

        Há quase meio século, senti, pela primeira vez de forma clara, a diferença entre os dois estatutos. Entre os 13 e os 14 anos, pertenci, durante uns meses, à União dos Estudantes Comunistas, uma organização de juventude posteriormente extinta do Partido Comunista Português. Durante esses meses, mesmo sem ser assim explicitamente nomeado, gozei do estatuto de ovelha negra. Eu era o único que se atrevia, na sala de convívio de um centro partidário, a referir como tal a aliança de 39 entre os soviéticos e os nazis. Ela até podia ter existido, até podia ter legitimado a ocupação do leste da Polónia e a anexação em 40 dos países bálticos e da Moldávia, assim como a tentativa anterior de fazer o mesmo com a Finlândia. Não podia era ser mencionada.[1] Logo surgia um membro do Partido a dirigir-se exclusivamente a mim (apesar de se tratar de um diálogo), dizendo que estava a incomodar os camaradas presentes no centro e salientando que essas conversas deviam ser reservadas para as reuniões. Como é óbvio, nada desses ou doutros assuntos jamais poderia ser verdadeiramente discutido nas reuniões dos órgãos do partido por estar sempre fora da ordem de trabalhos. E assim passei rapidamente de incómodo (a ovelha negra) a traidor, apresentando a minha carta de despedida. No verão de 79, concluí rapidamente que não havia perestroika nem glasnost[2] possíveis numa tal organização e alcancei o superior estatuto de traidor. É, de facto, um estatuto superior porque, ao ser odiado, passei a ser tido em consideração, ao passo que antes era desprezado ou menosprezado, uma incomodidade desqualificada que se poderia ignorar. Uma atitude alternativa surge, porém, para lá da mera hostilidade, a atitude paternalista daqueles que esperam um regresso quando, finalmente, se desfizerem as confusões que levaram à atitude de rutura. A carta de desfiliação que referi nunca chegou a ser apresentada aos órgãos do partido, soube-o mais tarde, porque um desses camaradas paternalistas a reteve, esperando que acabasse por ver a luz e regressasse. Apesar de os outros militantes me insultarem de traidor por todo o lado, não faço ideia quanto tempo continuei a figurar nos registos como militante da organização. Julgo mesmo que o amigo referido terá andado a pagar as cotas. Muito mais tarde, ele próprio passou pelo mesmo processo, assim como muitíssimos outros, a conta-gotas, sempre sentindo a solidão do gesto individual esmagado pelo peso do coletivo.

            Embora esteja longe de ter integrado um grande número de organizações análogas, políticas, sindicais, religiosas, etc., cheguei à conclusão que não era preciso pertencer a qualquer organização expressamente ideológica para ocorrerem as mesmas atitudes acima descritas, por vezes atenuadas pelo habitual estilo de brincadeira, de forma a covardemente poder recuar face a uma confrontação direta. Que a sua natureza é a mesma, é algo que se mostra, porém, na perda do estilo humorístico assim que existe uma generalização à totalidade do coletivo. Afinal, o estilo de brincadeira só é necessário se não se alcançar uma aceitação coletiva ou maioritária.[3] Por exemplo, se se for efetivo numa escola pública, o que parece (parece…) não ter qualquer caráter ideológico, a decisão de mudar para outra, mesmo se antecedida da manifestação de múltiplas críticas e discordâncias, patenteadas de forma bem pública ou aos órgãos competentes, acaba por ser exatamente objeto dos mesmos procedimentos. Porquê? Porquê considerar traidor ou desertor alguém que simplesmente muda para outra escola do mesmo sistema público de educação? Haveria algum compromisso ou dívida que teriam sido defraudados, uma ausência de gratidão para com situações passadas, vantagens alcançadas, favores, promoções, etc., ou a rejeição de uma anterior adesão ou apoio de projeto? Imagine-se uma situação em que alguém que, se encontra na situação de mudança acima referida, nunca foi beneficiado em nada na sua vida pessoal ou, por exemplo, académica, sendo até explicitamente recusada qualquer ajuda se em algum momento a solicitou, que chegou a ser alvo de um processo ad hominem que prejudicou a sua própria atividade docente, que múltiplas vezes sacrificou a vida pessoal para cumprir funções que lhe foram solicitadas muito para lá das obrigações ordinárias, que nunca beneficiou da menor redução letiva e até, por vezes, não letiva para concretizar diversos projetos extracurriculares, ao contrário do que muitos outros beneficiaram, que nunca teve qualquer vantagem horária similar às que muitos outros tiveram, que nunca pretendeu ocupar qualquer cargo e só os ocupou por ser obrigado a fazê-lo, que, apesar disso, sempre cumpriu todos os deveres diligentemente, mesmo se discordava visceralmente do que estava a fazer, que explicitou, múltiplas vezes, as suas discordâncias em relação ao rumo que estava a tomar a escola, que avisou com grande antecedência que tinha a intenção de sair – em que é que esse indivíduo traiu fosse o que fosse ao pretender mudar de ares? Talvez por ter sido, no passado, avaliado positivamente em termos de desempenho docente? Mas poderia uma escola ter procedido de outro modo face às evidências existentes e até a uma avaliação que era parcialmente externa? Será essa a justificação para ser alcunhado de traidor, mesmo nem sendo mencionada a menor justificação?

            Não. Estes procedimentos evidenciam simplesmente a natureza dos coletivos, da gente como lhes chamo em tantos textos. Um aspeto inicial central é que nunca importam as razões. Os indivíduos que se identificam com os coletivos, ou seja, que não só lhes pertencem, mas que os consideram como parte essencial da sua identidade, mesmo coletivos de que se tornaram membros de forma acidental ou sem qualquer comprometimento ideológico explícito, consideram qualquer crítica ou discordância um ataque que deve ser ignorado, se possível, desdenhado, se necessário, combatido, se for sentido como uma ameaça. Podem até existir alguns membros que façam críticas análogas, mas elas são rapidamente subsumidas pela maior importância da pertença. Os poucos que chegam ao ponto de sair do coletivo, a não ser que se desejasse, por alguma razão, a saída, serão tratados como traidores mesmo por esses que, em tempos, comungaram as objeções aos órgãos ou práticas do coletivo. Nem esses quererão saber de quaisquer razões porque não pode haver qualquer razão que ponha em causa a pertença. A partir do momento em que se abandona o “nós”, passa-se a fazer parte dos “outros”, não outros indiferentes, mas outros contra os quais o “nós” se erige, mesmo que não seja essa a única razão da constituição do coletivo. Um jogador ou treinador de futebol termina o contrato com o clube. Nada o liga mais ao clube, cumpriu os seus deveres para com o clube e vice-versa. Tem toda a legitimidade para escolher o caminho a tomar na sua vida. Porém, é contratado por um clube rival que lhe dá condições que o antigo clube não estava disposto a dar. Logo, é tratado imediatamente pela massa adepta como traidor. Pensar-se-ia que as escolas não deveriam se portar como clubes, visto não estarem a concorrer entre si num campeonato qualquer. Pensar-se-ia mal. A concorrência entre escolas é inerente à captação de alunos, mas tem sido ainda mais estimulada pelas tutelas, de forma doentia, nas últimas décadas. Mais grave ainda que abandonar o “nós”, importa a adesão a “outros” que o “nós” desvaloriza constantemente como muito inferiores a “nós”. Isso é um insulto inadmissível. O antigo membro passa a ser um “outro” especialmente odioso porque evidencia que a pertença àquele coletivo não implica necessariamente não só a sua aceitação, mas uma entusiástica adesão. O soldado não deve ser apenas carne para canhão, deve sê-lo com intenso patriotismo, por muito que a pátria nunca lhe tenha dado nada que justifique tal paixão para lá do simples cumprimento do dever. O traidor ou o desertor é uma ameaça à própria organização que tem de ser prontamente exorcizada.   

            Arcanos rituais são convocados para cancelar definitivamente a ameaça: o insulto, a agressão, a injúria, a calúnia, a ridicularização e a difamação, tudo práticas que os coletivos nunca chegam a reconhecer como criminosas, exatamente por não serem feitas por indivíduos, mas sim como manifestações da supostamente justa indignação da massa. Qualquer indivíduo subsumido a um coletivo é capaz de atos bem piores que a história bem mostra, mesmo se muitos ficaram silenciados e ocultados para sempre, extorsões, intimidações, assédio, violações, linchamentos, autos de fé, genocídios, etc. O que é um insulto, mesmo que reiteradamente proferido, comparado com um linchamento ou até um genocídio? Assim, até parecerá inocente tal hostilidade, sobretudo na fase em que é disfarçada com o tom de brincadeira. O traidor, porém, provoca um gradual aumento da consistência do coletivo porque este, ao ter de lidar com a ameaça, requer que as diferenças individuais se diluam no exorcismo e este exorcismo é alcançado pelo repúdio generalizado da maioria, em breve do todo (ou o que parece o todo, pois se tende a ignorar as exceções). A pouco e pouco, ao menos face à ameaça, desaparece a pessoa e só persiste ou até se gera o soldado que abdica de considerar quaisquer razões para se reduzir à defesa do “nós” e ao ataque ao “outro”. Este é também um processo de expulsão do ultraje, de forma a sarar o tecido coletivo, esquecendo a pessoa e transformando-a numa coisa repugnante. Essa é, aliás, uma forma embrionária da criação de uma predisposição para levar a cabo ou apoiar os crimes de guerra. Antes de mais, é preciso desumanizar o inimigo, por exemplo, animalizando-o ou diabolizando-o. Apesar de todo este processo terminar com a anulação da importância da ameaça, o facto de ter tido de ser levado a cabo evidencia o estatuto superior do traidor em relação à ovelha negra. A ovelha negra é na melhor das hipóteses tolerada, pode ser denominada como tal até em eventos públicos, humilhada aqui e acolá para assegurar que é posta no seu lugar, mas o seu carácter vil e vergonhoso não ameaça o coletivo, é até sinal da magnanimidade do todo social permitir que tal disfunção permaneça no seu seio. O traidor, ao contrário, requer a convocação de todos, mesmo aqueles que pareceriam antes pouco integrados, para lidar de forma uníssona com a afronta. Isso chegaria para mostrar a sua maior importância. Mas não só. Se o visado fosse alguém que se queria à partida expulsar do coletivo, ninguém se daria ao trabalho descrito. Até poderia ser insultado, mas não como traidor ou desertor. O facto de se ter o trabalho de o desvalorizar, até o seu valor ser totalmente anulado, mostra que, à partida, se dava valor ao indivíduo. Ora, isso é o inverso do que os coletivos expressam com a imagem da ovelha negra, um incómodo certamente, mas, em geral, desprezado. O reconhecimento do estatuto de traidor a alguém que antes era considerado uma mera ovelha negra é, por isso, uma promoção.  

            De facto, a promoção é tão notória que alguns dos que se sentem ofendidos com a traição, real ou imaginária, tentam redimi-la através de súplicas ou de homenagens. A súplica pode surgir mesmo em casos em que a atuação anterior dos suplicadores só poderia ser interpretada como um decreto de expulsão. Mas basta se assumir a rutura que imediatamente a ovelha negra aviltada pode voltar a ser considerada perante a possibilidade de se tornar um traidor. Quanto a homenagens em tal caso, excetuando este ou aquele elemento bem-intencionado, são uma forma de agressão contra a ofensa, um dar a outra face que procura agravar o cariz da alegada traição. Em todos os casos, nunca ocorreriam para uma ovelha negra, pois só o estatuto de suposto, eminente ou efetivo traidor fornece a importância necessária para levar a cabo tais ações. Se Trotsky tivesse permanecido na União Soviética como ovelha negra, para lá de morrer muito mais cedo, seria mais um nome relativamente indiferente nas infindáveis listas das vítimas de Stalin. Ao guindar-se ao estatuto não só de traidor, o que era uma acusação comum e relativamente indiferente nos julgamentos de Moscovo que nem requeria que o acusado fosse ovelha negra, mas o traidor por excelência ao qual eram imputados todos os males e todas as ligações com as potências inimigas que se iam sucedendo, Trotsky acabou por ser revestido de uma importância inigualável. Diria mesmo que o atual esquecimento desse estatuto de traidor, reduziu-lhe extremamente a importância, mesmo se ainda há muitos membros da seita estalinista que referi no início do artigo que continuam a zelar por lhe conferir tal distinção. Várias figuras da vida partidária (nem vale a pena dar exemplos, são demasiado óbvios) reduzidas, por justas ou injustas razões, ao estatuto de ovelhas negras, figuras totalmente rebaixadas ou até achincalhadas, ganharam uma nova vida ao romperem com o partido, podendo mesmo, mais tarde, ser recebidas de novo no mesmo partido, após ter lutado explicitamente contra ele, com toda a consideração restaurada. O mesmo se poderia exemplificar com transferências entre estações de televisão, conselhos de administração, trocas de empresas por trabalhadores especializados, etc. Na verdade, mesmo a traição individual tem o mesmo resultado. Alguém desprezado pelo parceiro faz renascer o entusiasmo e/ou nascer o ódio com a traição. Porém, a verdadeira traição a indivíduos parece bem mais ignominiosa do que a traição a coletivos, mesmo que não seja imaginária como várias das aqui relatadas. E isso ocorre por várias razões.

Em primeiro lugar, a relação individual é uma relação entre rostos. A intimidade dos rostos fica conspurcada pelas máscaras maliciosas que se interpõem. Pelo contrário, as máscaras são inerentes ao existir social, são mesmo exigidas constantemente, de tal forma que se é frequentemente condenado por não ter afivelado a máscara devida. Pior ainda, se a comunhão de rostos se aprofundou ao longo do tempo, qualquer cansaço, qualquer indiferença, qualquer ansiedade deve ser comunicada, pode até dar origem a rutura, mas não deve tornar-se suporte de traição. Quando se trai um rosto com a dissimulação de outro rosto perversamente mascarado, perde-se a autenticidade da existência e ingressa‑se no comércio obsceno das satisfações. Será sequer possível depois ter um rosto autêntico? Em segundo lugar, como procurei mostrar neste artigo, os coletivos consideram traição qualquer desvio à conformidade, não reconhecem direito à pessoa a não ser como seu servo, perseguem a diferença como se esta fosse inerentemente um insulto à sua identidade. Para sujeitar as pessoas, inventam abstrações fictícias que tratam como se tivessem realidade substancial, civilização, nação, classe, religião, partido, género, clube, até empresa ou escola. Um aldrabão que talvez venha a ser primeiro-ministro deste país defendeu a existência de um gene de ser português e a horda galvanizou-se entusiasticamente. Mas esta é a natureza mistificadora de todos os coletivos. Rejeitar essa imposição da sujeição nem traição é, é um grito de rebelião da pessoa encarcerada, é uma simples manifestação de saúde de um ser humano enquanto humano, é uma vitória precária da autenticidade de um indivíduo, de uma existência. Em terceiro lugar, não é apenas nos regimes totalitários que se eliminam sistematicamente as manifestações individuais por serem consideradas uma ameaça sistémica ao domínio total. Talvez haja menos recurso ao assassínio em massa, mas isso não significa que os coletivos não procurem eliminar de toda a consideração possível todos aqueles que se destacam por alguma particularidade, mesmo que essa particularidade em nada ameace o coletivo ou a sua chefia. Ora, isso leva a que os coletivos, em situações regulares, sejam absolutamente dominados pela mediocridade ou até por um nível que seria à partida inferior à mediocridade. Muitos são os autores que sublinham que a principal razão que levou à derrota estrondosa inicial dos russos na segunda guerra foi a eliminação sistemática de toda a competência militar nas purgas da segunda metade dos anos 30. De facto, nem conseguiram a vitória frente ao modesto exército finlandês. Ao contrário, o regime nazi começa por usar toda a competência acumulada no exército alemão, ainda não purgado ou rebaixado, e é ao longo da guerra que essa competência é desbaratada e substituída pelos lacaios ideológicos, nomeadamente submetendo o exército ao comando das SS. A partir de 41, a incompetência germânica tornar‑se-á cada vez pior, chegando a assemelhar-se à original dos soviéticos. Não conseguirão recuperar-se dela, até por não terem a imensidão do território soviético que permitiu, devido à situação de extrema emergência, voltar a selecionar os mais capazes disponíveis (quando não criar de novo) de forma a poder responder eficazmente à agressão. Porém, assim que acabou a guerra, novas purgas se livraram dessa nova perigosa competência. Tudo isto foi descrito longamente por diversos autores e pertence aos lugares-comuns da historiografia ordinária.

No entanto, como descrever a incompetência extraordinária do exército francês em 40, acompanhada em grande medida pelos britânicos que depois se tentaram redimir na batalha de Inglaterra? As próprias decisões da Iª Guerra, praticamente de todos os lados, atingem tal nível de absurdidade (mortos aos milhões para nada) que só podem ter na sua base uma extrema falta de mérito. E, apesar de ser um governo autocrático apenas, ou seja, não totalitário, como compreender a absurda colocação estática de tanques ao longo de mais de 60 Km de estrada, no início da guerra da Rússia com a Ucrânia, que apenas serviu para os esquadrões ucranianos fazerem tiro ao alvo? Tenho, aliás, a certeza que se se investigasse a generalidade dos malogros das grandes potências, Vietnam, Afeganistão para ambas, Iraque, encontrar-se-ia, por todo o lado o mesmo predomínio da mediocridade. De onde me advém a certeza? Da verificação empírica que é assim que procedem todos os coletivos em situações regulares. Se o podem fazer, preferem afastar as simples sombras de ameaças e recrutarem pessoal que se destaca por não se destacar em nada, que se afigura insuscetível de alguma vez fazer uma crítica, muito preocupado em se conformar à conformidade e se apresentar como inerentemente servil. É sabido que muita malícia e dissimulação se oculta, muitas vezes, nesta atitude, mas até na falta de princípios desta gente sub-reptícia os coletivos confiam sempre mais do que no mérito, pois sabem que, em princípio, estarão dispostos a defender veementemente o que for mais indefensável e trair tudo e todos para servir a chefia. A única forma de os coletivos darem valor ao mérito é a existência de uma situação de extrema emergência com a qual o coletivo de medíocres não consegue lidar. Na verdade, tais coletivos são invariavelmente ineficazes e tendem a ser devorados pelos mais diversos tipos de corrupção. Se um partido fascista desata a berrar corrupção, mesmo que seja evidente ser um coletivo com estas mesmas características, há sempre muita gente para o ouvir porque sabem bem a sociedade em que se integram. No meu país, a condução da política de saúde durante a pandemia foi desastrosa e errática sob diversos pontos de vista, mas só quando se atingiram os piores números do mundo é que, finalmente, recorreram a alguém mais competente, em determinadas dimensões, para pôr nos eixos a campanha de vacinação. É preciso grandes crises para os partidos se livrarem dos seus homens do aparelho e irem buscar alguém com mérito. Nos desastrosos incêndios de 2017, a nomenclatura resistiu incólume aos primeiros desastres, só sendo mudada na segunda fase – e não é claro que tivesse sido substituída por algo melhor, havia a confiança que as próprias condições climatéricas tratassem do problema (afinal já se estava em outubro).

Ora, porque razão é que um indivíduo que sempre assumiu a sua responsabilidade a título individual e que viu sempre os coletivos a lutarem sem freio contra qualquer afirmação individual que não fosse a anulação do indivíduo para se pôr ao serviço do coletivo, haveria de ter quaisquer escrúpulos em fazer algo que o coletivo consideraria uma traição, apesar de não trair o mínimo compromisso pessoal? Porque razão deveria ter qualquer deferência, para lá do estrito cumprimento da lei, perante instâncias que não se coíbem de usar sem limites as competências dos indivíduos, bem para lá dos deveres destes, sem nunca reconhecer o seu serviço e sempre reconhecendo uma espécie de aristocracia da mediocridade que só se destaca, não por um serviço, mas por ser servil[4]? Em tempos, quando ingressei numa escola, deparei-me com um lema do seu projeto educativo que me deixou estupefacto: pensamento coletivo. O PCP já tinha passado o período da sua maior influência, mas convenci-me que ali se encontrava um reduto subsistente da mesma. Estávamos já próximo do fim do governo Guterres. Ora, há medida que o tempo foi passando, percebi que a escola estava mais alinhada com o governo – de facto, ao longo dos anos, fui verificando que se alinhava com qualquer governo. Como os coletivos não pensam, o lema referido apenas exigia, na verdade, uma coisa: conformismo. Com o passar dos anos, foram também mudando os lemas e até passaram a incluir ideias bem mais aceitáveis, mas todas elas eram diversas formas de mentir. A única exigência que, de facto, se manteve foi aquele conformismo do lema inicial em relação a tudo e mais alguma coisa que a chefia decidisse. Mas, ao ser contratado, essa exigência não constava do concurso, nunca a votei e muito menos a aprovei, antes pelo contrário. Porque então seria uma traição minha a recusa desse conformismo ou de uma das suas metamorfoses mais extremas?

Os coletivos não criam nada, não resolvem nenhum problema, não produzem coisa alguma. Pior, têm a tendência já referida a basear o seu poder nos piores ou, ao menos, nos medíocres. O carreirismo é, habitualmente, uma mera competição de estupidez. Como se consegue, então, avançar e fazer alguma coisa com valor? Muitas vezes, não se consegue, mas, se houver necessidade de o fazer, o habitual é conseguir o trabalho de alguém competente, sem lhe dar qualquer crédito. Os governos não conseguiriam fazer seja o que for de meritório não foram técnicos especializados anónimos que nunca serão referidos. A melhor arte que pode ter um incompetente é conseguir tais serviços competentes – muitas vezes, nem isso consegue por não ser capaz de discernir a competência. Eventualmente, em períodos de grande crise, a competência pode ser reconhecida, mas o mais provável é que essa competência resida exclusivamente na capacidade de selecionar serviços de outros verdadeiramente competentes. Por outro lado, quando se fala de um valor que transcende o mero funcionamento, muitas vezes o valor de um indivíduo até pode vir a ser destacado, mas depois de já ter sido sacrificado pelo coletivo. O coletivo extrai os despojos do sacrificado e apropria-se deles à sua maneira, sempre de forma extremamente distorcida. Toda a inovação, toda a criatividade, toda a compreensão provém de pessoas mais ou menos isoladas que, invariavelmente, acabam por ser traídas pelas estruturas coletivas, no mínimo não sendo reconhecidas ou só o sendo quando já não vale a pena, por vezes após a morte, e de uma forma que adultera o seu contributo. O coletivo precisa dessa inovação e criatividade, mas não está disposto a suportar os próprios criativos quando brotam e florescem. Até o máximo, podem, aliás, ser ridicularizados, difamados ou eliminados quer da memória, quer, em certos regimes, da existência. E devo me preocupar com os veredictos dessas instâncias? Ser considerado traidor por elas é um distintivo que me honra.

Ser considerado ovelha negra pode ser até pitoresco, pode originar chistes bem humorados e nada mal intencionados, pode até ser objeto de carinho e permitir a identificação de um espaço próprio no seio de um coletivo, criar uma forma de pertença, mas é sempre aviltante, uma forma da gente mostrar a sua superioridade através da tolerância, um modo de mostrar a condescendência que permite a uma ovelha tresmalhada, apesar de tudo, continuar a ser recebida no rebanho, uma marca que identifica alguém como membro, certamente, mas com o destaque de ser o pior de todos, o de menor valor, o mais desprezado, maculado como enjeitado, como desqualificado, como inapto, como inválido. Aceitar prolongar a qualificação de ovelha negra é aceitar um estatuto de exclusão que deve estar grato pela compadecida caridade envolvente que até se dispõe a suportar a presença insuportável, aceitar que a sua contínua depreciação se torne coloquial, aceitar ser cada vez mais reduzido a um farrapo por simplesmente ter medo de romper com o ambiente que o apouca. Na verdade, pior que este estatuto só o da carneirada que anula a sua individualidade ou a torna servente das determinações do coletivo, convertendo a possível pessoa num títere sempre buscando sujeitar-se à conformidade, sempre pronto a apoiar os maiores disparates das chefias, um invólucro do qual foi extraída toda a autonomia que se supõe constituir a essência do humano. É verdade que existem muitos que contemporizam, só colaborando o estritamente necessário para não serem alvo de rejeição. É óbvio que não estão verdadeiramente empenhados no coletivo, mas também em nada a ele se contrapõem – as experiências totalitárias mostraram, porém, que é dessa massa pouco galvanizada à partida que depende a extensão do poder até se tornar total, pois não tem resistências intrínsecas capazes de se opor a uma ascensão emocional global. Ao menos, a ovelha negra mantém uma teimosa resistência que é a condição de possibilidade do ser pessoa, uma versão negativa da vontade que contém o embrião da autenticidade e da diferença que recusa a adesão acéfala à verdadeira traição, a da anulação da individualidade. É verdade que o humano é tudo menos racional e só muito precariamente possui alguma autonomia. A espécie humana sempre se caracterizou, maioritariamente, pela demência e pelo servilismo à demência. O totalitarismo só confirmou esta verdade à exaustão. Mas o indivíduo humano é capaz de ser mais, é capaz de ter como objetivo superar-se pela razão e/ou pela vontade, sendo isso que o torna digno de respeito, mesmo que apenas por tentar. A condição negativa para isso é a ovelha negra do coletivo, o que não vai por aí. A condição positiva só pode ser atingida por um traidor segundo os critérios do coletivo, embora não qualquer traidor, apenas um que renegue o próprio coletivo para não se trair a si mesmo. Esse é o primeiro passo para o objetivo de ser pessoa, se ser pessoa é algo merecedor do respeito devido a uma dignidade especial e não apenas uma designação de um membro da espécie que, só por isso, não possui qualquer respeitabilidade que o diferencie, que, só por especismo, se pode considerar como possuindo um valor superior. Seja qual for o ideal que vise realizar, é um objetivo porventura inatingível, mas cujo valor consiste em exatamente tentar sê-lo. E só aí há a esperança da redenção da espécie de ser mais que uma besta demente, esperança perenemente precária e eternamente malograda, mas a única que, na verdade, vale a pena.



[1] Não é de admirar, pois só foi reconhecida pela URSS no tempo de Gorbachov. Dado o PCP não lidar bem com este consulado, tal como continua a negar as fomes do tempo da coletivização forçada, é possível que continue a manter a mesma posição também sobre este assunto.

[2] Mesmo não conhecendo, como é cronologicamente óbvio, os termos na altura.

[3] Já descrevi o processo noutro texto: Joaquim Lúcio, O Jazigo do Poeta, III – terra, 3ª ed., 2022, KDP, p. 203.

[4] Frequentemente, servis para quem considerarem acima, despóticos, para não dizer pior, para quem considerarem abaixo. Nada é mais demonstrativo da falta de carácter que tão regularmente é recompensada pelos coletivos.

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