30.1.10

Descartes - A demonstração da existência do mundo físico e a forma como é recuperado

Devido à confusão provocada pela obscuridade do manual no que respeita à recuperação do mundo físico e à forma como é recuperado, e, ainda, ao facto de não ser citado qualquer texto a este propósito, apresento, em seguida, algumas palavras do próprio Descartes:

1. Que razões nos fazem saber certamente que há corpos.

Se bem que estejamos suficientemente persuadidos que há corpos que existem verdadeiramente no mundo, como, porém, duvidámos anteriormente disso e pusemos isso no número dos juízos que havíamos feito desde o começo da nossa vida, é necessário que investiguemos aqui as razões que nos fazem ter disso ciência certa. Em primeiro lugar, experimentamos em nós mesmos que tudo o que sentimos vem de outra coisa qualquer que não o nosso pensamento; porque não está no nosso poder fazer que tenhamos um sentimento em vez de um outro, dependendo isso dessa coisa segundo a forma como toca nossos sentidos. É verdade que poderíamos nos questionar se Deus ou qualquer outro que não ele, não poderia ser essa coisa; mas, por causa de nós sentirmos, ou melhor, dos nossos sentidos nos excitarem, muitas vezes, a perceber, clara e distintamente, uma matéria extensa em comprimento, largura e profundidade, da qual as partes têm figuras e movimentos diversos, de onde procedem os sentimentos que temos das cores, dos odores, da dor, etc., se Deus apresentasse à nossa alma, imediatamente por ele próprio, a ideia dessa matéria extensa, ou, somente, se ele permitisse que ela fosse causada em nós por qualquer coisa que não tivesse qualquer extensão, nem figura, nem movimento, não poderíamos encontrar razão alguma que nos impedisse de crer que ele encontrava prazer em nos enganar; pois nós concebemos essa matéria como uma coisa diferente de Deus e do nosso pensamento, e nos parece que a ideia que temos disso se forma em nós ocasionada pelos corpos de fora, aos quais é inteiramente semelhante. Ora, considerando que Deus não nos engana de forma alguma, visto isso repugnar à sua natureza, devemos concluir que há uma certa substância extensa em comprimento, largura e profundidade, que existe presentemente no mundo com todas as propriedades que manifestamente conhecemos pertencerem-lhes. E essa substância extensa é aquilo que apropriadamente designamos por corpo ou substância das coisas materiais.

3. Que os nossos sentidos não nos ensinam a natureza das coisas, mas somente aquilo em que elas nos são úteis ou prejudiciais

Chegará que consideremos somente que tudo aquilo de que nos apercebemos por meio dos nossos sentidos, diz respeito à estreita união que a alma tem com o corpo, e que conhecemos, ordinariamente, por seu intermédio aquilo em que os corpos de fora nos podem aproveitar ou prejudicar, mas não qual é a sua natureza, a não ser, talvez, raramente e por acaso. Pois, após esta reflexão, deixaremos sem pena todos os preconceitos que não são fundados senão sobre nossos sentidos, e não nos serviremos senão do nosso entendimento, porque é só nele que as primeiras noções ou ideias que são como sementes das verdades que somos capazes de conhecer, se encontram naturalmente.

4. Que não é o peso, nem a dureza, nem a cor, etc., que constituem a natureza do corpo, mas somente a extensão.

Assim fazendo, saberemos que a natureza da matéria ou do corpo tomado em geral, não consiste de forma alguma em ser uma coisa dura, ou pesada, ou colorida, ou que toque nossos sentidos de qualquer outra forma, mas somente no facto de ser uma substância extensa em comprimento, largura e profundidade. No que respeita à dureza, disso não conhecemos outra coisa, por meio do tacto, senão que as partes dos corpos duros resistem ao movimento das nossas mãos quando se encontram; mas se, de todas as vezes que levássemos nossas mãos para qualquer parte, os corpos que aí estivessem se retirassem tão depressa quanto elas se aproximassem, é certo que não sentiríamos jamais a dureza; e, no entanto, não temos qualquer razão que nos possa fazer crer que os corpos que, desta forma, se retirassem, perdessem, por isso, aquilo que os faz corpos. Donde se segue que a sua natureza não consiste na dureza que sentimos, por vezes, a seu respeito, nem também no peso, calor e outras qualidades desse género; pois se examinarmos seja qual for o corpo, podemos pensar que ele não tenha em si qualquer destas qualidades e, no entanto, conhecermos, clara e distintamente, que tem tudo o que o faz corpo, desde que tenha a extensão em comprimento, largura e profundidade: donde se segue também que, para ser, ele não precisa de forma alguma delas e que a sua natureza consiste apenas no facto de ser uma substância que tem extensão.”

René Descartes, tr. fr. Abbé Picot, Les Principes de la Philosophie, 2ª parte, 1, 3 e 4.

20.1.10

Não te im-Portas, Sócrates?

Face à manifesta decadência de Francisco Louça, os dois maiores tribunos da política portuguesa, José Sócrates e Paulo Portas, confrontaram-se, no dia 2 de Setembro de 2009, num debate, a propósito das eleições legislativas, transmitido pela TVI. Como espelhos um do outro, em termos retóricos, foi curioso ver o recurso sistemático ao mesmo estilo retórico, incluindo, em vários casos, os mesmos tipos de falácias.

Logo para começar, como se tivesse desertinho por uma falácia, Portas faz a seguinte declaração: “Em termos económicos, eu entendo que a política económica de José Sócrates falhou, fracassou. Há dois momentos que os portugueses não esquecem: o primeiro, o governo decretou o início da retoma exactamente quando a crise estava a chegar a Portugal de uma forma violenta; e, bem recentemente, José Sócrates anunciou, praticamente, o princípio do fim da crise na véspera de se saber que Portugal tinha meio milhão de desempregados e tinha, infelizmente, batido esse recorde histórico.” Depois, conclui, enunciando aquilo que, segundo ele, a política económica de Sócrates havia gerado, incluindo muitos aspectos advindos da crise que ele implicitamente reconheceu vir de fora. Mas a falácia já estava feita. De facto, a demonstração feita por Portas do falhanço da política económica de Sócrates consistia na referência a duas declarações alegadamente erradas feitas por José Sócrates ou por membros do seu Governo. A associação é verdadeiramente insólita. Uma política económica não é feita por declarações. Os ministros poderiam ter feito milhares de declarações erradas e terem políticas de sucesso, e vice-versa, não ter feito nenhuma e as medidas serem um fracasso. Quem nos dera que os únicos erros de política económica dos nossos governos fossem as calinadas que este ou aquele ministro deu e às quais ninguém ligou!
Curiosamente, não demorou muito até que José Sócrates, nesta muito curiosa competição, fizesse uma falácia muito semelhante: “O senhor tem direito aos seus argumentos e às suas críticas, mas não tem direito a alterar os factos. Quando o senhor esteve no governo, não havia nenhuma recessão internacional e o senhor teve uma recessão por causa do discurso do país de tanga (referindo-se a uma declaração, no Parlamento, do então primeiro-ministro Durão Barroso).” Notável! Com estas declarações, percebe-se porque é que os nossos políticos não conseguem fazer grande coisa do país. Aparentemente, eles julgam que são as suas declarações públicas, talvez por serem transmitidas pela televisão, que decidem o destino do país. Provavelmente, em vez de tentarem resolver, de facto, os problemas do país, o seu trabalho consiste em treinar declarações, visto terem esta crença de tipo mágico de que são as suas declarações que poderão assegurar o sucesso ou desgraça do país. Veja-se como Sócrates atribui a causa de uma recessão a uma única expressão de um discurso de um político. E devo dizer que isto não foi um lapso. Ouvi, incontáveis vezes, responsáveis do PS e comentadores alinhados atribuírem a causa da recessão ao discurso do país de tanga. Já agora, relembro que o que Durão Barroso fez nesse discurso foi acusar o PS de deixar o país de tanga. Ora, os responsáveis “socialistas” conseguiram esta proeza de alterar as causas da recessão, da gestão dos dinheiros públicos e da política económica, para a declaração que denunciava essa gestão e essa política. Assim, a causa da crise, em vez de ser a gestão, seja do PS, seja do PSD; passou a ser a declaração.
Já antes desta declaração de José Sócrates, Paulo Portas nos havia brindado com uma outra preciosidade tão típica quanto vazia do discurso político: “Eu não concordo com nenhum pessimismo estrutural. Portugal sempre foi capaz e o facto de este primeiro-ministro e de estes governos não serem capazes, não quer dizer que Portugal não seja capaz.” Ora, o que é que quer dizer isto de Portugal ser capaz ou não ser capaz? Estamos perante uma daquelas vacuidades políticas que, muitas vezes, servem de slogans, mas que não dizem rigorosamente nada. Animam o disposição dos eleitores mais papalvos, neste caso, com um patrioteirismo bacoco, sentem reforçada a crença não se sabe em quê porque a afirmação é absolutamente abstracta e, daí, em termos políticos, retira-se que opção? Obviamente, nenhuma. Qualquer político de qualquer quadrante poderia dizer isto, até porque não poderia dizer o contrário, sob pena de contradizer a sua própria função de político. E dizendo isto, diria um disparate. As pessoas são capazes de fazer isto e aquilo, desde roubar a ir às compras. Um conjunto de muitas pessoas é capaz de muito mais coisas. Mas ninguém é capaz em geral, nem mesmo Deus, para quem crê, visto não ser capaz do mal. Mesmo admitindo que um país seja capaz de alguma coisa, é muito estranho que seja capaz em geral. Aliás, como remete para o passado, talvez fosse útil a Portas uma releitura de qualquer História de Portugal para se dar conta de uma longa lista de incapacidades, não apenas dos governos, mas da sociedade e da economia portuguesa. Mas, claro, o que interessa é animar as hostes.

Mais adiante no debate, foi bem óbvia a forma como José Sócrates contorna as objecções levantadas por Paulo Portas relativamente às alterações à concessão do subsídio de desemprego, assim como foi óbvio que Paulo Portas ignorou, na comparação das taxas de desemprego entre o seu governo e o actual, o impacto da crise internacional. Igualmente, ambos lançam objecções infundadas e não justificadas, muitas vezes em apartes, às medidas enumeradas pelo outro, com o único objectivo de impedir que a mensagem do outro chegue, com clareza, ao telespectador. Ambos, aliás, apresentam um elenco unilateral das medidas tomadas pelos respectivos governos, nunca reconhecendo qualquer virtude a qualquer actuação do outro. Nestes passos, há muito material para análise mais detalhada, pelo que recomendo uma olhada ao vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=4DD_Hbj8FVE.
Estas semelhanças continuam por todo o debate. Por exemplo, Paulo Portas desvia-se à questão relativa à segurança interna posta por Sócrates – que o havia interrogado acerca do facto de se Portas tinha ou não votado a lei que criticava relativa à prisão preventiva – exortando-o a ir “interrogar os seus camaradas”, repetição de exortação anterior que tinha, na altura, feito todo o sentido, a propósito da Segurança Social e de posições tomadas por responsáveis do PS num documento oficial, mas que vinha completamente a despropósito nesta questão. Porém, logo em seguida, é José Sócrates que ignora a questão relativa ao relatório sobre segurança que o Governo reteve e não divulgou antes das eleições.
Porém, neste capítulo da Segurança Interna, a pérola final cabe a José Sócrates, com esta declaração: “Em matéria de segurança, eu acho que nós não devemos poupar esforços e sempre fiz aquilo que achava que devia fazer para pôr o Estado português e a sociedade portuguesa em segurança. Mas há uma coisa que eu nunca fiz e o que o senhor fez, sabe. Eu nunca aceitei que o Estado português entrasse numa guerra ilegítima e numa guerra errada como o senhor decretou e apoiou, a Guerra do Iraque. E essa diferença, e esse fardo do passado, vai persegui-lo por muitos anos.” Ou seja, Sócrates, para refutar as acusações de Portas relativas ao policiamento e à política penal, à falta de uma política de segurança eficaz, preventiva e protectora das vítimas, responde, acusando Portas de quê?... Da Guerra do Iraque… No comments.

5.1.10

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3.1.10

O TGV verde e encarnado (vermelho, não, nem a falar de comunas, Jesus, credo)

Para mais uma demonstração das agendas políticas dos jornalistas comentadores, o seguinte caso passou-se na TVI 24, no suposto debate de comentadores/jornalistas que se seguiu ao debate entre Manuela Ferreira Leite e Jerónimo de Sousa. António Ribeiro Ferreira, actualmente na equipa do Correio da Manhã, teve como missão ridicularizar o dirigente comunista, enquanto os restantes participantes tomavam o ar de analistas mais sérios, embora favorecendo, claramente, a candidata social-democrata, quanto mais não seja pela atenção não jocosa muito maior que lhe foi dada.
Vejam-se estas declarações de António Ribeiro Ferreira a propósito de Jerónimo e do PCP: “A posição do PC é perfeitamente extraordinária porque eles, hoje, (...) foram à Amadora onde era a Sorefam (...), e o Jerónimo de Sousa diz esta coisa: sim, gosto do TGV, quero o TGV (...), mas quero as carruagens feitas em Portugal, os carris feitos em Portugal, todo o material feito em Portugal. (...) Não existe. Nós fazemos o Tgv, obviamente que as carruagens vêm de fora, os carris, o ferro vem todo de fora e nós temos uma incorporação de mão-de-obra, praticamente. (...) Agora, o que ele quer é a utopia total, não há, não há, deixou de existir, nós não temos ferro, quer dizer, a Siderurgia não há, a fabricação de carruagens, nós não temos há uns anos, e agora ele quer um TGV assim, mas com produtos nacionais. Está bem, então, vamos ter um TGV de plástico, para nós brincarmos todos com TGVs, podemos oferecer às crianças ao lado do Magalhães, um TGVêzinho de plástico (galhofa geral).” Repare-se, pode-se discordar da perspectiva do PCP, contrária à internacionalização da economia e defensora da existência de um forte sector produtivo nacional, nomeadamente um forte sector industrial, mas não faz sentido considerar que é uma utopia total que indústrias que existiam em Portugal ainda há meia dúzia de anos, não possam voltar a existir. Pode-se discordar da perspectiva do PCP que pensa que o Estado deve assegurar a existência de os sectores mais estratégicos da produção nacional, como ocorria até há umas décadas, mas não faz sentido considerar que é impossível algo que já foi possível e com menos custos que muitos empreendimentos megalómanos que têm sido feitos. Ainda menos faz sentido considerar absurdo que se queira produção industrial, siderúrgica, ferroviária, etc., em Portugal – mesmo sem o modelo do PCP, na economia de mercado, qualquer governo deveria desenvolver todos os esforços para voltarmos a ter um razoável sector industrial pesado.
A intenção de António Ribeiro Ferreira não poderia ser mais clara quando ele compara Jerónimo de Sousa com Manuela Ferreira Leite, sempre muito elogiada nestes debates na TVI: “Este discurso de Jerónimo de Sousa não teve uma novidade, até no TGV não tem novidade nenhuma, eles querem um TGV nacional, português, tudo português, pintado de encarnado e verde, e com as quinas, e com bandeiras nacionais, tipo a União Soviética dos velhos tempos, aquelas ideias daquelas inaugurações todas que tinham as bandeiras, o assalto ao Palácio [de Inverno], não sei quê. Portanto, ele não teve uma ideia nova, quando se fala em baixar impostos, ele fica logo nervoso, como a esquerda toda fica nervosa quando se pensa em baixar impostos, ficam logo nervosos, falam logo do investimento público, do Estado, que é preciso não sei quê, ficam logo tudo muito nervoso.” Apesar de dar uma imagem excelente, comparativamente com as expectativas, segundo ele, de Manuela Ferreira Leite, não deixa de ser curioso que não mencionou qual a novidade trazida por ela que contrastaria com a lastimável ausência de novidades de Jerónimo de Sousa.

O primeiro defensor das PME

No dia 7 de Setembro de 2009, na SIC, apesar de se estar a confrontar com Paulo Portas, Jerónimo de Sousa já pareceu estar recuperado da estranha anemia que o abateu no encontro com Sócrates. Na verdade, devo dizer que se tratou de um muito razoável debate de parte a parte. Mas, não havendo bela sem senão, desta vez foi Paulo Portas que, logo no início, não resistiu aos recursos falaciosos.

Depois de um remoque de Paulo Portas saudando o reconhecimento da importância das PME pelo PCP, Jerónimo de Sousa recordou que não existia qualquer referência no programa eleitoral do CDS-PP de 2005 às PME, contrariamente às 34 referências de 2009. A isto respondeu Paulo Portas da seguinte forma: “Eu acho que o deputado Jerónimo de Sousa foi influenciado pelo argumento do primeiro-ministro Sócrates que é o meu adversário, segundo o qual ele nunca foi primeiro-ministro e eu fui primeiro-ministro.” O argumento de Paulo Portas não podia ser mais disparatado. Primeiro, porque Jerónimo não se referiu a uma medida de um governo a que Portas tivesse pertencido, mas sim ao seu programa eleitoral. Segundo, porque Jerónimo não foi, certamente, primeiro-ministro ou sequer um qualquer ministro. Terceiro, porque isso nada tinha que ver com a questão – foi Paulo Portas que pretendeu valer-se de uma suposta anterioridade na atenção às PME, tendo sido cabalmente desmentido por Jerónimo e, não tendo forma de superar a inesperada refutação, socorreu-se de um argumento de algibeira que costuma utilizar contra Sócrates (e aí tendo, de facto, alguma razão).

A fera amansada

No dia 5 de Setembro de 2009, transmitido pela RTP, realizou-se o massacre de Jerónimo de Sousa por José Sócrates. Infelizmente, não se tratou apenas de Sócrates, com as suas capacidades retóricas, ter superado Jerónimo. No próprio capítulo das falácias, foi Jerónimo quem pior se portou e, mais tristemente ainda, com falácias especialmente ineficazes, claramente introduzidas para ultrapassar a falta de ânimo e de argumentos. Não é que Sócrates não tenha também cometido das suas, mas fê-lo de forma muito mais eficaz e até o deixou de fazer quando se apercebeu que Jerónimo estava derrotado para lá de qualquer esperança. Por exemplo, a meio do debate, Sócrates utilizou de forma falaciosa a luta dos professores relativa às aulas de substituição, mas a verificação do carácter falacioso dessa declaração só poderia ser feita fora do discurso, conhecendo o que, de facto, estava em causa nessa altura, conhecimento vedado à generalidade da população. Referiu-se à greve aos exames desta forma: “Acha razoável que por causa de uma medida de aulas de substituição, tivesse havido uma greve aos exames? Pois eu não acho.” Ora, as aulas de substituição estavam há muito consagradas na lei, mas nessa lei, bem ou mal, o antigo estatuto da carreira docente, essas aulas eram consideradas trabalho extraordinário. Aliás, o governo havia revisto esse estatuto (que também havia sido, originalmente, aprovado pelo PS) no Verão anterior e, logo um mês e meio depois, já estava a desrespeitá-lo, recusando-se a pagar o que estava previsto na lei por eles próprios promulgada. De facto, apesar das decisões em contrário dos tribunais, ainda hoje não pagou nada. Foi por isso que os professores fizeram a tal greve e é especialmente grave que um governo considere que as leis só são para cumprir pelos outros e não pelo próprio governo.

Porém, o debate foi dominado pela anemia de Jerónimo de Sousa. A maior parte do tempo só conseguia responder com declarações vagas às referências concretas de Sócrates, sempre, no entanto, apelando para o real e o concreto que nunca concretizava. Outras vezes, só conseguia balbuciar que havia ainda muito por fazer frente ao rol de medidas enunciadas por Sócrates. Enfim, um espectáculo triste. Por exemplo, após as referências concretas às alterações que permitiram a extensão temporal do subsídio de desemprego e do subsídio social de desemprego, Jerónimo de Sousa declarou: “Quando ouvimos o engenheiro Sócrates a falar de um país que eu não conheço, eu conheço outro, mais duro, mais real, com pessoas a sofrer muito, com pessoas a dirigirem-se a nós, a fazerem apelos para que isto mude.” Na sequência, apenas se refere à pobreza em geral, como se isso desmentisse as medidas enunciadas ou concretizasse alguma alternativa política.
Não foram estes, porém, os únicos recursos falaciosos. Já antes, a propósito das referências de Sócrates às diversas medidas na área da educação, incluindo a extensão do horário escolar até às 17.30 no 1º ciclo, declarou: “Algumas das medidas são discutíveis! Por exemplo, manter as crianças onze horas numa sala, considero negativo nalgumas situações. Porque é que foi esta medida? Para flexibilizar os horários dos pais e das mães, foi para que, numa situação de aperto, os pais aceitem esse espaço. A perspectiva de aumentar esse período que está proposta, isso serve os pais, não têm outra alternativa. Agora, o que nós defendemos é horários com regras.” Para se perceber a falácia, a referência à flexibilidade do horário de trabalho diz respeito ao código laboral. Ora, Jerónimo interpreta o alargamento do horário laboral como resultante da flexibilização laboral, como se antes os pais só trabalhassem até às 13.30. Mesmo que esteja a falar da proposta de extensão até às 19 h., parece óbvio que já antes os pais trabalhavam até essa hora e até chegavam mais tarde a casa.
Finalmente, ao referir-se ao caso Manuela Moura Guedes e ao procurar afastar a ideia de que estava a insinuar uma ligação entre os antigos ataques de Sócrates e a censura feita à jornalista, procurando distinguir a sua posição da direita, ao manifestar um certo escândalo perante a posição do PSD, não se conteve ao dizer: “A direita que já fez o mesmo, particularmente o PSD, quer dizer, houve um caso idêntico (referindo-se ao episódio de censura de Marcelo Rebelo de Sousa).” Como é óbvio, tratando-se de um caso atestado de interferência do governo numa estação de televisão com o objectivo de silenciar alguém, acabou por afirmar a ligação que pretendia nem sequer estar a insinuar.

O pequeno comércio e o fascismo

No dia 3 de Setembro de 2009, num frente-a-frente moderado por Mário Crespo, na SIC Notícias, Alfredo Barroso, histórico militante do PS, começou por se referir a uma intervenção de Manuela Ferreira Leite, feita dois dias antes, em Silves, que tinha o seguinte teor: “Os grandes grupos e as grandes empresas, tal como as grandes superfícies, levam ao empobrecimento dos pequenos comerciantes.” De início, na sua intervenção, começou por reduzir ao absurdo a afirmação, sem que aí tivesse detectado qualquer falácia, mas rapidamente acabou por estender a sua análise a uma comparação com o poujadismo, um movimento populista e fascizante dos anos 50 em França que surgiu com a intenção de defender o pequeno comércio. Intercalando a sua análise do poujadismo com associações a afirmações de Manuela Ferreira Leite (a dos ucranianos e cabo-verdianos), acaba por criar um cenário relativo às posições de Manuela Ferreira Leite, utilizando as suas declarações acerca do casamento e da procriação, acerca dos imigrantes, acerca do Estado e do investimento público, de tal forma que acabou por considerar a sua posição análoga ao do tal poujadismo, ou seja, fascizante.


Não deixou de ser engraçado ver o seu adversário no frente-a-frente, nem mais nem menos que Luís Filipe Menezes, a ter que fazer o papel de defender Manuela Ferreira Leite, sua arqui-inimiga no seio do partido, perante tão óbvia argumentação defeituosa.

O caso da Manela

No calor do anúncio da censura a Manuela Moura Guedes, no dia 3 de Setembro, muitos comentadores se apressaram a vir a terreiro, na maioria dos casos, com a expressa intenção de ilibar o primeiro-ministro, sustentada no argumento que seria uma estupidez ele fazer uma intervenção como aquela, 3 semanas antes das eleições, e alegando que o principal prejudicado pelo caso seria o próprio José Sócrates. Como se viu, porém, tal operação de branqueamento surtiu tal efeito que a principal consequência do caso foi o simples silenciamento da voz mais incómoda da comunicação social para o PS, durante todas as 5 longas semanas eleitorais que se seguiram. Se acumularmos a isto, o caso que pôs em posição defensiva o diário incómodo e o facto de o semanário incómodo parecer ter alinhado por outra facção do PSD contra a direcção actual, criaram-se as condições ideais para um passeio rumo à vitória socrática que tão difícil parecia à partida. É caso para dizer se seriam os próprios comentadores os estúpidos, se estariam a fazer de estúpidos os eleitores. Já agora, não posso deixar de dizer que o programa censurado era de facto revoltante em termos jornalísticos, mas a perda de qualquer referência à deontologia jornalística é comum a todo o jornalismo televisivo, sem que a generalidade dos políticos ou dos jornalistas vejam grande problema nisso. O programa em causa apenas acentuava tendências há muito instaladas na comunicação social.


Uma dessas congregações de comentadores, ocorreu na SIC Notícias, entre Mário Bettencourt Resendes, Pedro Adão e Silva e Luís Delgado, moderados por Mário Crespo, notoriamente pouco virado para a ilibação do primeiro-ministro, ao contrário dos seus convidados. Um deles, aliás, Pedro Adão e Silva, viria, pouco depois, a substituir Vasco Pulido Valente na TVI, após a demissão deste por solidariedade com Manuela Moura Guedes, dando um teor muito mais rosa ao programa em causa. Mas vamos ao que nos interessa, ou seja, as falácias.
Tentando insistir na gravidade da censura, Mário Crespo sublinhou que, apesar de serem gente poderosa, José Eduardo Moniz e Manuela Moura Guedes acabaram por ser demitidos ou se demitirem. Para verem a importância das pequenas diferenças semânticas, vejamos esta precisão muito intencional de Mário Bettencourt Resendes: “Eu gosto mais da palavra influente do que propriamente [poderoso], eu não gosto muito de aliar a palavra poderoso a jornalistas porque acho que o poder dos jornalistas deve ser temperado por um conjunto de regras e de serviço público que está inerente à própria missão e profissão.” Esta distinção bizantina tinha um objectivo. Tratava-se de posicionar o assunto de forma a poder ser comparado com outra situação. Na sequência, afirma que o Marcelo ainda era mais influente e foi corrido, responsabilizando, porém, o capital por tal censura, na sequência de afirmações anteriores de Pedro Adão e Silva. Valha a verdade que, posteriormente, cede à argumentação de Mário Crespo que distinguiu entre a influência de um comentador e o poder do principal responsável da estação televisiva (e do seu sucesso), assim como o poder dentro da estação da sua esposa.
No entanto, a sequência mais interessante passou-se com Pedro Adão e Silva, cujo mandato era muito mais óbvio. É preciso relembrar que muitos dos que não se atreviam a incriminar directamente o primeiro-ministro, recordavam, porém, as pressões por ele e por membros do seu partido exercidas contra a estação e o programa em causa. Ora, Pedro Adão e Silva, referindo-se às pressões, considerou que quem as fez foi a Manuela Moura Guedes quando disse que seria muito estúpido tirá-la do ar, porque estaria a fazer “chantagem sobre quem detém o órgão”. Não sei se Pedro Adão e Silva conheceria a legislação que impedia qualquer administração de interferir na linha editorial de um órgão de comunicação social, mas considerar que alguém defender-se de uma censura anunciada é uma forma de pressão inaceitável, é o cúmulo da desfaçatez. Visto até parecer tratar-se de um crime à luz da nossa lei, a argumentação de Pedro Adão e Silva é a de que alguém que se queixa de um crime que aconteceu ou está prestes a acontecer, levado a cabo pela entidade patronal, está a fazer uma pressão intolerável sobre essa entidade.
Mais adiante, frente à insistência de Mário Crespo acerca de José Eduardo Moniz e Manuela Moura Guedes terem sido eliminados, o mesmo Pedro Adão e Silva nega que eles tenham sido eliminados ou derrotados, com base nas suas declarações “tipicamente políticas”: “o que eu assisti foi a intervenções de José Eduardo Moniz e de Manuela Moura Guedes (...) que não são intervenções (...) de um jornalista, (...) são intervenções de alguém que tem uma participação política e uma presença política na vida pública, eu não sei se isso é exactamente o papel que cabe a um jornalista.” Deste espantoso argumento, conclui que não lhe parece que sejam os derrotados desta história. A esta conclusão, seguiu-se um ataque ao teor jornalístico do Jornal Nacional por não garantir o pluralismo, o que, sendo inteiramente verdadeiro, soou, na circunstância, a justificação da censura.
Este último argumento é uma verdadeira pérola. Primeiro, os visados não tinham sido eliminados porque, no fundo, protestaram. Segundo, Pedro Adão e Silva parece nem reconhecer o direito a protestar a um jornalista porque isso o torna num político. Terceiro, aparentemente, sendo um político, um pseudo-jornalista já pode ser censurado à vontade. É difícil até pegar nesta argumentação por um lado em detrimento de outro. Um bom jornalista, segundo Pedro Adão e Silva, cala-se bem caladinho quando é censurado, não protesta e, nesse caso, já podemos ser solidários com ele pelo acto de censura. Além disso, desde que proteste, alguém já não é eliminado ou derrotado. Pelos vistos, pode até ser morto, desde que tenha protestado, não foi eliminado. Por outro lado, torna-se claro que há um direito superior a censurar políticos que não existe para os verdadeiros jornalistas (embora esta linha de raciocínio pareça estar em contradição com a utilização, pelo PS, do caso Marcelo para se defender dos ataques neste caso). Finalmente, e esta é a cereja em cima do bolo, desde que se seja político, é-se invencível. Não podem ser os derrotados desta história porque têm uma participação política e uma presença política. Ou seja, não é possível derrotar um político.
Em abono da verdade, estas declarações não constituem nada de especial no coro falacioso que foi feito neste dia e nos seguintes pelos responsáveis do PS e seus comentadores. Já referi isto a propósito do debate com o Louçã. Se há espectáculo político verdadeiramente impressionante é o do coro grandioso que o PS consegue montar na comunicação social sempre que algo corre mal ou sempre que decidem aniquilar alguém. Nas aulas referi um outro caso, o de Manuela Ferreira Leite a quando da declaração sarcástica, dirigida a Sócrates, sobre a suspensão da democracia. Muitos outros casos poderiam ser referidos, o do arranjinho com o Constâncio do deficit de 6,8%, as campanhas contra classes profissionais (que, numa fase inicial, resultaram sempre junto do povo, sempre pronto para dar vazão a uma invejazita), as sucessivas campanhas contra o Presidente, etc., etc.. Em todos os casos, parece haver a crença que uma falácia, se for muitas vezes repetida e por muita gente, deixa de ser falácia e passa a ser a encarnação da verdade e validade. E a verdade é que têm tido sucesso com a estratégia. Sempre que ela é executada na sua forma mais completa, passados alguns dias já toda a gente confunde a falácia com os factos e interpreta os factos à luz da falácia. Tal é o poder da manipulação política. Como disse, as declarações citadas nada têm de especial no contexto desses dias, tratam-se simplesmente das que eu gravei e servem como exemplo da estratégia adoptada a propósito deste caso.

Casamento homo


Infelizmente, devido a um problema na zonbox, não pude extrair a citação exacta deste responsável do PS, mas não podia deixar passar a oportunidade de referir na nossa lista de falaciosos um dos mais recorrentemente responsáveis por argumentações defeituosas na nossa televisão. Trata-se de José Lello. Na RTPN, no dia 22 de Dezembro de 2009, pelas 10 horas e 10 minutos, defendeu a legislação que consagra o casamento homossexual por ser uma “legislação moderna” que segue a legislação promulgada por países que ele considerou “países de referência”. Na sequência da argumentação, atacou a posição retrógrada do Presidente da República, não só neste como noutros assuntos relativos ao universo dos costumes.

2.1.10

MFI

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